Autor: Gilson Goulart Jr. (*)
Os consumidores estão cada vez mais esclarecidos sobre os seus direitos e, por consequência, se insurgem frequentemente contra algumas práticas adotadas pelos fornecedores. Como nem tudo se resolve de forma amistosa, o efeito direto que se constata é o aumento crescente no número de demandas judiciais envolvendo relações de consumo.
Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça divulgados no relatórioJustiça em Números 2015[1], o Direito do Consumidor é o terceiro tema mais demandado no Poder Judiciário, com mais de dois milhões de ações em trâmite. Entretanto, se considerarmos apenas os juizados especiais e as turmas recursais, o Direito do Consumidor assume o primeiro lugar isolado.
Ainda que a grande maioria dos consumidores tenha reais motivos para reclamar, é possível constatar também nesse volume a ocorrência de inúmeros abusos na busca por supostos “direitos”.
Muitas vezes, consumidores mal-intencionados (que felizmente ainda são a minoria), ao enfrentar algum infortúnio na relação com o fornecedor, recusam a simples resolução do problema (ou sequer tentam), para buscar obter, por meio do Poder Judiciário, uma indenização por dano moral. Utilizam-se dessa possibilidade como um verdadeiro método de chantagem contra o fornecedor.
Para quem milita na área, é fácil identificar inúmeros abusos que são cometidos pelos consumidores no ímpeto de conquistar alguma indenização por dano moral.
Certamente, o sistema previsto hoje nos juizados especiais facilita esse tipo de pedido, já que não há custas para propositura da demanda e tampouco honorários sucumbenciais em caso de derrota. Porém, indubitavelmente, o que mais motiva esta crescente “judicialização das relações de consumo” é o deferimento corriqueiro de indenizações por situações simples, que poderiam configurar, no máximo, mero descumprimento contratual.
E, como vem sendo intensamente debatido na jurisprudência atual, não é todo descumprimento contratual que merece ser punido com o pagamento de uma indenização por dano moral.
O dano moral, nas palavras de Yussef Said Cahali, é “(…) a dor resultante da violação de um bem juridicamente tutelado, sem repercussão patrimonial. Seja dor física — dor-sensação, como a denominada Carpenter — nascida de uma lesão material; seja a dor moral — dor-sentimento, de causa imaterial”[2].
Já o descumprimento contratual deve ser encarado como mero aborrecimento ou dissabor, possível de acontecer em toda e qualquer relação consumerista, mas que não tem o condão de expor o consumidor a dor, vexame, sofrimento ou constrangimento perante terceiros.
A propósito, pertinente é destacar a lição do desembargador Sergio Cavalieri Filho, que aborda o assunto com propriedade:
“Nessa linha de princípio, só deve ser reputado como dano moral a dor, vexame, sofrimento ou humilhação que, fugindo à normalidade, interfira intensamente no comportamento psicológico do indivíduo, causando-lhe aflições, angústia e desequilíbrio em seu bem-estar. Mero dissabor, aborrecimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exacerbada estão fora da órbita do dano moral, porquanto, além de fazerem parte da normalidade do nosso dia-a-dia, no trabalho, no trânsito, entre os amigos e até no ambiente familiar, tais situações não são intensas e duradouras, a ponto de romper o equilíbrio psicológico do indivíduo. Se assim não se entender, acabaremos por banalizar o dano moral, ensejando ações judiciais em busca de indenizações pelos mais triviais aborrecimentos”[3].
Os julgados das turmas recursais, aos poucos, vêm adotando essa linha de raciocínio, como se constata na recente decisão proferida pela 3ª Turma Recursal Cível do TJ-RS, verbis:
“RECURSO INOMINADO. CONSUMIDOR. VÍCIO DE QUALIDADE EM APARELHO CELULAR. DANO MORAL INOCORRENTE. MERO DESCUMPRIMENTO CONTRATUAL. O descumprimento contratual noticiado nos autos não enseja reparação moral. É assim porque a falha na prestação do serviço ocorrida, consubstanciada na ausência de resolução pela ré do vício de qualidade apresentado no produto, por si só, não é suficiente para configurar a ocorrência de danos extrapatrimoniais, sob pena de banalizar o instituto(inteligência do Enunciado n. 05 do Encontro dos Juizados Especiais Cíveis do Estado, de maio de 2005, realizado em Gramado). A reparação por dano imaterial somente é cabível em situações excepcionais, ou seja, quando constatada violação aos direitos da personalidade ou à dignidade ou, ainda, em situações que tenham causado angústia, sofrimento e abalo moral a ponto de causar desequilíbrio emocional ao consumidor, o que não foi demonstrado no caso em tela. SENTENÇA PARCIALMENTE REFORMADA. RECURSO PROVIDO”.
(TJ-RS – Recurso Cível: 71005660261 RS, Relator: Lusmary Fatima Turelly da Silva, Data de Julgamento: 12/11/2015, Terceira Turma Recursal Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 16/11/2015) – destaques não incluídos no original.
Infelizmente, ao se analisar as decisões de primeiro grau sobre o tema nos juizados, constata-se que o posicionamento acima ainda é raro. Na maioria das hipóteses, equipara-se todo e qualquer descumprimento contratual como situação geradora de danos morais.
Os fornecedores estão sendo “nivelados por baixo”. Parte-se da premissa de que toda e qualquer empresa ré numa ação de relação de consumo seja uma contumaz transgressora dos direitos consumeristas.
Não se pretende aqui defender a tese de que os danos morais não podem ser deferidos nas relações de consumo, mas que tal deferimento seja feito de forma mais criteriosa, condenando situações que de fato tenham exposto o consumidor à tamanha dor que seja razoável o pagamento de indenização por danos morais.
É certo que o mau fornecedor deve ser punido, e a prática constante de desrespeito ao consumidor deve ser banida, mas não se pode deferir, para toda e qualquer situação que fuja do inicialmente previsto, uma indenização por danos morais.
Somente o deferimento criterioso dos pedidos de dano moral nas relações de consumo é que vai contribuir para o desenvolvimento do nosso sistema. Permitir que as partes resolvam seus problemas sem a necessidade do Poder Judiciário é um objetivo que deve ser perseguido por todos os atores dessa relação na linha do que orienta o novo Código de Processo Civil e o novo Código de Ética da OAB. Será uma evolução tanto para o Direito do Consumidor como para as instituições brasileiras e para a nossa própria sociedade.
Os critérios são importantes para os dois lados, não só para que os fornecedores aprendam a respeitar os direitos expressos no Código de Defesa do Consumidor, como também para evitar que se criem verdadeiras “ilusões” nos consumidores, fazendo crer que toda e qualquer situação merece ser indenizada além dos prejuízos materiais.
Autor: Gilson Goulart Jr. é advogado especialista em Direito Civil e Processo Civil e chefe do Departamento de Direito Civil do escritório Arns de Oliveira & Andreazza Advogados Associados.