Independência de uns depende da morte de outros no Brasil

por Túlio Lima Vianna

A nominal independência política do Brasil, proclamada em 7 de setembro de 1822, não significou a independência do povo brasileiro. Pelo menos para a maior parte dele.

A elite econômica da época acabou criando um liberalismo sui generis no Brasil que visava à garantia de seus principais interesses: a manutenção das relações escravistas, a concentração da propriedade da terra e a consolidação da unidade imperial.

A Constituição de 1824 fundou um estado juridicamente desigual ao garantir direitos individuais à elite branca e tolerar a escravidão dos negros.

No bojo da Independência, a Constituição de 1824 produz algumas rupturas, ma non troppo, que fazem parte do universo liberal no conjunto das idéias fora do lugar da modernização à brasileira. Surgem as tais garantias individuais: “liberdade de manifestação de pensamento, proscrição de perseguições religiosas, a liberdade de locomoção, a inviolabilidade do domicílio e da correspondência, as formalidades exigidas para a prisão , a reserva legal, o devido processo, a abolição das penas cruéis e da tortura, a instransmissibilidade das penas, o direito de petição, a abolição de privilégios e foro privilegiado”. É lógico que tudo isto não poderia colidir com o “direito de propriedade em toda a sua plenitude” que, mantida a escravidão na letra da lei, instituiria a cilada da cidadania no Brasil, digamos a cidadania, que pontua até hoje os discursos do liberalismo da direita à terceira via no Brasil. (BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro: Rio de Janeiro: Revan, 2003. p.135)

Paradoxalmente, o escravo, que era coisa para o Direito Civil e mercadoria para a economia da época, podia ser sujeito ativo de crimes. Ironia perversa do liberalismo tupiniquim: o escravo só seria reconhecido como ser humano ao praticar crimes. Sua “independência civil” muita vez só era alcançada com sua condenação à morte.

A criminalização do negro no Brasil imperial estava diretamente relacionada ao fantasma das rebeliões que afligia as elites da época.

“No Rio de Janeiro do século XIX, as elites brancas lidam cotidianamente com o medo da insurreição negra e com os desdobramentos do fim da escravidão no seu cotidiano. […] Se o medo na Europa do século XIX era o medo da revolução, no Brasil e na América Latina esse temor era acrescido pelo fim da escravidão, não só pelo fim da brisa, mas também pela fantasia do desfecho brutal da escravatura.” (BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro: Rio de Janeiro: Revan, 2003. p.85)

É este medo do negro, do pobre, da rebelião que aflige o inconsciente coletivo da elite brasileira até os dias de hoje. Os quilombos converteram-se em favelas; os insurgentes em traficantes de drogas; a criminalização do negro em criminalização do pobre. E a guerra continua. O medo continua.

No Brasil do medo, os mass media noticiam: “Mendigo é encontrado morto na rua”, “Traficante é morto pela polícia”, “Menor mata adolescente para roubar um boné”. Tal como escravos, não são homens e mulheres, mas coisas que morrem e, muita vez, matam para roubar. Suas mortes representam menos para a nossa sociedade que a morte de um escravo no século XIX. Eles não têm donos.

A reação natural ao medo é a guerra ao inimigo, pois somente sua exclusão — sua morte — trará a paz. No dilema entre a independência ou morte, a elite brasileira optou por sua independência à custa da morte das massas.

A solução repressiva, no entanto, gera uma nova dependência das elites: a dependência do seu próprio medo. Os independentes estão presos em suas casas muradas, em seus carros blindados e em seus shopping centers.

Não há independência unilateral.

Para que Portugal reconhecesse sua independência política, o Brasil concordou em pagar-lhe 2 milhões de libras como compensação pela perda da antiga colônia (FAUSTO, Boris. História do Brasil. 12ª ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004. p.144).

Para que o Brasil se reconheça como independente, as elites econômicas terão que pagar às massas seus direitos à educação, saúde, trabalho, moradia e tantos outros garantidos na Constituição da República de 1988. A elite brasileira só proclamará a independência de seus medos, quando indenizar as massas pela miséria, pela exploração e pelas mortes causadas.

O dilema da “independência ou morte” só se resolverá quando a independência de uns não estiver mais condicionada à morte dos demais. Só assim os pobres se libertarão de seus cárceres e os ricos de seus medos.

Revista Consultor Jurídico

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