Interpretação Histórica para as Lacunas do Novo Código Civil de 2002

Lecionou Norberto Bobbio em sua Teoria do Ordenamento Jurídico1 que “o ordenamento jurídico não nasce num deserto”, ou seja, surge em uma sociedade em que já existem usos e costumes, tradições, marcas de legislações anteriores etc. Isso vale até mesmo para o legislador constituinte originário, uma vez que seu próprio poder deriva da tarefa que lhe foi confiada pela nação soberana. Ora, uma nação se distingue por seus usos, costumes e tradições comuns a seus cidadãos, e não é lícito – sob pena de questionar a legitimidade de seu próprio poder – que quem represente a nação os ignore. Por essa razão, geralmente, as Constituições acabam por consagrar certos direitos fundamentais já consagrados em Constituições anteriores. Se isso é fácil de ser aceito em matéria constitucional, a fortiori, o será em matéria de legislação ordinária, como é o caso do Código Civil.

Pergunta-se, então, se será lícito invocar legislação anterior quando tal Código for lacunoso. Respondeu já o Prof. Miguel Reale, logo que a nova Lei entrou em vigor: “O estudo comparativo [entre o Código antigo e o novo] (…) é da maior importância, porquanto torna possível o aproveitamento do valioso cabedal de doutrina e de jurisprudência por este [o Código anterior] acumulado durante oitenta e cinco anos de vigência”2.

Para citar um exemplo ocorrido devido à lacuna ideológica ou a mero esquecimento, o Código atual não prevê mais o pagamento de indenização pelos prejuízos causados em uma propriedade por quem a invada e a danifique. Isso constava expressamente no Código antigo, que, em seu art. 503, disciplinava: “O possuidor manutenido, ou reintegrado, na posse, tem direito à indenização dos prejuízos sofridos, operando-se a reintegração à custa do esbulhador, no mesmo lugar do esbulho”. Para que se evite a injustiça de quem for esbulhado ter de arcar com todas as despesas causadas por uma invasão, considerada ilegal pela Justiça que o reintegrou na posse, só restará – pois se está diante de uma lacuna do Novo Código – recurso à interpretação histórica: a jurisprudência vinha consagrando o pagamento da referida indenização como de justiça. Não há por que concluir que agora não caberá indenização, pois a nova Lei nada diz a respeito. Mesmo o art. 4.º da Lei de Introdução prevê o recurso, além da analogia, aos costumes e aos princípios gerais do Direito, para preencher lacunas do ordenamento jurídico. E, pelo que consta, e o bom senso o comprova, não mudaram tanto assim a escala de valores e os costumes do povo brasileiro, a ponto de poder se dizer que pagar indenização por estragar bens dos outros é coisa do passado!

Se isso desestimular invasões e estragos de esbulhadores, tanto melhor para a paz no campo e nas cidades do nosso imenso país.

[1] Teoria do Ordenamento Jurídico. 10.ª ed. Brasília: UnB, 1999. cap. II, 2, p. 41.

[2] Novo Código Civil Brasileiro: Estudo Comparativo com o Código Civil de 1916. Prefácio: Miguel Reale. 3.ª ed. revista e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 7.

* Cláudio De Cicco

Professor de História do Pensamento Jurídico da Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus (FDDJ)

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