Investigação criminal não é tarefa exclusiva da Polícia

Rômulo de Andrade Moreira*

O tema em epígrafe diz respeito a uma das mais importantes atribuições do Ministério Público e, muitas das vezes, de fundamental importância para a persecução criminal: a investigação de infrações penais.

Nada obstante opiniões em contrário, o certo é que tal atribuição transparece suficientemente possível à luz da Constituição Federal e de textos legais, como procuraremos demonstrar a seguir.

Com efeito, diz o art. 129 da Constituição Federal que são funções do Ministério Público, dentre outras:

“II – zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia.” (grifo nosso).

“VI – expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva.” (grifo nosso).

“VIII – requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais;

“IX – exercer outras funções que lhe sejam conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas.” (idem).

Como se nota pelo inciso II acima transcrito, a Carta Magna permite que o Ministério Público promova as medidas que sejam necessárias para a garantia dos direitos assegurados por ela própria que não estejam sendo respeitados pelos Poderes Públicos e pelos serviços de relevância pública; assim, por exemplo, quando um agente público, abusando de poder ou de sua autoridade, transgride o direito à liberdade de um cidadão, verbi gratia, prendendo-o ilegalmente, é evidente que permitido será ao parquet, constitucionalmente, “promover medidas necessárias para a garantia do direito à liberdade” desrespeitado pelo agente do Poder Público.

Já o inciso VI, refere-se expressamente à expedição de notificações “nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los.” Pergunta-se: para que serviriam tais notificações ou as informações e os documentos requisitados se não fossem para instruir procedimento administrativo investigatório? É evidente que nenhuma lei traz palavras ou disposições inúteis (é regra de hermenêutica), muito menos a Lei Maior. Comentando este inciso, afirma Marcellus Polastri Lima:

“Trata-se, à saciedade, de coleta direta de elementos de convicção pelo promotor para elaborar opinio delicti e, se for o caso, oferecimento de denúncia, uma vez que, como já asseverado, não está o membro do Ministério Público adstrito às investigações da Polícia Judiciária, podendo colher provas em seu gabinete ou fora deste, para respaldar a instauração da ação penal.

“Portanto, recebendo o promotor notícia de prática delituosa terá o poder-dever de colher os elementos confirmatórios, colhendo declarações e requisitando provas necessárias para formar sua opinio delicti.”(1)

Que não se diga tratar-se tal procedimento administrativo do inquérito civil preparatório para a ação civil pública, pois desta matéria já cuida o anterior inciso III. Portanto, este outro dispositivo (VI) ao se referir a “procedimentos administrativos” não faz alusão ao inquérito civil (que também é um procedimento administrativo), este já tratado no item anterior; neste mesmo sentido pensa Hugo Nigro Mazzilli, para quem “se os procedimentos administrativos a que se refere este inciso (VI) fossem apenas em matéria cível, teria bastado o inquérito civil de que cuida o inciso III.

O inquérito civil nada mais é que uma espécie de procedimento administrativo ministerial. Mas o poder de requisitar informações e diligências não se exaure na esfera cível; atinge também a área destinada a investigações criminais.” (2)

Já com o inciso VIII surge a seguinte indagação: se se pode o mais (requisitar diligências investigatórias), como não se pode o menos, id est, fazê-las motu próprio.

Se não bastassem tais preceitos há ainda o quarto deles consubstanciado no inciso IX, este a permitir o exercício de funções outras que forem atribuídas ao Ministério Público e que sejam compatíveis com suas finalidades: a Lei Federal nº 8.625/93 concede ao Ministério Público a possibilidade de instaurar procedimentos administrativos investigatórios, como veremos a seguir.

Efetivamente, a Lei n.º 8.625/93 (Lei Orgânica da Instituição), no seu art. 26, dispõe caber ao Ministério Público (os grifos são nossos):

“I – instaurar inquéritos civis e outras medidas e procedimentos administrativos pertinentes e, para instruí-los: (omissis);”

“II – requisitar informações e documentos a entidades privadas, para instruir procedimentos ou processo em que oficie;”

“V – praticar atos administrativos executórios, de caráter preparatório;”

Comentando este artigo, e mais especificamente o seu inciso V, assim se pronunciou Pedro Roberto Decomain:

“Trata-se de todas as providências preliminares que possam ser necessárias ao subseqüente exercício de uma função institucional qualquer. Providências administrativas de âmbito interno poderão ser de rigor para o melhor exercício de alguma função institucional, em determinadas circunstâncias. Por força deste inciso, está o Ministério Público habilitado a tomá-las. Aliás, nem poderia ser diferente. É claro que a Instituição está apta a realizar todas as atividades administrativas que sejam indispensáveis ao bom desempenho de suas funções institucionais.

Tal será uma direta conseqüência do princípio de sua autonomia administrativa, que orienta não apenas o funcionamento global da Instituição, mas também a sua atuação em cada caso concreto que represente exercício de suas funções institucionais.” (Grifo nosso). (3) Por sua vez, adverte Polastri dirimindo dúvidas:

“A exemplo do disposto na CF/88, entendemos que o estabelecido no item I do art. 26 da Lei 8.625/93, refere-se não só aos inquéritos civis, como a quaisquer outros procedimentos, sendo a expressão pertinente atinente a medidas e procedimentos condizentes com as funções do Ministério Público, e não somente aos inquéritos civis, conforme estabelecido no caput do art. 26.” (4)

Continuando a análise da Lei Orgânica temos no seu art. 27, verbo ad verbum (por nós sublinhado):

“Art. 27 – Cabe ao Ministério Público exercer a defesa dos direitos assegurados nas Constituições Federal e Estadual, sempre que se cuidar de garantir-lhe o respeito:

“I – pelos poderes estaduais e municipais;

“II – pelos órgãos da Administração Pública Estadual ou Municipal, direta ou indireta;

“(omissis).

“Parágrafo único. No exercício das atribuições a que se refere este artigo, cabe ao Ministério Público, entre outras providências:

“I – receber notícias de irregularidades, petições ou reclamações de qualquer natureza, promover as apurações cabíveis que lhes sejam próprias e dar-lhes as soluções adequadas;

“II – zelar pela celeridade e racionalização dos procedimentos administrativos;

“(omissis).”

Vemos, destarte, que não há dificuldades em se admitir a instauração de procedimentos administrativos investigatórios de natureza criminal no âmbito do próprio Ministério Público, desde que haja a necessidade da apuração de determinado fato que, por sua vez, enquadre-se no leque institucional das atribuições ministeriais.

Portanto, não podemos conceber, em que pese a autoridade dos que pensam contrariamente, que se diga ser defeso ao Ministério Público a investigação e a coleta de provas para o processo criminal, pois tal atribuição é permitida perfeitamente, principalmente levando-se em conta a lição doutrinária amplamente conhecida, segundo a qual o inquérito policial é peça prescindível à instauração da ação penal, conclusão esta retirada do próprio Código de Processo Penal, arts. 4º., parágrafo único, 12, 27, 39, parágrafo 5º. e 46, parágrafo 1º. Com razão afirma Mazzilli:

“Tanto na área cível como criminal, admitem-se investigações diretas do órgão titular da ação penal pública do Estado. Para fazê-las, não raro se valerá de notificações e requisições.” E, complementa: “Em matéria criminal, as investigações diretas ministeriais constituem exceção ao princípio da apuração das infrações penais pela polícia judiciária; contudo, há casos em que se impõe a investigação direta pelo Ministério Público, e os exemplos mais comuns dizem respeito a crimes praticados por policiais e autoridades.” (6)

Costuma-se opor ao entendimento acima esposado o art. 144, parágrafo 4º da Constituição Federal, cuja redação diz caber à Polícia Civil a apuração de infração penal, exceto a de natureza militar, ressalvada, também, a competência da União.

Ocorre que esta atribuição constitucional não é exclusiva da Polícia Civil, sendo esta a correta interpretação deste dispositivo constitucional.

Não se deve interpretar uma norma jurídica isoladamente, mas, ao contrário, deve-se utilizar o método sistemático, segundo o qual cada preceito é parte integrante de um corpo, analisando-se todas as regras em conjunto, a fim de que possamos entender o sentido de cada uma delas.

“Não se encontra um princípio isolado, em ciência alguma; acha-se cada um em conexão íntima com outros. O Direito objetivo não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada cada uma no seu lugar próprio.” (7)

Aliás, segundo Luiz Alberto Machado “o criminalista ortodoxo pensa e age, sem confessar e até dizendo o contrário, como se coexistissem dois ordenamentos jurídicos: um ordenamento jurídico-criminal e outro ordenamento para as demais ciências jurídicas.” (8)

Partindo-se desse pressuposto, resta claro que não deu a Constituição exclusividade na apuração de infrações penais apenas a uma Instituição. Observa-se que um outro artigo da mesma Carta (art. 58, parágrafo 3º.) dá poderes às Comissões Parlamentares de Inquérito para investigação própria e, adiante, como já demonstrado, concede a mesma prerrogativa ao Ministério Público. A esse respeito escreveu Tourinho Filho:

“O parágrafo único do art. 4º. (CPP) deixa entrever que essa competência atribuída à Polícia (investigar crimes) não lhe é exclusiva, nada impedindo que autoridades administrativas outras possam, também, dentro em suas respectivas áreas de atividades, proceder a investigações. As atinentes à fauna e flora normalmente ficam a cargo da Polícia Florestal. Autoridades do setor sanitário podem, em determinados casos, proceder a investigações que têm o mesmo valor e finalidade do inquérito policial.” (9) Da mesma forma pensa o já citado Marcellus Polastri Lima:

“Obviamente, não sendo a Polícia Judiciária detentora de exclusividade na apuração de infrações penais, deflui que nada obsta que o MP promova diretamente investigações próprias para elucidação de delitos.

“Como já salientamos, de há muito Frederico Marques defendia que o MP poderia, como órgão do Estado-administração e interessado direto na propositura da ação penal, atuar em atividade investigatória.

“O art. 4º. do CPP já dispunha, em seu parágrafo único, inteiramente recepcionado pela nova ordem constitucional, que a atribuição para apuração de infrações penais não exclui a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a função.” (10)(grifo nosso).

E não se diga que, sendo parte, não pode o Promotor de Justiça ser considerado autoridade para efeito de instauração de procedimento administrativo na forma permitida pelo parágrafo único do art. 4º. do Código de Processo Penal; tal argumento também é rebatido pelo autor por último citado, ao afirmar, depois de se apoiar nas lições de Hely Lopes Meirelles, que:

“Não resta dúvida que, estando o Ministério Público regido por lei orgânica própria, detendo funções privativas constitucionalmente e possuindo seus agentes independência funcional, além de preencher os demais requisitos elencados pela doutrina, os seus membros são agentes políticos, e como tal exercem parcela de autoridade.”

“Portanto, indubitavelmente, exerce o MP parcela de autoridade e, administrativamente, pode proceder às investigações penais diretas na forma da legislação em vigor.” (11) Mirabete não pensa diferente:

“Os atos de investigação destinados à elucidação dos crimes, entretanto, não são exclusivos da polícia judiciária, ressalvando expressamente a lei a atribuição concedida legalmente a outras autoridades administrativas (art. 4º., do CPP). Não ficou estabelecido na Constituição, aliás, a exclusividade de investigação e de funções da Polícia Judiciária em relação às polícias civis estaduais. Tem o Ministério Público legitimidade para proceder investigações e diligências, conforme determinarem as leis orgânicas estaduais”, citando, então, várias hipóteses em que outras autoridades administrativas, que não Delegados de Polícia, podem e devem proceder a investigações: Lei de Falências, arts. 103 e segs., as já referidas Comissões Parlamentares de Inquérito, a Lei n. 4.771/65 (art 33, b), o art. 43 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, etc. (12)

Espínola Filho, por sua vez, já advertia “que o inquérito não é atribuição exclusiva da autoridade policial, é ponto assente, muito comuns sendo os inquéritos administrativos.

“O Código de processo penal, no art. 4º., parágrafo único, ressalva, do modo mais claro, a pertinência desses inquéritos extrapoliciais, acentuando que a competência dada no inquérito à polícia judiciária, exercida por autoridades policiais, não exclui a de autoridades administrativas, para promoverem inquéritos, quando a isso legalmente autorizadas.” (13) O Superior Tribunal de Justiça assim já se manifestou:

“Como procedimento meramente informativo que é, o inquérito policial pode ser dispensado se o titular da ação penal dispuser de elementos suficientes para o oferecimento da denúncia.” (DJU, 08/06/92, p. 8.594). O Supremo Tribunal Federal também já decidiu:

“A inexistência de inquérito policial não impede a denúncia, se a Promotoria dispõe de elementos suficientes para a formulação da demanda penal – Existência, no caso, de indícios suficientes para afastar a alegação de falta de justa causa para a denúncia. Habeas Corpus indeferido.” (STF, Habeas Corpus n.º 70.991-5, Rel. Min. Moreira Alves).

Especificamente sobre o poder investigatório do Ministério Público veja-se:

“O MP tem legitimidade para proceder a investigações ou prestar tal assessoramento à Fazenda Pública para colher elementos de prova que possam servir de base a denúncia ou ação penal. A CF/88, no art. 144, parágrafo 4º., não estabeleceu com relação às Polícias Civis a exclusividade que confere no parágrafo 1º., IV, à Polícia Federal para exercer as funções de Polícia Judiciária.” (RT, 651/313).

Recentemente o Superior Tribunal de Justiça decidiu no mesmo sentido:

“Ministério Público. Procedimento investigatório. Policiais. A Turma denegou a ordem de habeas corpus com o entendimento de que, em se tratando de procedimento com o fito de apurar fatos reputados delituosos e cuja autoria é atribuída a integrante da organização policial, cuja atividade é controlada externamente pelo Ministério Público, em tese não existirá antinomia para que o Parquet promova a investigação. Ressalte-se que, mesmo no caso de eventual irregularidade por invasão das atribuições da Polícia Judiciária pelo Ministério Público, ainda assim em nada estaria afetada a ação penal porque objeto de apuração de delito cometido por agente de autoridade policial. Precedentes citados do STF: RHC 66.428-PR, DJ 2/9/1988, e RE 205.473-9-AL, DJ 19/3/1999. (RHC 10.947-SP, Rel. Min. Fernando Gonçalves, julgado em 19/02/2002).

“Não obstante o disposto no artigo 144, parágrafo 4º, da CF, o Parquet não é absolutamente proibido de praticar atos investigatórios. Não faria sentido, sendo essa instituição responsável, exclusivamente, pela ação penal pública – artigo 129, I da CF -que não pudesse praticar qualquer ato tendente à elucidação dos fatos. Se para o oferecimento da denúncia se exige um embasamento concreto quanto à materialidade e autoria do delito, isso significa que a atividade do órgão acusador depende diariamente de uma reconstituição bem feita do quadro fático.

Sendo assim, não se pode negar sua competência para a prática de fatos investigatórios, embora não lhe seja permitido instaurar, formalmente, inquérito policial, pois esta é atividade atribuída à polícia judiciária. Não por acaso, a Súmula, 234/STJ dispõe que ‘a participação de membro do Ministério Público na fase investigatória criminal não acarreta o seu impedimento ou suspeição para o oferecimento da denúncia'”. (STJ – Ac. unân. da 5ª T, publicado em 18/3/2002 – RO – HC 10.974 – SP – Rel.Min. Felix Fischer – Pacte. Nelson Latif Fakhouri – Adv. Vagner da Costa).

É de Julio Fabbrini Mirabete a lição: “Como titular do jus puniendi, nada impede que o Ministério Público, além de requisitar informações e documentos para instruir procedimentos promova atos de investigação para apuração de ilícitos penais, pois, nos termos da Constituição Federal, ´pode exercer outras funções que lhe sejam conferidas desde que compatíveis com sua finalidade´ (artigo 129, IX).” (14)

Para encerrarmos as argumentações, objetamos ainda o seguinte: mesmo em se admitindo que a Lei Orgânica do Ministério Público Estadual não permitisse as investigações criminais (o que, absolutamente, não é verdade), ainda assim, por força do art. 80 da referida Lei Federal poderíamos utilizar, subsidiariamente, as normas da Lei Orgânica do Ministério Público da União (Lei Complementar Federal nº 75/93), que “não deixa margem de dúvidas quanto à operacionalização das investigações criminais diretas no âmbito do Ministério Público”, como argumenta Polastri, no livro já aludido (p. 91), referindo-se, com certeza (ainda que não o diga expressamente), aos arts. 7º., I e 8º., VII, in verbis:

“Art. 7º. – Incumbe ao Ministério Público da União, sempre que necessário ao exercício de suas funções institucionais:

“I – instaurar inquérito civil e outros procedimentos correlatos.”

“(omissis).”

“Art. 8º. – Para o exercício de suas atribuições, o Ministério Público da União poderá, nos procedimentos de sua competência:

“(omissis).”

“VII – expedir notificações e intimações necessárias aos procedimentos e inquéritos que instaurar.”

Há vários sistemas jurídicos alienígenas que ao priorizarem em suas reformas processuais penais o fortalecimento do Ministério Público, passaram a permitir de maneira ampla a investigação criminal pelo parquet.

No Direito comparado observamos a existência de dois sistemas principais: o inglês (a Polícia detém o poder de conduzir as investigações preliminares) e o continental (o Ministério Público conduz a investigação criminal).

Neste segundo sistema, encontramos, por exemplo, países como a Itália, Alemanha, França e Portugal, como veremos a seguir:

Na Alemanha, lê-se no Código de Processo Penal:

“StPO parágrafo 160: (1) (omissis)

“(2). A Promotoria de Justiça deverá averiguar não só as circunstâncias que sirvam de incriminamento, como também as que sirvam de inocentamento, e cuidar de colher as provas cuja perda seja temível.

“(3). As averiguações da Promotoria deverão estender-se às circunstâncias que sejam de importância para a determinação das conseqüências jurídicas do fato. Para isto poderá valer-se de ajuda do Poder Judicial.

“StPO parágrafo 161: Para a finalidade descrita no parágrafo precedente, poderá a Promotoria de Justiça exigir informação de todas as autoridades públicas e realizar averiguações de qualquer classe, por si mesma ou através das autoridades e funcionários da Polícia. As autoridades e funcionários da Polícia estarão obrigados a atender a petição ou solicitação da Promotoria.” Na Itália não é diferente no seu “Codice di Procedura Penale”:

“Art. 326 – O Ministério Público e a Polícia Judiciária realizarão, no âmbito de suas respectivas atribuições, a investigação necessária para o termo inerente ao exercício da ação penal.”

“Art. 327 – O Ministério Público dirige a investigação e dispõe diretamente da Polícia Judiciária.”

Em Portugal, conforme lição de Germano Marques da Silva, “os órgãos de polícia criminal coadjuvam o Ministério Público no exercício das suas funções processuais, nomeadamente na investigação criminal que é levada a cabo no inquérito, e fazem-no sob a direta orientação do Ministério Público e na sua dependência funcional (arts. 56 e 263).”(15)

Ainda em solo lusitano, a Lei Orgânica do Ministério Público, no seu art. 3º., diz competir ao Ministério Público “dirigir a investigação criminal, ainda quando realizada por outras entidades” e ” fiscalizar a actividade processual dos órgãos de polícia criminal.”

Em França não é diferente, à vista do art. 41 do respectivo Código de Processo Penal:

“O Procurador da República procede ou faz proceder a todos os atos necessários à investigação e ao processamento das infrações da lei penal. Para esse fim, ele dirige as atividades dos oficiais e agentes da polícia Judiciária dentro das atribuições do seu tribunal.”

Diante de tudo quanto foi exposto pode e deve o membro do Ministério Público, quando isto lhe é faticamente possível, investigar diretamente fatos criminosos, principalmente quando se tratar de abuso de autoridade (a título de exemplo); é bom que se diga não ter o Ministério Público, muitas das vezes, condições de, motu próprio, levar adiante uma investigação criminal, até por carência de material, seja humano (investigadores, por exemplo), seja físico (viaturas, espaço físico apropriado, etc); quando houver dificuldades, nada nos impede, ao contrário, tudo indica, que requisitemos a instauração de inquérito policial (ou termo circunstanciado na forma da Lei nº. 9.099/95) à autoridade policial respectiva, atentando-se para o fiel cumprimento da requisição e adotando-se as medidas criminais em caso de não atendimento (pode-se estar configurado, por exemplo, o delito de prevaricação), além da possibilidade de se configurar ato de improbidade administrativa (art. 11, II da Lei nº. 8.429/92).

Apenas ressaltamos o nosso pensamento quanto à impossibilidade de que o mesmo Promotor de Justiça (ou os mesmos profissionais ou a mesma equipe) que investigue possa, depois, valorando a prova por ele próprio colhida, oferecer denúncia. Não cremos ser isso possível.

Vejamos a respeito as observações de Antonio Evaristo de Morais Filho, citando Altavilla:

“Este fenômeno foi muito bem estudado por Altavilla, em sua famosa ‘Psicologia Judiciária’ (Porto, 1960, v. 5, p. 36-39), onde dedicou dois verbetes aos perigos das hipóteses provisórias, que podem ‘seduzir o investigador, de maneira a torná-lo daltônico nas apreciações das conclusões de indagações ulteriores’. Adverte o mestre italiano que, uma vez internalizada na mente do policial, do promotor ou do juiz, a procedência da hipótese provisória, cria-se em seu espírito a necessidade de demonstrar o que considera verdade, ‘à qual ele liga uma especial razão de orgulho’, como se a eventual demonstração da improcedência de sua hipótese ‘constituísse uma razão de demérito’. E assim, intoxicado por sua verdade, sobrevaloriza todos os elementos probatórios que lhe forem favoráveis e diminui ‘o valor dos contrários, até o ponto de não serem tomados em consideração num ato.” (16)

Afinal de contas nas veias do Promotor de Justiça também corre o sangue dos pobres mortais… A jurisprudência, nesse sentido, também é encontrada:

“Ministério Público. Impedimento de seus órgãos. Nulidade da denúncia. 1) O membro do Ministério Público que atua na fase inquisitorial, apurando pessoalmente os fatos, torna-se impedido para oficiar como promotor da ação penal (inteligência dos arts. 252, I e 258, CPP). Nula, portanto, é a denúncia ofertada, se inobservado esse aspecto.” (EJTJAP, v. 1, n. 1, p. 91).

De toda forma, o STJ já sumulou em sentido contrário ao decidir que “a participação de membro do Ministério Público na fase investigatória criminal não acarreta o seu impedimento ou suspeição para o oferecimento da denúncia.” (Súmula 234).

Interessante, a título de ilustração, a observação feita por Renê Ariel Dotti:

“(…) forçoso é reconhecer que o sistema adotado em nosso país deixa muito a desejar quanto à eficácia e agilidade das investigações. E o maior obstáculo para alcançar estes objetivos decorre da falta de maior integração não somente das categorias funcionais da Polícia Judiciária e do Ministério Público como também de seus integrantes. Observa-se, lamentavelmente e em muitas circunstâncias, a existência de um processo de rejeição que parece ser genético.” (17)

Atentos à observação supra (verdadeira e preocupante), esclarecemos que tais considerações, longe de representarem obstáculos à atuação policial, são apenas elucidações que devem ser feitas a respeito das prerrogativas do Ministério Público, nunca se olvidando da importância da polícia judiciária.

Devemos, na lição do maior de todos os Promotores de Justiça, “no trato com as autoridades policiais (…), além do respeito devido às prerrogativas daqueles colaboradores e não subordinados, pugnar pelo prestígio que advém da sua correção.”(18)

Notas de rodapé

1- Ministério Público e Persecução Criminal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1997, p. 88.

2- Regime Jurídico do Ministério Público, São Paulo: Saraiva, 1996, p. 239.

3- Comentários à Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, Obra Jurídica Editora, ps. 204/205.

4- Idem, p. 90.

5- Ob. cit., p. 239.

6- Idem, p. 400.

7- Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961, p. 165.

8- Estudos Jurídicos em Homenagem a Manoel Pedro Pimentel, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1992, p. 239.

9- Código de Processo Penal Comentado, Vol. 1, São Paulo: Saraiva, 1996, p. 16.

10- Ob. cit., p. 84.

11- Ob. cit. págs. 85 e 87.

12- Processo Penal, São Paulo: Atlas, 1997, p. 77.

13- Código de Processo Penal Anotado, Borsoi, 1960, p. 248.

14- Código de Processo Penal Interpretado, São Paulo: Atlas, 8ª ed., 2001, p. 560.

15- Curso de Processo Penal, Vol. I, Lisboa: Editorial Verbo, 1996.

16- Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, n.º 19, p. 106.

17- O Ministério Público e a Polícia Judiciária – Relações formais e desencontros materiais, in Ministério Público, Direito e Sociedade, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986, p. 135.

18- Roberto Lyra, Teoria e Prática da Promotoria Pública, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1989, p. 121.

Revista Consultor Jurídico

Rômulo de Andrade Moreira é promotor de Justiça, assessor especial do procurador-geral de Justiça, professor de Direito Processual Penal da Unifacs (Salvador), pós-graduado pela Universidade de Salamanca (Processual Penal), especialista em Direito Processual, membro da Association Internationale de Droit Penal.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.


Você está prestes a ser direcionado à página
Deseja realmente prosseguir?
Atendimento