Autor: Guilherme Alfredo de Moraes Nostre (*)
A liberdade de expressão deve ser entendida como um dos mais relevantes valores ético-sociais, cuja tutela se impõe em todos os níveis do ordenamento e com garantias institucionais da administração pública e do Poder Judiciário que devem entendê-la como bem jurídico fundamental.
Na experiência brasileira, contudo, não se vislumbra uma estrutura normativa capaz de oferecer à liberdade de expressão proteção suficiente em face de determinadas condutas capazes de lesar esse bem jurídico, consubstanciadas em ações ou omissões do poder público, ou ainda, em condutas de pessoas físicas e jurídicas que, em determinadas circunstâncias, por serem detentoras de poder econômico, político ou social, podem violar a livre manifestação de ideias e pensamentos, a livre divulgação de fatos e acontecimentos, ou, em outras palavras, a livre circulação de informação.
Não basta para a efetivação do direito fundamental de liberdade de expressão que se garanta às pessoas acesso ao Judiciário e o devido processo legal, para que, ao final, seja-lhes permitido publicar uma informação ou manifestar um pensamento. O ordenamento jurídico deve desestimular as condutas lesivas, verdadeiras amarras à afirmação da personalidade humana e à formação de uma sociedade justa e plural, proibindo ações voltadas a impedir ou manipular a livre comunicação. E essa proibição deve significar retirar esse tipo de comportamento do âmbito da licitude, impondo, como consequência, uma sanção.
Inconcebível, portanto, que lesões provocadas pela publicação de informações sejam objeto de reprimenda, inclusive penal, enquanto a violação do direito de informar e de ser informado possa ser deixado em uma zona de fragilidade, em que, em face de ataques, admite-se que se recorra a mecanismos de garantia e afirmação da liberdade, e só não havendo previsão legal de sanções contra os atos daqueles que tentaram investir contra o direito fundamental.
A tutela efetiva da liberdade de expressão exige a proibição de condutas que sejam voltadas à violação da livre comunicação, seja buscando impedir de forma ilegítima a circulação de informações, seja manipulando-as. E para essa proibição não se vislumbra outro mecanismo jurídico que seja a tutela penal, criminalizando condutas lesivas e estabelecendo as consequentes sanções penais.
As condutas lesivas não podem ficar sem resposta jurídica. O agente que pretende impedir determinada forma de comunicação age em manifesta violação a um direito fundamental, mas sua ação voltada a lesar ou expor a perigo de lesão aquele bem jurídico não é considerada passível de sanção criminal. Nessa linha de pensamento, cabe ao agredido buscar que se afaste a agressão e que se permita o exercício de seu direito fundamental. Mas o agressor, ainda que constatada a ilegalidade de sua conduta, não tem prevista, no ordenamento, qualquer punição que prove a retribuição e a prevenção adequadas.
Cumpre, portanto, no âmbito da tutela da liberdade de expressão, identificar as condutas lesivas ao bem jurídico na realidade, extraindo os dados elementares invariáveis, e estabelecer tipos legais de condutas proibidas, assim consideradas ações ou omissões que lesem e exponham a perigo de lesão a liberdade de comunicação: a censura, o controle dos meios de comunicação, o controle dos agentes de comunicação e o controle do destinatário da comunicação
Proposta-modelo para a incriminação de condutas
Constatando-se que a expressão pública de ideias e pensamentos, bem como a divulgação de fatos e notícias, pode lesar e expor ao perigo de lesão bens jurídicos fundamentais, surge um aparente conflito entre a liberdade de expressão e outros direitos e garantias como a honra, a intimidade, a imagem e a privacidade, dentre outros. Entretanto, a tutela desses bens jurídicos não deve representar indevida restrição à liberdade de expressão.
O fato de um determinado indivíduo ter sentido que dada manifestação de pensamento representa um ataque a um direito fundamental, como a honra, por exemplo, não é suficiente para considerar uma manifestação de pensamento ilegítima. Outros fatores mostram-se preponderantes e devem ser extraídos do próprio conceito de liberdade de expressão como o animus do agente e a relevância da manifestação do pensamento em face do direito à informação.
Tais elementos são de extremada relevância para definição da legitimidade da manifestação de pensamento, diferenciando-as das manifestações degradantes, voltadas meramente a ofender, humilhar e desrespeitar.
Assim, a tutela penal é de extrema relevância para a definição desse conflito aparente entre liberdade de expressão e direitos fundamentais, posto que um modelo legítimo de proibição de condutas, como o realizado na criação dos tipos legais de crimes, pode ser entendido como marco delimitador entre os discursos lícitos e discursos ilícitos.
Por todas essas razões, em trabalho de pós-doutorado defendido na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, apresentamos proposta-modelo para a incriminação de condutas observadas na realidade e que são manifestamente lesivas a esse bem jurídico fundamental, desprovido, na atualidade, de tutela penal efetiva.
Propomos que constitui crime contra a liberdade de expressão criar obstáculos à livre manifestação do pensamento e à divulgação de ideias, fatos, notícias e opiniões por meio das seguintes condutas: impedir ou perturbar serviços voltados à divulgação de atividade intelectual, artística, científica ou de comunicação, ou dificultar-lhe o restabelecimento; constranger alguém a não fornecer a outrem ou não adquirir de outrem matéria-prima ou insumo utilizado na divulgação de atividade intelectual, artística, científica ou de comunicação; invadir ou ocupar domicílio ou estabelecimento, com o intuito de impedir ou embaraçar a divulgação de manifestação intelectual, artística, científica ou de comunicação; frustrar, mediante fraude ou violência, a divulgação dessas atividades.
Os tipos penais envolvem ainda a perseguição pessoal do comunicador: constitui crime contra a liberdade de expressão praticar qualquer ato capaz de prejudicar alguém como represália pela divulgação de ideias, fatos, notícias e opiniões, por meio de várias condutas, das quais destaco dar, oferecer ou prometer dinheiro ou qualquer outra vantagem, ou de qualquer forma exigir a dispensa ou ruptura de vínculo com empregado ou prestador de serviço em razão de publicação de atividade intelectual, científica, artística ou de comunicação.
É relevante demonstrar que os tipos penais abrangem a manipulação de informação e opinião. Assim, constitui crime contra a liberdade de expressão, manipular a divulgação de ideias, fatos, notícias e opiniões, por meio das seguintes condutas: expor a perigo, por qualquer meio de comunicação, a segurança pública, a saúde pública ou a incolumidade pública; o transporte público, de forma a impedir ou dificultar o seu funcionamento; divulgar notícia ou fato manifestamente falso ou fazer publicamente declaração falsa com o fim de obter vantagem indevida ou causa prejuízo a outrem; utilizar patrocínio, verbas ou rendas públicas para obter que notícia, fato ou declaração deixe de ser publicado ou seja publicado para atender a objetivos de anunciantes ou de terceiros; dar, oferecer ou prometer dinheiro ou qualquer outra vantagem para fazer afirmação falsa, negar ou calar a verdade em publicação de atividade intelectual, científica, artística ou de comunicação; exigir para si ou para outrem, direta ou indiretamente, vantagem indevida para publicar fato, notícia ou declaração, ocultando tratar-se de matéria paga, ou para deixar de publicá-la.
Autor: Guilherme Alfredo de Moraes Nostre é sócio do Moraes Pitombo Advogados e doutor em Direito Penal pelas faculdades de Direito das Universidades de São Paulo (USP) e Coimbra (Portugal).