Indiciamento por infração de menor potencial é incompatível com a Lei 9.099/95

Autor: Gustavo de Mattos Brentano (*)

 

Com o advento da Constituição Federal de 1988, determinou o legislador constituinte a criação de “juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumariíssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau”, consoante artigo 98, inciso I. No que tange ao Juizado Especial Criminal, o objetivo da aludida norma constitucional, de eficácia limitada, foi desburocratizar e simplificar a Justiça penal, propiciando, segundo Moraes, “solução rápida, mediante consenso das partes ou resposta penal célere para as infrações penais de menor potencial ofensivo”.

Visando então regulamentar a matéria, foi promulgada a Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995, a qual, ao dispor sobre o Juizado Especial Criminal, lhe atribuiu competência para a conciliação, o julgamento e a execução das infrações penais de menor potencial ofensivo, entendidas estas como as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, cumulada ou não com multa (artigos 60 e 61). Estabeleceu, ainda, como critérios orientadores do processo criminal, a oralidade, a informalidade, a economia processual e a celeridade, e como seu objetivo, sempre que possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade, mediante a aplicação dos institutos despenalizadores nela previstos (artigo 62).

De modo a simplificar a fase policial, denominada na lei como fase preliminar, e seguindo os critérios orientadores do Juizado Especial Criminal, em especial a celeridade, previu a Lei 9.099/95 que a autoridade policial, ao tomar conhecimento da prática de infração penal de menor potencial ofensivo, em vez de instaurar inquérito policial, como determina o Código de Processo Penal, lavrará termo circunstanciado, a ser encaminhado imediatamente ao Poder Judiciário, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários. Não estabeleceu, portanto, a realização de maiores diligências investigativas pela autoridade policial, como a oitiva das partes envolvidas no fato e de eventuais testemunhas, sendo o termo circunstanciado encaminhado ao Juizado Especial Criminal tão somente com um breve relato da vítima quando do registro da ocorrência policial.

Nessa senda, considerando a simplicidade do procedimento policial instaurado quando do cometimento de infrações penais de menor potencial ofensivo, no qual não há uma devida apuração dos fatos, mas apenas a identificação das partes, questiona-se se seria cabível o indiciamento do autor do fato pela autoridade policial. Primeiramente, cumpre esclarecer que, nos termos do artigo 2º, parágrafo 6º, da Lei 12.830/13, “o indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias”.

Portanto, é através do indiciamento, ato formal e complexo, que a autoridade policial aponta o suspeito/acusado como autor de um fato típico, ilícito e culpável, revelando-se necessária a existência de prova da materialidade do fato e indícios suficientes de sua autoria. Segundo Lopes Jr., “o indiciamento é, assim, um ato posterior ao estado de suspeito e está baseado em um juízo de probabilidade, e não de mera possibilidade”, podendo-se afirmar que:

A situação do indiciado supõe um maior grau de sujeição à investigação preliminar e aos atos que compõem o inquérito policial. Também representa uma concreção da autoria, que será de grande importância para o exercício da ação penal. Logo, é inegável que o indiciamento produz relevantes consequências jurídicas.

Logo, considerando que, para o indiciamento, deve estar comprovada a materialidade da infração penal e haver indícios convincentes de que o investigado é o seu autor, elementos que nem sempre estão presentes em sede de termo circunstanciado, haja vista a ausência de uma aprofundada investigação policial, revela-se bastante questionável o indiciamento nas infrações penais de menor potencial ofensivo. Além disso, o indiciamento traz inúmeros transtornos ao indiciado, sendo as consequências jurídicas dele advindas incompatíveis, portanto, com a simplicidade do procedimento policial, o qual, repita-se, prescinde de uma maior dilação investigatória apta a gerar uma análise técnico-jurídica do fato (fundamentação) para que o delegado de polícia possa indiciar o investigado.

Por outro lado, objetivando a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade, a Lei 9.099/95 criou institutos despenalizadores, como a composição civil dos danos e a transação penal, que acarretam a antecipada extinção da punibilidade, evitando-se, assim, os efeitos estigmatizantes do processo penal. Em relação à transação penal, por exemplo, o autor do fato, sem qualquer admissão de culpa, aceita a proposta do Ministério Público de aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multa, o que inclusive não constará de seus antecedentes criminais, apenas impedindo nova concessão do mesmo benefício no prazo de cinco anos.

Por conseguinte, como bem destaca Sannini Neto, o indiciamento do autor de uma infração penal de menor potencial ofensivo “configura um contrassenso, pois o indiciado terá seu nome lançado nos sistemas policiais sem sequer ser condenado”, ou seja, mesmo se optar pela composição civil dos danos ou pela transação penal, o indiciado permanecerá cadastrado nos registros de antecedentes policiais. Assim, conclui que “tal ato está absolutamente em confronto com o espírito conciliador e despenalizador da mencionada Lei”, igual conclusão a que chega Lobosco:

Considerando que os institutos despenalizadores da lei 9.099/95 têm como intuito dar tratamento mais brando ao praticante de crime de menor potencial ofensivo, assegurando-lhe a inexistência de registro de antecedente criminal, efeitos civis e reincidência, havendo somente possibilidade de registro interno no Poder Judiciário, sem a possibilidade de consulta por terceiros, revela-se absolutamente incoerente defender o indiciamento para tal espécie de delito, vez que esta providência procedimental intermediária causaria maior prejuízo ao réu se comparada à medida final da demanda.

Dessa forma, seja pela simplicidade do termo circunstanciado, sem profundidade investigatória, seja pelas consequências jurídicas advindas da alteração do estado de investigado para indiciado, há de se concluir que o indiciamento do autor de uma infração penal de menor potencial ofensivo se mostra incompatível com o espírito da Lei 9.099/95.

 

 

 

Autor: Gustavo de Mattos Brentano é delegado de polícia do Rio Grande do Sul e pós-graduando em Direito Penal e Processo Penal Uniritter.


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