Autor: Francisco Sannini Neto (*)
O ato de indiciamento representa um dos momentos mais críticos dentro do inquérito policial, especialmente em virtude da ausência de minuciosa regulamentação legal sobre o tema. É certo que a Lei 12.830/2013 promoveu um considerável avanço nesse sentido, ao dispor no seu artigo 2º, parágrafo 6º que o “indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias”.
Trata-se, portanto, de ato administrativo, mas com reflexos jurídicos extremamente importantes, razão pela qual, deve ser precedido de uma decisão fundamentada, onde o delegado de polícia tem o dever de expor os substratos fáticos e jurídicos que dão subsídio às suas conclusões acerca da autoria e materialidade delitiva.
É inegável que o indiciamento repercute de maneira significativa na esfera dos direitos fundamentais do investigado, conforme bem apreendido por Sylvia Helena Steiner:
O indiciamento formal tem consequências que vão muito além do eventual abalo moral que pudessem vir a sofrer os investigados, eis que estes terão o registro do indiciamento nos Institutos de Identificação, tornando assim público o ato de investigação. Sempre com a devida vênia, não nos parece que a inserção de ocorrências nas folhas de antecedentes comumente solicitadas para a prática dos mais diversos atos da vida civil seja fato irrelevante. E o chamado abalo moral diz, à evidência, com o ferimento à dignidade daquele que, a partir do indiciamento, está sujeito à publicidade do ato[1].
Sob o aspecto jurídico, por outro lado, tendo em vista que a decretação de medidas cautelares depende, entre outros requisitos, da prova da materialidade do crime e de indícios mínimos de autoria, o indiciado estará sujeito a ter uma medida dessa natureza decretada em seu desfavor, uma vez que os fundamentos do indiciamento são compatíveis com a sua adoção. Além disso, este ato também indica que o indiciado provavelmente será submetido à fase processual da persecução penal, correndo o risco de ser condenado e até preso.
Nesse cenário, considerando, inclusive, o estado de inocência assegurado pela Constituição da República e por Tratados Internacionais, é indispensável que o indiciamento seja devidamente fundamentado pelo delegado de polícia, nos termos da Lei 12.830/2013, pois, caso contrário, restaria caracterizado constrangimento ilegal passível de ser combatido por meio de Habeas Corpus[2].
Em outras palavras, muito embora não seja exigido um juízo de certeza quanto à autoria nesta etapa da persecução penal, é preciso que haja elementos mínimos aptos a justificar que o indiciado concorreu para o delito em exame, sob pena de constituir um abuso na atividade investigativa exercida pelo Estado através das polícias judiciárias[3].
Ressalte-se, todavia, que o indiciamento possui um caráter dúplice, não servindo exclusivamente de instrumento para investigação criminal, mas, sobretudo, como um meio de promoção dos princípios constitucionais do contraditório e ampla defesa durante a persecutio criminis extra juditio. Isto, pois, através deste ato o indiciado passa a ter ciência dos fatos que lhes são imputados, bem como dos tipos penais que, em princípio, ele teria violando, podendo, a partir daí, defender-se da maneira que melhor lhe convier. Não por acaso, defendemos que na sua decisão de indiciamento o delegado de polícia determine, ainda, a entrega de um “termo de ciência” ao indiciado, nos moldes da “nota de culpa” quando se trata de prisão em flagrante. Ao discorrer sobre o indiciamento, Aury Lopes Jr. assevera o seguinte:
Este instituto jurídico pressupõe a existência de indícios de autoria em um grau mais elevado do que na condição de mero suspeito, refletindo uma probabilidade de o indiciado ser o agente do crime. Indícios são provas circunstanciais, sinais aparentes e prováveis de que uma coisa existe. Se antes já se repudiava o indiciamento quando resultante de ato arbitrário da autoridade policial, porém sem nenhuma previsão formal, agora o Delegado de Polícia possui o encargo legal de fundamentar de forma coerente o ato de indiciamento, mostrando as provas e circunstâncias que apontam para a comprovação da materialidade e da provável autoria[4].
Em sentido semelhante, vale a pena reproduzir o escólio do ministro Celso de Mello sobre o tema:
Inquestionável reconhecer, em função do que se vem de expor, que assume significativo relevo o indiciamento no modelo que rege, em nosso País, o sistema de investigação penal pela Polícia Judiciária, considerada a circunstância – juridicamente expressiva – de que o indiciamento, que não se reduz à condição de ato estatal meramente discricionário, supõe, para legitimar-se em face do ordenamento positivo, a formulação, pela autoridade policial (e por esta apenas), de um juízo de valor fundado na existência de elementos indiciários idôneos que deem suporte à suspeita de autoria ou de participação do agente na prática delituosa (STF, HC 133.835/DF, Rel. Min. Celso de Mello, 18.04.2016 – grifamos).
Feitas essas breves considerações acerca do indiciamento, em outro trabalho ousamos classificar este ato de polícia judiciária em algumas espécies[5]. Visando complementar essa classificação, destacamos o ora denominado “indiciamento complexo”, que se caracteriza nas situações em que a pessoa investigada dispõe de foro por prerrogativa de função[6].
Nos termos da decisão exarada pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, em Questão de Ordem suscitada no Inquérito 2.411, firmou-se o entendimento de que o delegado de polícia não poderia indiciar parlamentares sem prévia autorização do ministro-relator do inquérito, ficando a própria instauração do procedimento investigativo vinculada à esta autorização[7]. Conclui-se, pois, que o mesmo raciocínio deve ser aplicado às demais autoridades com prerrogativa de foro, como governadores e prefeitos, por exemplo. Ao analisar a referida decisão, Renato Brasileiro concluiu o seguinte:
Portanto, a partir do momento em que determinado titular de foro por prerrogativa de função passe a figurar como suspeito em procedimento investigatório, impõe-se a autorização do Tribunal (por meio do Relator) para o prosseguimento das investigações. Assim, caso a autoridade policial que preside determinada investigação pretenda intimar autoridade que possui foro por prerrogativa de função, em razão de outro depoente ter afirmado que o mesmo teria cometido fato criminoso, deve o feito ser encaminhado previamente ao respectivo Tribunal, por estar caracterizado procedimento de natureza investigatória contra titular de foro por prerrogativa de função[8].
Sendo assim, tendo em vista que o indiciamento de autoridade com foro por prerrogativa de função depende de prévia autorização do Tribunal competente, sob pena de nulidade do ato, resta evidente que a sua formalização deve passar por uma espécie de “filtro” do Poder Judiciário, cabendo ao ministro/desembargador-relator verificar a existência de justa causa para tanto.
Ora, se a decisão acerca do indiciamento não pode ser tomada de forma direta pelo delegado de polícia, dependendo de manifestação do Poder Judiciário sobre os elementos coligidos durante o inquérito policial para se perfazer, pode-se afirmar que estamos diante de um indiciamento complexo, numa analogia com a classificação adotada em relação aos atos administrativos.
De acordo com a doutrina[9], atos complexos são formados pela conjunção de vontades de mais de um órgão ou agente, sendo que a última manifestação é elemento de existência do ato. Somente após esta, o ato administrativo torna-se perfeito, ingressando no mundo jurídico. Fenômeno semelhante ocorre nos casos de indiciamento de autoridades com foro por prerrogativa de função, onde se verifica uma vontade inicial (do delegado de polícia) no sentido de provocar o Poder Judiciário visando a concretização deste ato de polícia judiciária.
Nesse contexto, ainda nos valendo das lições administrativistas, pode-se falar em um efeito prodrômico do indiciamento, na medida em que a manifestação do delegado de polícia faz surgir o dever da autoridade judicial também se manifestar para que o ato se aperfeiçoe. Como o surgimento desse dever ocorre antes do aperfeiçoamento do indiciamento, é possível sustentar a existência do efeito prodrômico ou preliminar.
Em tais situações, portanto, o delegado de polícia deverá representar pelo indiciamento da autoridade investigada, haja vista que a sua representação constitui uma exposição de fatos seguida de uma sugestão juridicamente fundamentada. É por meio desse instrumento que será demonstrada a existência de justa causa para a formalização do ato.
Mister consignar, data máxima vênia, que a exigência de prévia autorização do Judiciário para a formalização do indiciamento não está de acordo com um Processo Penal Democrático, indo de encontro com os princípios constitucionais da isonomia e da imparcialidade do juiz, aviltando por completo o sistema acusatório.
Era esse, aliás, o posicionamento que prevalecia no STF antes da decisão acima mencionada. Em um caso concreto em que Senador pleiteava a anulação de seu indiciamento, o plenário decidiu que como não há dispositivo legal que proíba a efetivação deste ato pelo próprio delegado de polícia, nada impediria a instauração de inquérito policial ou o formal indiciamento dessas autoridades, cabendo ao Tribunal competente apenas a eventual apreciação de medida sujeita à cláusula de reserva de jurisdição[10]. No mesmo diapasão são as lições de Henrique Hoffmann, senão vejamos:
O constituinte originário consagrou o foro privilegiado na Constituição de 1988 por meio da expressão processar e julgar (não abrangendo o termo investigar). Nessa esteira, a prerrogativa de foro é critério exclusivo de determinação da competência originária do tribunal, quando do oferecimento da denúncia ou, eventualmente antes dela, se se fizer necessária diligência sujeita à cláusula de reserva de jurisdição. Inexiste na Constituição Federal dispositivo demandando autorização judicial para a instauração de inquérito policial ou para o indiciamento do agente público com foro especial[11].
Reforçando esses argumentos, lembramos que a decisão de indiciamento implica em um juízo de probabilidade em relação à autoria, juízo este que não cabe ao Poder Judiciário nesta fase de investigação, constituindo, nesse contexto, verdadeira antecipação da análise do mérito.
Como é cediço, os requisitos para o indiciamento são semelhantes aos exigidos para o oferecimento da denúncia, ou seja, prova da materialidade do crime e indícios suficientes de autoria. Assim, a representação do delegado de polícia para o indiciamento, na prática, teria quase a mesma força da denúncia, uma vez que propiciaria uma antecipação na análise do Poder Judiciário sobre os seus requisitos, deixando transparecer, ainda na fase de investigação, o destino final daquele caso, qual seja, um inevitável processo.
Por óbvio, o indiciamento efetivado diretamente pelo delegado de polícia, independentemente de autorização judicial, também representa um indicativo do futuro de determinado caso penal, haja vista que neste ato são expostas as conclusões da Polícia Judiciária (Civil ou Federal) acerca dos fatos apurados. Contudo, em tais situações não há qualquer manifestação do Poder Judiciário ou do Ministério Público, daí se dizer que “o indiciado de hoje nem sempre será o acusado de amanhã”.
Por outro lado, no indiciamento complexo, que depende de prévia autorização judicial, uma eventual “decisão positiva” resultará num legítimo “sinal verde” para que o Ministério Público ofereça a denúncia, gerando uma indesejável confusão entre as etapas que constituem a persecução penal.
Frente ao exposto, concluímos que o aqui denominado indiciamento complexo é inconstitucional por ferir os princípios da isonomia (se a Constituição não fez distinção, não cabe ao intérprete fazê-la) e da imparcialidade do juiz (que proferirá uma análise de mérito durante a investigação), ofendendo, outrossim, o sistema acusatório, que veda posturas ativas do Poder Judiciário antes da fase processual.
Autor: Francisco Sannini Neto é delegado da Polícia Civil de São Paulo, mestrando em Direitos Difusos e Coletivos e pós-graduado com especialização em Direito Público. É professor da Graduação e da Pós-graduação da UNISAL/Lorena.