por Kiyoshi Harada
Muita indignação tem causado o artigo 9º da MP nº 237, de 27 de janeiro de 2005, que, na prática, regulariza as operações de crédito irregularmente feitas a partir de 29 de junho de 2.000, destinadas à implantação de projeto de melhoria em sistemas de iluminação pública, no âmbito do Programa Nacional de Iluminação Pública Eficiente — Reluz.
Essa norma retroativa, de efeito concreto, veio à luz no bojo de uma medida provisória que autoriza a União a prestar auxílio financeiro a entes políticos regionais e locais, com o objetivo de fomentar as exportações do País. Não se pode negar o escopo político-social relevante.
A ajuda financeira da União ocorre por meio das chamadas transferências voluntárias previstas no artigo 25 da LRF que, dentre outros requisitos, impõe ao ente político favorecido a observância do limite de operações de crédito, inclusive por antecipação de receitas.
A LRF aplica, pois, a chamada sanção institucional ao ente político cujo governante descumpriu a lei. Pior ainda, no caso de descumprimento do limite de despesa de pessoal, por qualquer Poder. Nessa hipótese, o ente político ao qual pertence aquele Poder infrator fica proibido de receber transferências voluntárias, de obter garantias, direta ou indireta, de outro ente político e de contratar operações de crédito (art. 23 I, II e III da LRF).
O orçamento anual da União de 2005 contempla, a título de transferências voluntárias para Estados, DF e Municípios, a cifra nada desprezível de R$ 25.938.372.901,00, despertando o justo desejo dos atuais Prefeitos de não ver barrada a ajuda financeira da União, por atos irregulares praticados por seus antecessores. Nesse particular, a LRF merece ser revista, pois a punição institucional prevista é incompatível com a temporariedade do mandato do governante.
Como alguns Municípios desrespeitaram a LRF, a MP 237/05 que autorizou a União realizar as transferências voluntárias para Estados, DF e Municípios, regularizou aquelas operações de créditos irregularmente contratadas pelas administrações anteriores, para não penalizar as entidades políticas destinatárias, por ação ilegal dos governantes de então.
Feita essa ressalva do ponto de vista técnico-jurídico, vejamos as conseqüências jurídicas de outras naturezas, decorrentes de operações de crédito feitas ao arrepio da LRF.
As operações de crédito acima dos limites de endividamento fixados pelo Senado Federal (art. 52 VII da CF), por isso mesmo, realizadas sem autorização ministerial, para implantação do Projeto RELUZ não se justificam, nem mesmo sob o enfoque estritamente financeiro para os Municípios que, à luz da EC nº 39, de 19.12.2002, celeremente, instituíram a contribuição para custeio do serviço de iluminação pública. Esse escorchante tributo, de contribuição social só tem o nome. Na realidade, mais se aproxima da lendária figura do monstro de sete barbas da Mesopotâmia.
Em termos jurídicos a contratação da operação de crédito em tela pode ter diversas conseqüências.
Se o Município instituiu um tributo específico, para custear o serviço de iluminação pública, fica difícil de entender a necessidade de lançar mão de receita pública creditícia para o mesmo fim. Toda receita pública, tributária ou creditícia, não importa, deve ingressar no Tesouro para daí sair apenas e tão somente em forma de pagamento de despesa autorizada, vale dizer, na forma das despesas fixadas na Lei Orçamentária Anual. Logo, não pode haver operação de crédito para custear o Projeto RELUZ, sem prévia fixação de despesas a esse título.
Em tese, há, pois desvio de finalidade, o que caracteriza ato de improbidade administrativa, previsto no art. 11, I da Lei nº 8.429/92, que sujeita o infrator ao ressarcimento do dano, se houver, à perda de função pública, à suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos, e ao pagamento da multa de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente público.
Outrossim, a realização de operação de crédito, sem prévia autorização legislativa, ou com inobservância de limite, condição ou montante estabelecido em lei ou Resolução do Senado Federal sujeita o governante responsável ao crime contra as finanças públicas, definido no art. 359-A do CP (dispositivo acrescido pela lei nº 10,028/00), que comina a pena de reclusão de um a dois anos.
No nosso entender, a MP 237/05 apenas remove a punição institucional dos entes políticos, cujos governantes cometeram irregularidades. Nenhuma influência tem nos campos administrativo e penal. Aliás, em relação à matéria penal, há expressa proibição constitucional de legislar por via de Medida Provisória (art. 62, § 1º, b da CF).
Cabe, pois, ao Ministério Público tomar as medidas judiciais cabíveis, tanto para apuração do ato de improbidade administrativa, como também, para a responsabilização penal dos agentes públicos infratores.
A indignação generalizada contra essa MP 237/05 tem a sua importância e relevância, à medida que representa uma reação da sociedade contra o festival de gastança, que acaba sempre ocasionando a elevação desmesurada de tributos, como aquela representada pela MP 232/04, conhecida como ‘tsunami tributário’ tal o seu efeito devastador, não só, pelo aumento tributário em si, como também, pela supressão parcial do mecanismo de defesa do contribuinte acuado e acossado.
No prefácio do nosso livro, Lei de responsabilidade fiscal, Editora Juarez de Oliveira, 2002, consignamos que não há lei capaz de transformar o incompetente e ímprobo em competente e probo, ainda que tutelada por normas penais.
É preciso impor o primado do direito e punir os infratores de normas financeiras. É preciso o concurso da cidadania para reverter o quadro reinante e banir da vida pública os incompetentes e os ímprobos. Somente assim o País poderá desenvolver-se social, econômica e politicamente consolidando um verdadeiro Estado Democrático de Direito.
Revista Consultor Jurídico, 27 de Março de 2005