Irregularidade trabalhista é transformada em crime de escravidão

por Xico Graziano

Encravada no Vale do Araguaia, próximo ao Xingu, a Fazenda Rio Preto não conhece rival. Combina tamanho com qualidade, produção com técnica. Um gigante na agropecuária.

Ostenta 150 mil hectares, metade explorados e metade preservados em mata virgem. Suas pastagens, ao contrário das extensas invernadas comuns nas propriedades desse porte, se dividem em pequenos piquetes, de 70 hectares cada. Resulta um inusitado mosaico de lotes onde se criam 80 mil reses.

A boiada impressiona: Nelore de excelente raça, com alta performance. Sal proteinado farta o rebanho durante os meses de seca, entre maio e agosto.

Arame farpado, lá, é coisa antiga. Lascas imponentes configuram cercas com seis fios de arame liso, acima do padrão rural. As estradas internas, 350 km delas, encontram-se aparelhadas contra a erosão. Um primor.

Nesse mar de capim braquiária rodeado pela floresta amazônica, trabalham 246 empregados, todos com carteira assinada. Somente os vaqueiros, daqueles que labutam no lombo de cavalo, somam 89 homens. Tudo é gratuito: casa de alvenaria, luz, TV, cesta básica, refeições. A criançada estuda ali mesmo.

Parece uma grande família.

Romão Flor, mineiro, é o proprietário desse pequeno império agropecuário. Fala mansa, jeito simples, subiu na vida desde a meninice em Patos de Minas.

Vendeu queijo, carpiu feijão, negociou burro, ganhou dinheiro e, há 30 anos, se aventurou nas bandas do Araguaia. Enriqueceu.
Em 1990, vendeu o que tinha para disputar o leilão da famosa Fazenda Suiá-Missu. Muito trabalho, tino e sorte cuidaram de inflar seu progresso.

Transformou-se num pecuarista exemplar. Um maioral.
Essa inusitada história de sucesso, uma espécie de Bill Gates caipira, está marcada agora pelo desgosto. Em 1.º de maio deste ano, a equipe de combate ao trabalho escravo entrou na Fazenda Rio Preto. Jamais se esclarecerá o motivo da ação.

Durante horas, auditores e fiscais vasculharam a fazenda atrás do impossível. Metralhadoras e truculência não foram suficientes para encontrar o objeto desejado: a escravidão rural. Nada de correntes, jagunços, alojamentos, escambo. Tudo se registrava com acerto.

Certa frustração deve ter irritado o manda-chuva dos justiceiros, jovem delegado da Polícia Federal, que impôs uma humilhação ao proprietário. Manteve-o encarcerado, ameaçado com grosseria e cano de arma, até que, noite escura, finalmente a fiscalização botou a mão no pecado: seis trabalhadores rurais, recém-contratados, estavam sem carteira profissional.

Pronto. Um deslize menor, comum em qualquer ramo de trabalho da economia, acionou o gatilho da terrível mutação jurídica que atormenta o mundo rural do País: a deficiência formal do emprego virando trabalho escravo no campo.

Uma maldosa transmutação.

Romão Flor foi indiciado pelo crime de analogia à escravidão. Os empregados temporários acabaram “libertados”. As estatísticas engrossaram. Só ninguém viu o gato. O que se passa? Engano ou engodo?

O trabalho degradante, subumano, configura um horror. E, incontestavelmente, subsiste no campo e na cidade. Carvoeiros medievais, devastadores de florestas, agenciadores de crianças nas ruas, quem avilta o ser humano não merece condescendência. Cadeia para eles.

Todavia, bandidos rurais não podem ser confundidos com agricultores de verdade. Tampouco os pilantras da metrópole, misturados com empresários sérios. A confusão alimenta a mentira.

Triste sina dos agricultores nacionais. Investem em tecnologia e ganham produtividade, assombrando o mundo com sua força, mas sofrem com o preconceito da mídia, que lhes imputa, genericamente, a fama de mau-caráter.

Jornalistas talentosos, líderes respeitados turvam suas análises sobre o campo pela tinta podre do passado. Esbravejam, corretamente, contra a barbárie, sem perceber que atingem o fígado do agricultor de bem. Seus bons propósitos ferem o orgulho dos homens do campo.

No Vale do Araguaia-Xingu, como alhures, os fazendeiros não se opõem ao clamor contra o trabalho degradante. Concordam, inclusive, que se exproprie a terra de quem o utilize. Exigem, apenas, uma coisa: que se explique, claramente, o que caracteriza trabalho escravo.

Os agricultores, os bons, estão atordoados. Pressionados politicamente, delegados e fiscais do trabalho transformam em crime de servidão irregularidades trabalhistas comuns. Aplique-se a lei com rigor, mas não afrontem a razão.

A confusão é tamanha que lá, no Pará e em Mato Grosso, os produtores estão sendo orientados a impedir que seus vaqueiros bebam água cristalina dos córregos: cuidado, compartilhar água com animais pode caracterizar subserviência! É o fim da picada.
A insana perseguição ao trabalho escravo na zona rural afugenta o emprego.

Se, por um lado, ajuda a aprimorar as relações de trabalho, por outro, afasta a contratação de serviços. Normal em qualquer setor, a terceirização da mão-de-obra está sendo banida na roça. Resultado: ao invés de operar a favor, a ação pública, por passar da conta, prejudica os mais necessitados.

Favorece o herbicida, não o roceiro.

Ensina Gracián, filósofo espanhol, que laranja espremida ao máximo só dá amargor. Romão Flor está indignado. Em nome de boa causa, acabou vítima da infâmia. Será reparado, um dia, quando a carne, que produz, e o emprego, que gera, superarem essa terrível discriminação que massacra o campo.

Xico Graziano é agrônomo, foi presidente do Incra (1995) e secretário da Agricultura de São Paulo (1996-98)

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