por José Levi Mello do Amaral Júnior
Dentre as inovações da Emenda Constitucional 45, de 8 de dezembro de 2004 (Reforma do Poder Judiciário), está a argüição de relevância no recurso extraordinário. A Emenda 45 acrescentou o seguinte parágrafo 3º ao artigo 102 da Constituição de 1988:
“§ 3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros.”
A novidade tem despertado pouca atenção. No entanto, depois da súmula com efeito vinculante (artigo 103-A da Constituição de 1988, acrescentado pela Emenda 45), é a maior inovação em matéria de controle da constitucionalidade trazida pela Reforma.
As demais inovações relativas ao controle da constitucionalidade limitam-se a colocar em nível constitucional normas já constantes da Lei 9.868, de 10 de novembro de 1999.
É o caso da legitimidade ativa do Governador e da Mesa da Câmara Legislativa do Distrito Federal para propor ação direta de inconstitucionalidade (incisos IV e V do artigo 103 da Constituição de 1988, com a redação da Emenda 45, que correspondem aos incisos IV e V do artigo 2º da Lei 9.868, de 1999) e da extensão do efeito vinculante à ação direta de inconstitucionalidade (parágrafo 2º do artigo 102 da Constituição de 1988, com a redação da Emenda 45, que reflete o parágrafo único do artigo 28 da Lei 9.868, de 1999). Ambas encontram respaldo na jurisprudência do STF (Medida Cautelar na ADI 645-2/DF, relator ministro Ilmar Galvão, julgada em 11 de dezembro de 1991, e Agravo Regimental na Reclamação 1.880-6/SP, relator ministro Maurício Corrêa, julgado em 7 de novembro de 2002).
Há uma outra novidade esboçada: a total identificação entre as ações direta de inconstitucionalidade e declaratória de constitucionalidade. Por enquanto, somente foram equiparadas quanto à legitimação ativa (quem pode ajuizá-las). Em etapa futura da Reforma serão equiparadas quanto ao objeto (lei ou ato normativo federal ou estadual em face da Constituição de 1988).
A argüição de relevância não é novidade no Direito brasileiro. Na Reforma do Poder Judiciário de 1977, procedida por meio da Emenda Constitucional 7, de 13 de abril de 1977, a argüição de relevância foi introduzida na Constituição de 1967 nos seguintes termos:
“Art. 119. […]
“§ 1º As causas a que se refere o item III, alíneas a e d, deste artigo [recurso extraordinário – nota nossa], serão indicadas pelo Supremo Tribunal Federal no regimento interno, que atenderá à sua natureza, espécie, valor pecuniário e relevância da questão federal.
[…]
§ 3º O regimento interno estabelecerá:
c) o processo e o julgamento dos feitos de sua competência originária ou recursal e da argüição de relevância da questão federal.” (grifos nossos)
Outras variantes da argüição de relevância são a transcendência do recurso de revista (artigo 896-A da Consolidação das Leis do Trabalho, acrescentado pela Medida Provisória 2.226, de 4 de setembro de 2001) e a hipótese de argüição de descumprimento de preceito fundamental constante do inciso I do parágrafo único do artigo 1° da Lei 9.882, de 3 de dezembro de 1999.
O Regimento Interno do STF — que tinha, sob a Constituição de 1967, força de lei — disciplinou a argüição de relevância em seus artigos 327 a 329. Tais dispositivos não estão mais vigentes. Isso porque o texto constitucional originário de 1988 não previa a argüição de relevância (o Regimento Interno do STF não foi, portanto, recepcionado no particular) e porque os artigos 327 a 329 não foram expressamente repristinados (revigorados) pela Emenda 45 (parágrafo 3º do artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil).
Ainda assim, o Regimento Interno do STF ajuda a compreender o instituto em seu formato atual. Ademais, será útil na elaboração da lei reclamada pelo novo parágrafo 3º do artigo 102 da Constituição de 1988.
O parágrafo 1º do artigo 327 do Regimento Interno do STF definia questão federal relevante:
“Entende-se relevante a questão federal que, pelos reflexos na ordem jurídica, e considerados os aspectos morais, econômicos, políticos ou sociais da causa, exigir a apreciação do recurso extraordinário pelo Tribunal.”
A relevância atrelada aos “reflexos na ordem jurídica” da questão federal em julgamento (Emenda 7 à Constituição de 1967) parece corresponder ao dever do recorrente de “demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso” (Emenda 45 à Constituição de 1988).
“Repercussão geral (…) nos termos da lei”, é fórmula fluida, aberta. Desta forma, muito provavelmente, a sua regulamentação legal deixará ainda mais evidentes a subjetividade e a discricionariedade do STF ao apreciar o que é e o que não é relevante.
Tem-se, aí, norma coerente com o papel de uma Suprema Corte que exercita jurisdição constitucional. Competindo ao STF, precipuamente, a guarda da Constituição (caput do artigo 102 da Constituição de 1988), é correto permitir-lhe decidir as causas que vai ou não julgar. É assim na Suprema Corte dos Estados Unidos e em boa parte dos Tribunais Constitucionais europeus.
Diga-se mais: trata-se, sim, de permitir ao STF decidir politicamente as causas que vai ou não julgar. Ora, sendo o STF o guarda da Constituição e sendo a Constituição um texto marcadamente político, é natural que as decisões do STF tenham, também, caráter político (o que não significa decisões ideológicas ou partidárias, mas, sim, decisões que concretizam os valores e os fins da Constituição).
O aspecto mais curioso da atual argüição de relevância é que ela foi concebida do avesso. Com efeito, trata-se de uma argüição de “irrelevância”. Em princípio, parece, presume-se a relevância. A irrelevância somente será reconhecida se neste sentido se manifestarem dois terços dos Ministros (são necessários, no mínimo, oito votos para a configuração da irrelevância).
No modelo da Emenda 7 a argüição estava acolhida (isto é, o recurso estava admitido) se neste sentido se manifestassem quatro ou mais Ministros (inciso VII do parágrafo 5º do artigo 328 do Regimento Interno do STF).
Por outro lado, no modelo da Emenda 45 basta a manifestação de quatro Ministros para que a argüição não seja rejeitada, isto é, seja acolhida.
A diferença é sutil: no modelo anterior, exigia-se o reconhecimento da relevância da matéria; no modelo atual, exige-se o reconhecimento da irrelevância da matéria.
No entanto, a maioria requerida para o reconhecimento da relevância é idêntica nos dois modelos, anterior e atual. Naquele, os votos de quatro ou mais Ministros determinavam a relevância. Nesse, os votos de quatro Ministros já são suficientes para impedir o reconhecimento da irrelevância, isto é, a matéria é considerada relevante e o recurso extraordinário é apreciado.
Outra questão interessante é a necessidade ou não da elaboração da lei a que se refere o parágrafo 3º do artigo 102 da Constituição de 1988 para que possa ser manejada a argüição de relevância.
A Emenda 45 confia à lei os parâmetros iniciais do que é ou não relevante (“repercussão geral … nos termos da lei”), o que conduz à conclusão de que se trata de norma carente de regulamentação. O artigo 7º da Emenda 45 (que fixa prazo para a elaboração dos projetos de lei necessários à regulamentação da matéria nela tratada) reforça esta conclusão. De toda sorte, os parâmetros que a lei trouxer serão paulatinamente desdobrados e concretizados pela jurisprudência do STF.
Tem-se, aqui, inovação constitucional importante e que deve ser compreendida juridicamente, sem paixões. Já existiu no Direito brasileiro. Foi abandonada quando da concepção da Constituição de 1988. Foi considerada — equivocadamente — um “entulho autoritário”. Trata-se, isso sim, de norma comum e necessária ao bom desempenho da jurisdição constitucional.
A súmula com efeito vinculante, por si só, não garante um desafogo no número de processos que abarrotam o STF. Talvez reduza o número de recursos extraordinários. No entanto, possivelmente, implicará aumento no número de reclamações (alínea “l” do inciso I do artigo 102 da Constituição de 1988). Por outro lado, a argüição de relevância poderá resultar um melhor filtro nas causas julgadas pelo STF. Há que confiar na prudência do STF na escolha — isso mesmo, “na escolha” — de tais causas.
Revista Consultor Jurídico