Inteligência jurídica: os confitos e os direitos da vida digital

Hugo Cesar Hoeschl*

O ritmo da evolução tecnológica está causando forte impacto em diversos ramos da ciência, e o mundo jurídico não foge à regra.

Tal contexto tem provocado a discussão de inúmeras questões na esfera do Direito e da Ciência Jurídica. Historicamente, a aglutinação de acontecimentos ao redor de determinados fatos relevantes produz direitos orientados por um mesmo referencial. Surge um “momento de direitos”, que alguns autores têm chamado de “geração”. É possível discordar do termo. “Dimensão” é uma expressão, por ora, mais apropriada, pelas seguintes razões:

1- Atemporalidade. Não há uma sequência temporal que induza à conclusão de que uma das dimensões precede ou sucede as outras. Nem é possível, da mesma forma, afirmar que uma surge em função do esgotamento da anterior. Igualmente, não cabe dizer que a preocupação com um dos temas é mais atual do que as demais. E também é dificultoso fazer uma vinculação histórica específica com o surgimento de cada um dos momentos. A discussão sobre as formas de governo, por exemplo, é quase tão antiga quanto o próprio homem, mas nossa história constitucional ainda não festejou seu primeiro milênio. Da mesma forma, muito antes do surgimento das atuais discussões sobre a bioética já se discutia, na Roma antiga, questões ligadas aos núcleos familiares, à adoção e à paternidade.

2 – Coexistência. As dimensões coexistem. A preocupação com todas é igual, da mesma ordem, ao mesmo tempo. Assim, a atenção dispensada a elas deve ser igualitária, em paralelo múltiplo. Não há prioridade de implementação.

3 – Ausência de hierarquia. A importância entre elas é igualitária, de forma a desautorizar qualquer afirmativa no sentido de que um dos temas aglutinadores seja mais importante que qualquer dos outros. As preocupações e questionamentos em torno do Estado têm a mesma relevância daquelas ligadas à ecologia ou às relações de trabalho ou a qualquer dos referenciais apontados a seguir.

A primeira dimensão surge com a passagem do Estado de natureza para o estado civil. A segunda com a necessidade de regulamentação da vida privada, orientada pelos direitos civis. A terceira vem em razão das discussões sobre ampliação do exercício do poder, os direitos políticos. A quarta está ligada às questões de natureza coletiva, quando surgem os direitos sociais, influenciados pelo trabalho em massa. Os direitos difusos, principalmente nas questões ambientais e de consumo, provocaram uma nova aglutinação, de muito destaque na atualidade, sedimentando a quinta dimensão. Os temas ligados às questões da Bioética, como manipulação genética, transplantes de órgãos e hibridação homem/máquina, entre outros, motivam a sexta dimensão.

Realidade Virtual, Inteligência Artificial e Internet são os principais acontecimentos ligados à telemática. Centralizam a discussão sobre o direitos de sétima dimensão.

No tocante à sétima dimensão, a armazenagem computacional e respectivo processamento estão ligados diretamente ao centro do problema. A atividade do computador começa no “bit”, um registro binário. Passa pelo “byte”, um conjunto de bits que armazena o equivalente a um caracter. Em seguida tem-se os dados, depois as informações (dados especificamente ordenados). Após, o raciocínio (informações processadas) e o conhecimento. O último momento (até agora) é a inteligência.

Por outro lado, os conflitos ligados à vida digital estão acontecendo, tipicamente, num confronto entre blocos, da seguinte forma:

A-. Entre as grandes empresas mundiais. Exitem, hoje, no plano internacional, empresas ligadas ao “software” e outras ao “hardware” praticando uma “dobradinha” de dominação econômica. Inobstante, elas competem todas entre si.

B-. Entre essas e as pequenas empresas nacionais. É praticamente impossível a competição em condições de igualdade entre elas. As alternativas jurídicas para minimizar a inferioridade das segundas estão localizadas prioritariamente em ações governamentais, na área de tributos, taxações e incentivos. Porém, é necessário enfatizar: o domínio da tecnologia da produção de equipamento e programas na área da telemática é altamente estratégico no contexto atual. Os desenvolvedores nacionais (empresas, universidades, órgãos de pesquisa, profissionais da área, etc.) devem ser amplamente estimulados.

C-. Entre a soma das empresas, pequenas, médias, grandes e gigantes, de um lado, e os consumidores, de outro. Os padrões estabelecidos pelas parcerias empresariais da revolução digital criam uma sistemática de insatisfação mercadológica nos blocos de consumo, traduzida da seguinte maneira: o “software” impulsiona a superação do “hardware”, o qual evolui para oferecer uma maior capacidade de processamento e suportar um novo “software”, de forma tal que ambos estão superados dentro de poucos meses, obrigando os consumidores a novos desenbolsos para que possam se manter inseridos no padrão mundial. Essa é uma associação econômica das mais “expertas” de nossa história, comparável a uma outra: carros e combustíveis fósseis. Com uma pequena diferença. A última é conservadora na questão do desenvolvimento, retardando evoluções no intuito de preservar seu mercado. Pergunto: há quanto tempo um carro mediano faz entre 10 e 15 Km com um litro de gasolina ? Os conglomerados do ramo não possuem tecnologia para reduzir o consumo ? Quanto à primeira, louve-se, é altamente evolutiva. Porém, por outro lado, as empresas de telemática, principalmente aquelas ligadas aos computadores, mais dinâmicas e anárquicas, estão utilizando, basicamente, conhecimentos acumulados nas áreas de direitos autorais e da propriedade industrial para garantir uma posição de destaque no contexto globalizado do final do século. Um “software” ou o desenho de um processador vale-se de muitos estudos e pesquisas anteriores à sua produção, não sendo factível a afirmação de que é produto do esforço isolado de uma só pessoa ou um só grupo. Está havendo, aí, uma indevida acumulação de capital, e para minimizá-la, há duas ações possíveis: a). de caráter individual, no sentido da contenção do consumo individual. Nem sempre uma máquina e um programa “velhos” são, de fato, obsoletos, e a aposentadoria de um equipamento deve ser precedida de convenientes reflexões. b). de caráter global, no sentido puramente jurídico, com a desapropriação de direitos autorais e de propriedade intelectual, colocando-os à disposição de todos.

D-. Entre o mercado e os trabalhadores. A automação da produção industrial está provocando a redução dos postos de trabalho. De outro lado, os direitos autorais referentes ao desenvolvimento de “software” são, por força de lei, de propriedade da empresa empregadora, e não do trabalhador-desenvolvedor, salvo disposição contratual em contrário. Os questionamentos em torno desse dispositivo merecem, oportunamente, aprofundamentos.

E-. Entre toda essa indústria e a pobreza. Grandes fortunas da história da humanidade estão sendo formadas em torno da vida digital. Empresas e pessoas estão utilizando os conhecimentos acumulados ao longo da existência do homem para a consolidação de verdadeiros impérios. Nada mais justo que um percentual de suas acumulações seja destinado ao presente e ao futuro das populações. O ideal seria que tal ocorresse naturalmente, por iniciativa dos acumuladores. Não acontecendo, devemos pensar em uma solução político-jurídica coletiva.

Como se percebe, o volume de questões e tópicos é grande, e a necessidade de medidas é urgente.

Hugo Cesar Hoeschl é Doutor em Inteligência Aplicada, Procurador da Fazenda Nacional, ex-Promotor de Justiça e desenvolvedor autorizado da Fundação para o desenvolvimento da Universal Networking Language – UNL (Genebra).

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