Por Robson Pereira
Existe um manto, tecido com séculos de dominação econômica e cultural, que torna invisível e compromete de forma significativa o fim da exploração da mão-de-obra infantil no Brasil, principalmente no ambiente doméstico. Mesmo na ausência de estatísticas mais precisas, estima-se que pelo menos 200 mil crianças na faixa etária dos 5 aos 13 anos suportam obrigações típicas de adultos, em prejuízo de seu desenvolvimento físico e social, seja em suas próprias casas ou, como é mais frequente, em casa de terceiros.
“O trabalho infantil doméstico no Brasil é um fenômeno de larga extensão, decorrente de causas complexas referendadas por mitos culturais que legitimam e ocultam condição de exploração da criança e do adolescente”, afirmam Josiane Rose Petry Veronese e André Viana Custódio, em Trabalho Infantil Doméstico no Brasil, publicado pela Saraiva. “Trata-se de hábito bastante arraigado na sociedade brasileira, cuja origem remonta ao período da escravidão”, descrevem, ao guiarem o leitor por uma trajetória que se confunde com a própria história social da infância no Brasil.
Embora os fatores econômicos apresentem-se como os principais determinantes do ingresso precoce no mercado de trabalho, Josiane e André, ambos da Universidade Federal de Santa Catarina, advertem que não se pode desconsiderar o significado cultural e tradicional do trabalho infantil no imaginário familiar, seja como aspecto educativo ou moralizador. Na análise eles procuram desconstruir vários mitos que tradicionalmente cercam o uso da mão-de-obra infantil e que, na prática, apresentam-se como verdadeiros obstáculos ao combate à exploração.
Argumentos como “o trabalho não faz mal a ninguém” e que “é melhor trabalhar do que roubar”, entre vários outros, têm origem histórica e foram operados estrategicamente pelo Estado, pelo mercado e pela sociedade, de acordo com os interesses dominantes. O próprio Direito, segundo os autores, ocupou papel relevante na produção e institucionalização desses valores, com vasta produção jurídica estabelecida principalmente a partir do final do século XIX.
Os dois pesquisadores entendem os direitos da criança e do adolescente como uma conquista recente, que tem como marco fundamental a Constituição de 1988, “que baniu definitivamente o menorismo do ordenamento jurídico brasileiro e reconheceu crianças e adolescentes como sujeitos de direito”. No livro, eles explicam que durante muito tempo a expressão “menor”, habitualmente relacionada à condição de abandono ou delinquência, serviu para distinções arbitrárias entre crianças favorecidas e desfavorecidas. “As primeiras eram reconhecidas em sua condição de infantes, e as últimas, alçadas à condição de objeto de políticas, geralmente repressivas e negadoras de sua condição de sujeito histórico”, afirmam.
Embora identifiquem vários avanços recentes a partir da adoção da Teoria da Proteção Integral pela Constituição de 1988, os dois pesquisadores da UFSC consideram que o ideal da infância constituído na modernidade ainda está distante de sua real concretização. No livro eles situam o Direito da Criança e do Adolescente como instrumento indispensável para a ruptura das práticas estabelecidas de exploração do trabalho infantil doméstico e advertem que erradicação do trabalho infantil não se faz somente com o afastamento da criança e do adolescente do trabalho. “O sucesso depende da aplicação de um conjunto de medidas jurídicas e políticas de proteção e de atendimento às crianças, aos adolescentes e às famílias”, concluem.