Interferência política no crédito municipal é maléfica

Por Cleide Regina Furlani Pompermaier

Existe na grande maioria dos municípios brasileiros uma dura realidade: a interferência do Gestor Público Municipal na constituição no crédito tributário como se essa função lhe pertencesse. Como se fosse ele o dono todo poderoso da receita tributária, acreditando que pode determinar – ao arrepio da legislação e da Constituição Federal – quem pode e quem não pode ser tributado.

A vontade de não tributar seus eleitores com o intuito de beneficiar-se politicamente, somada ao não conhecimento do sistema tributário nacional e à carência de recursos financeiros, leva muitos Gestores Públicos a não estruturar, ainda que de forma mínima, as administrações tributárias dos municípios. Isso, muitas vezes, gera a nulidade do crédito tributário, porquanto constituído por autoridade incompetente para tanto, como se verá a seguir.

A Constituição Federal é muito rica no campo tributário. Tanto isso é verdade que, diferentemente de outros ramos do Direito, dedica-se a essa ciência de forma diferenciada, tratando da matéria com profundidade, a qual, aliás, deveria ser de conhecimento obrigatório, por qualquer pessoa que tenha algum interesse em se candidatar a um cargo eletivo. Afinal, a receita tributária é a principal fonte de sustento das Administrações Públicas e, consequentemente, a fonte maior para o suprimento das necessidades de uma população.

Ou seja, a Carta Magna deu toda essa importância à ciência do Direito Tributário porque quer que, efetivamente, o Estado faça a sua parte, aprimorando as Administrações Tributárias, a fim de que estas façam o seu melhor para a arrecadação, sempre no intuito de prover a contento o bem comum. Afinal, todos devem contribuir para o sustento de uma nação.

Neste tocante, importante citar a Emenda Constitucional 42/2003, que introduziu grandes modificações em relação às Administrações Tributárias, mormente em relação aos Auditores Tributários ou qualquer outra denominação que se queira atribuir à Autoridade Fiscal Municipal, no que se refere às questões exclusivas de lançamento tributário.

A primeira modificação importante e advinda com a minirreforma tributária comentada, é que as Autoridades Lançadoras de tributo das três esferas de governo (Federal, Estadual e Municipal) foram inseridas na Constituição Federal como Carreira típica de Estado e essencial ao seu funcionamento, conforme se observa do artigo 37, inciso XXII, da Constituição Federal.

E o que é efetivamente Carreira Típica de Estado? Uma verdade primeira há que ser dita: essas carreiras são diferenciadas das demais. Em primeiro lugar, deve-se entendê-las como privativas do próprio Estado, não podendo ser delegadas em hipótese alguma. Não há uma definição específica, apenas que são as atividades estatais mais importantes do Brasil, como são a dos Juízes, Promotores de Justiça, Delegados, etc, lembrando que o Auditor Fiscal Municipal está, como vimos, dentre elas.

E o que a Carreira Típica de Estado pressupõe então? Primeira e indiscutivelmente que os seus integrantes tenham se submetido a concurso público e, também, diante do alto grau de responsabilidade que esses servidores têm para o Estado, alto grau de intelectualidade. E que estejam devidamente preparados tecnicamente para assumir tal encargo, o que pressupõe, em nosso entendimento, respeitados os entendimentos contrários, graduação em nível superior.

Ora, entendemos que se trata de uma questão de lógica. Ou seja, para constituir o crédito tributário, o servidor municipal, obrigatoriamente, realiza os atos preparatórios de lançamento, os quais exigem, obviamente, conhecimentos de auditoria, contabilidade e legislação tributária, no mínimo. O que significa que a Autoridade Lançadora deve ter conhecimentos específicos para tanto, não se podendo aceitar ou ter como válido um lançamento feito por agente que tenha apenas o nível fundamental ou médio de escolaridade.

E não se diga que o município, através de lei municipal, tem total competência e autonomia para decidir acerca do grau de escolaridade do candidato ao cargo de Auditor Tributário Municipal, posto que a lei municipal é insuficiente para dar guarida a respectiva pretensão, considerando que esta legislação estaria eivada de inconstitucionalidade, porque em desconformidade com a Lei Maior e com o próprio Código Tributário Nacional.

Ainda em relação à EC 42/2003, faz-se mister salientar que os entes federados brasileiros passaram a ter, também, independência financeira em relação a investimentos na modernização das Administrações Tributárias. Assim sendo, a melhora na qualidade da Administração Tributária local não é questão de vontade do Gestor Público, mas sim de uma obrigação que lhe compete, considerando o verdadeiro sentido da destinação da receita tributária, que é o atendimento às necessidades públicas.

Tanto isso é verdade que o artigo 167, inciso IV, da Constituição Federal, também trazido ao mundo jurídico pela EC 42/2003, muito embora proíba expressamente a vinculação da receita de impostos a órgão público, fundo ou despesa, excetua, dentre outras hipóteses, especial destinação da receita de impostos às Administrações Tributárias, de forma a torná-las mais eficientes.

Muito importante frisar, igualmente, que o artigo 52, inciso XV, da Constituição Federal, também trazido ao mundo jurídico através da EC 42/2003, determina que cabe ao Senado da República, ressalte-se, como competência privativa, avaliar periodicamente a funcionalidade do Sistema Tributário Nacional, em sua estrutura e seus componentes, e o desempenho das Administrações Tributárias da União, dos Estados e do Distrito Federal e dos Municípios.

Transcreve-se o dispositivo em comento:

Artigo 52. Compete privativamente ao Senado Federal:

(…)

XV – avaliar periodicamente a funcionalidade do Sistema Tributário Nacional, em sua estrutura e seus componentes, e o desempenho das administrações tributárias da União, dos Estados e do Distrito Federal e dos Municípios. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)

Quanto a esse tema em particular, mister salientar, que quando o Código Magno inseriu em tópico específico esta competência privativa, é óbvio que o fez com um intuito: de o Senado verificar se, efetivamente, as Administrações Tributárias estariam funcionando de forma a arrecadar os tributos de sua competência de maneira efetiva, a fim de realizar o objetivo maior, que é o sustento de uma Nação.

Essa competência da Casa dos Estados foi inserida na Constituição Federal, ainda no ano de 2003, mas somente em 2011, mais precisamente, no dia 26 de abril de 2011, é que o Senado Federal, através da iniciativa do senador Aloysio Nunes (PSDB-SP), instituiu a Subcomissão Permanente de Avaliação do Sistema Tributário Nacional (CAESTN).

A Subcomissão acima referenciada, criada a partir do Requerimento 01/2011 de origem do gabinete do senador Aloysio Nunes, está assim composta: Presidente: Senador Aloysio Nunes Ferreira; Vice-Presidente: Senador José Pimentel (PT-CE). Membros: Marta Suplicy (PT-SP), Eduardo Braga (PMDB-AM), Luiz Henrique (PMDB-SC), Acir Gurgacz (PDT-RO), Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM), Romero Jucá (PMDB-RR), Flexa Ribeiro (PSDB-PA).

Ocorre, entretanto, e pelo que se tem notícia, que, até o momento, nenhuma providência concreta foi determinada para garantia do cumprimento do referenciado preceito constitucional comentado. O qual exige, repita-se, que o Senado avalie periodicamente a funcionalidade do Sistema Tributário Nacional, em sua estrutura e seus componentes, e, bem assim, o desempenho das administrações tributárias da União, dos Estados e do Distrito Federal e dos Municípios.

Não se pode admitir esse tipo de lacuna deixada pelo Senado. Até porque estamos falando de uma competência privativa da Casa dos Estados. Ou seja, não existe, neste caso, margem de discricionariedade, mas sim o urgente dever de agir, sob pena dessa importante Instituição estar negligenciando em sua missão maior, que, em sentido amplo, é a estabilização institucional e proteção do interesse e da coisa pública de uma Nação. Essa omissão pode dar ensejo à proposição de uma ação judicial de obrigação de fazer contra o Senado Federal, pela parte legitimada, em face do descumprimento de preceito constitucional.

Mister salientar que, em 20 de junho de 2011, após consulta por nós formulada ao Senado Federal a respeito do andamento dos trabalhos da Comissão de Avaliação do Sistema Tributário Nacional, foi-nos encaminhada resposta através da Nota Informativa 1.765, de 2011 e subscrita pelo Consultor Legislativo Roberto Barbosa de Castro, o qual se pronunciou, em síntese, dizendo que o dispositivo constitucional que trata da competência privativa do Senado Federal para avaliar o Sistema Tributário Nacional e o desempenho das Administrações Tributárias, é, PASMÉM, inócuo e decorativo.

Transcreve-se a fala do técnico da Casa dos Estados:

(…) Lamentavelmente, deve-se dizer, sim, salvo melhor juízo, que artigo 52, XV, da Constituição, introduzido pela EC42-2003, deu ao Senado apenas a competência (algo inócua e decorativa, é verdade) (…).

Data máxima vênia, não nos parece ter andado bem a Nota Informativa 1.765, de 20 de junho de 2011, quando afirma que o dispositivo constitucional insculpido no artigo 52, inciso XV, da Constituição é inócuo e decorativo. Ainda mais quando se trata de uma competência privativa, em que não se está a discutir sobre vontade de exercê-la, mas sim na obrigatoriedade de exercê-la.

No que concerne à obrigatoriedade dos municípios em estruturar as Administrações Tributárias, Roberto Barbosa de Castro enfatiza que tal providência não é possível por apresentarem os municípios brasileiros realidades diversas e, ainda, em face das dificuldades financeiras que muitos deles hoje apresentam.

Não se pode concordar com tal pensamento. O fato de os municípios terem dificuldades financeiras e apresentarem realidades diversas é irrelevante para o Sistema Tributário Nacional e seu compêndio legislativo. O lançamento tributário e suas regras rígidas não escolhem Município pobre ou Município rico. Essas regras são únicas para as três esferas de governo. Então, se o mesmo não pode ser cumprido à risca pelos três entes tributantes, então, que se modifique o Sistema, que se modifique a Legislação, que se modifique a Constituição Federal e, se isso não for suficiente, que se rasgue esta última.

Ademais disso, importante salientar que um município não vive somente de receita própria. Aliás, em virtude dos problemas por nós apontados, muitos desses entes federados vivem praticamente das transferências constitucionais e, para isso, necessitam ao menos de uma Autoridade Fiscal. É a única que tem o conhecimento técnico necessário para dizer se esses repasses estão sendo feitos de forma correta ou ainda, se esses repasses estão sendo devidamente destinados, evitando assim, a saga da corrupção, que está assolando o país.

A Nota Informativa 1.765, de 20 de junho de 2011, num determinado momento, enfatiza, igualmente, que é no mínimo precipitada a tese de que somente o Auditor Fiscal é que pode lançar tributo.

Veja:

(…) Por outro lado, é, no mínimo, precipitada a tese de que somente o Auditor Fiscal pode lançar tributo (…)

É grave a afirmativa subscrita por tão importante Servidor do Senado Federal, quando é por demais sabido, que a única autoridade administrativa que pode constituir crédito tributário é o Auditor Fiscal, ou qualquer outra denominação que se queira atribuir a função do servidor responsável pela feitura dos lançamentos tributários, nos termos do artigo 142, do Código Tributário Nacional, sob pena, inclusive, de nulidade do lançamento, caso este seja efetuado por agente que não esteja investido nessa função específica, como comumente ocorre com o IPTU, por exemplo, em que em grande parte dos Municípios brasileiros, ainda é o Secretário da Fazenda (cargo comissionado) ou o Prefeito (agente político), que assinam o edital de lançamento, em total descompasso com a Carta Mãe e com a Legislação Tributária.

Como se pode observar, está-se diante de uma situação séria e delicada, porque várias competências constitucionais não estão sendo devidamente exercidas, o que pode dar margem para alguns Gestores Públicos transacionarem o crédito tributário da forma como melhor lhes aprouver. E é justamente nesta área que o Senado tem poder para agir, recomendando aos prefeitos que cumpram a Constituição Federal no sentido de que estes últimos estruturem as suas Administrações Tributárias.

Porque é daquela instituição a competência para avaliar o desempenho das atividades de fiscalização das Autoridades Lançadoras. Seja da União, dos estados, do Distrito Federal ou dos municípios, conforme se depreende do artigo 52, inciso XV, da Constituição Federal.

Por fim, e não menos importante, existe outra forma de se fazer cumprir a Constituição Federal, mantendo-se viva, desta forma, a receita tributária municipal. Através das funções institucionais do Ministério Público Estadual. Uma das prerrogativas do parquet é justamente a defesa do patrimônio público, conforme se infere do Artigo 129, inciso III, do Código Magno.

Com efeito, esta importante instituição tem o dever de zelar pela eficiente arrecadação tributária, fiscalizando as atividades exercidas pelo Fisco municipal e averiguando se o ente federado está a arrecadar os seus tributos, nos termos exigidos pela Constituição Federal (artigo 30, inciso III) e Lei de Responsabilidade Fiscal e, finalmente, se esta arrecadação está sendo feita de forma vinculada e não discricionária.

Finalmente, vale ressaltar que é obrigação da administração pública municipal manter viva a existência mínima de uma estrutura Fazendária, a qual deve contar ao menos com uma Autoridade Fiscal, admitida nos termos das exigências pedidas pela Constituição Federal e pela Legislação Tributária. Isso considerando que essa pequena estruturação, representa a grande garantia da receita tributária municipal e, como consequência, o sucesso na prestação serviços públicos essenciais como os de educação, saúde, segurança, infraestrutura etc.

Concluindo, se o Brasil vive um momento novo, é hora de vencermos mais um ciclo, impedindo de forma veemente que haja continuidade na interferência política na constituição do crédito tributário municipal. Porque esta é uma medida que vem em prejuízo direto da própria população. E, para tanto, temos soluções jurídicas para combater essas práticas maléficas, as quais estão inseridas na Constituição Federal. É simplesmente uma questão de mudança de paradigma, que deve ser enfrentada com o conhecimento e com a coragem.

Cleide Regina Furlani Pompermaier é procuradora do município de Blumenau (SC), membro do Conselho Municipal de Contribuintes, especialista em Direito Tributário pela Universidade Federal de Santa Catarina e professora universitária de Direito Tributário.

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