Irretroatividade da lei

Leon Frejda Szklarowsky
advogado e consultor jurídico em Brasília (DF), subprocurador-geral da Fazenda Nacional aposentado, editor da Revista Jurídica “Consulex”

Considerações gerais

Miguel Reale ensina que a experiência jurídica pressupõe determinadas constantes valorativas ou axiológicas, sem as quais a história do Direito seria despida de sentido. (1)

Sempre que o legislador deles descurar, produzirá uma obra injusta, má e iníqua e receberá severa reprimenda da sociedade. A trajetória da história humana demonstra que o Estado não pode superpor-se a interesses vitais do ser humano, porque não subsistirá aos impactos de violenta reação em cadeia. Os ditadores acabam sempre perdendo a batalha.

Inúmeros são os exemplos de tiranos e governantes déspotas e impérios construídos para a eternidade, os quais não sobreviveram sequer umas dezenas ou centenas de anos ou pouco mais, tendo sido apagados da face da Terra, até sem derramamento de uma gota de sangue sequer, porque o ser humano carrega dentro de si as energias vitais em busca da liberdade e do resguardo de valores eternos e universais, como corolário e em homenagem e respeito à segurança jurídica e da sociedade.

Entre esses valores, há que distinguir o princípio da irretroatividade das leis que lembra imediatamente a noção de ato jurídico perfeito, coisa julgada e direito adquirido, em respeito às suas realizações e aos seus feitos.

Este princípio acompanha o homem desde o início de sua história jurídica e está profundamente incrustado na consciência de todos os povos, desde a mais remota antiguidade como um monumento perene e universal.

Direito Comparado

Desde os tempos imemoriais, os povos têm-se desdobrado em assegurar certos princípios que servem de indicativo jurídico para a melhor convivência em sociedade.

O Código de Hammurabi, (2) no § 40, disciplina a venda de campo, pomar ou casa, por sacerdotisa (nadîtum), mercador ou outro feudatário, devendo o comprador assumir o serviço ligado à casa, campo ou pomar que adquiriu. (3) Esse código, segundo Bouzon, não é a lei mais antiga do Oriente, pois anteriormente se editaram outros textos, como as Leis de Eshnunna, o Código de Lipit-Istar de Isin, (4) Coleção de Leis do Rei Ur-Nammu. (5)

Emile Szlechter (6) vê, porém, nessa disposição, a existência de direito adquirido anterior ao Código.

O Direito Egípcio antigo não ficou alheio a essa diretriz. Limongi França ensina que o Código de Bocchoris manifestou inequivocamente a conservação do direito adquirido. (7)

O Código de Manu, da Índia, dita que o rei deve levar em conta o lugar e o tempo. Limongi França admite que essa referência é uma condenação à retroatividade da lei. (8)

Na China, a coletânea dos Tsings, que vigorou até a proclamação da República, no ano de 1912, continha disposição incisiva, dispondo que as leis teriam plena eficácia e efeito, a partir de sua publicação, e qualquer transação se regeria pelas leis mais recentes, mesmo que tenha sido contratada antes de sua promulgação. Ainda, é a lição de Limongi França, com fonte em Ho Tchong-Chan, recordando que a República chinesa guardou, rigorosamente, o princípio da irretroatividade. (9)

O Direito antigo da Grécia conheceu embrionariamente o princípio da irretroatividade, de acordo com ensinamentos de Carlos Maximiliano e Lassale.

Roma, desde sua origem, em 754 a.C., passa, por largo desenvolvimento, e não desconheceu esse princípio, estando profundamente arraigado, em seu espírito, graças aos Veteres e a mestres como Cícero.

Limonge França, corroborando este entendimento, alude à correspondência entre Plínio, o Moço, e o imperador Trajano, em que este afirma que a Lei Pompéia só será observada para o futuro, pois se se quisesse dispor para o passado, isto implicaria em trazer muitas perturbações. (10)

Ainda, Limonge França narra que nas Ordenações Manuelinas percebe-se em algumas disposições a determinação do efeito imediato das normas e as Ordenações Filipinas, de D. Filipe II, de Portugal, contém o principio da aplicação das leis novas para o futuro. (11)

Entre os Códigos medievais, menciona a lei promulgada pelo imperador Lotário, dispondo apenas para o futuro, admitindo a irretroatividade como princípio plenamente assente.

O Direito Canônico reprova veementemente a retroatividade. O Código de Direito Canônico (12), no cânone 9, comanda que as leis visam o futuro, não o passado, a não ser que explicitamente nelas se disponha algo sobre o passado.

O cânone 16 indica que interpreta autenticamente as leis o legislador e aquele ao qual for ele concedido o poder de interpretar autenticamente. O § 2 aclara que a interpretação autêntica, apresentada a modo de lei, tem a mesma força que a própria lei e deve ser promulgada; se unicamente esclarece as palavras da lei já por si certas, tem valor retroativo; se restringe ou estende a lei ou se esclarece uma lei duvidosa, não retroage.

O Padre Jesús Hortal (13), estudando esses preceitos, comenta que a irretroatividade das leis é uma exigência para a segurança jurídica dos membros de qualquer comunidade, mas, em caso de disposições penais, admite a retroatividade, se estas forem mais favoráveis ao réu. (14) É a retroatividade benigna também adotada pelo nosso Direito.

Os povos têm-se esmerado em respeitar o princípio da irretroatividade, tanto no campo judicial quanto no legislativo.

O Direito francês previa, no artigo 2º do Código de Napoleão, que a lei disporá para o futuro e não terá efeito retroativo.

A Constituição da Noruega, de 1814, abjurava a retroação de qualquer lei e também assim a Constituição do México, de 1947 e 1948, proibia o efeito retroativo da lei, em detrimento de qualquer pessoa (15).

A Constituição Espanhola, de 1978, garante o princípio da irretroatividade das disposições sancionatórias não favoráveis ou restritivas de direitos individuais. (16) A seu turno, as “leis de base” não poderão, em nenhuma hipótese, autorizar a edição de normas de caráter retroativo. (17)

A República Portuguesa consagra, no artigo 18, 3 – Força Jurídica – a irretroatividade das leis, que dizem respeito às restrições das liberdades, direitos e garantias. (18)

A Constituição dos Estados Unidos da América, absorvendo doutrina arraigada, profundamente, na consciência do povo, adotou o princípio da irretroatividade e do direito adquirido. (19)

A Constituição da República da Venezuela, de 1961, com a Emenda nº 1, de 1973, no artigo 44, garantia a irretroatividade da lei, exceto quando imponha pena menor. (20)

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, no artigo 8º, assegura a toda pessoa o recurso efetivo para as jurisdições nacionais competentes contra os atos que violem os direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição ou pela lei. Entre os direitos fundamentais da maioria das Leis Maiores dos diversos Estados, inclusive do Brasil, distingue-se o resguardo ao direito adquirido. (21)

A Carta da Organização dos Estados Americanos, assinada em 30 de abril de 1948, prevê, no artigo 111, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, cuja função precípua é promover o respeito e a defesa dos direitos humanos e servir como órgão consultivo da Organização.

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, aprovada pela Conferência de São José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, e aderida pelo Brasil, em 25 de setembro de 1992, mediante o decreto 678, de 6 de novembro deste mesmo ano, dispõe que “toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais. (22)”

Como o Brasil inscreve, entre os direitos fundamentais, o direito adquirido e subscreveu esse Documento, não pode ficar alheio a ele.

A doutrina

As alterações legislativas não podem simplesmente prejudicar os direitos das pessoas, pois, se assim for, a estabilidade estará sofrendo um golpe mortal e a incerteza nas relações jurídicas produzirá o caos e a mais ferrenha ditadura, qualquer que seja o disfarce.

Cite-se, por oportuno, o pensamento de Walker, trazido à colação por Franzen de Lima, no sentido de que, as leis retroativas, somente tiranos as criam e só escravos a elas se submetem, (23) o que traduz com muita propriedade essa realidade desprezível.

A doutrina alienígena e nacional é pacífica na defesa intransigente do princípio da irretroatividade.

Esta não constitui mero apanágio jurídico ou enfeite que se pode usar ou não, dependendo do momento e dos humores do legislador ou de eventual governante. Razões de Estado também não podem ser invocados, sob pena de se massacrar a democracia e por em risco os súditos. Infelizes e nefastas experiências, neste sentido, não faltam, com conseqüências de todos conhecidas. Não há meia democracia. Ou ela existe plenamente ou será mero farrapo ou pernicioso e perverso engodo.

A sucessão de normas no tempo e o conflito entre elas mereceram dos estudiosos as mais belas e preciosas páginas, em todas as épocas, mercê de sua importância.

Maria Helena Diniz cita um critério de ouro que não pode ficar esquecido, ou seja: o princípio da irretroatividade tanto se aplica ao julgador quanto ao legislador e esta é a regra, no silêncio da lei; entretanto poderá retroagir, se estiver expressa e não ferir direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. (24)

Vicente Ráo estuda as diversas correntes, acerca da teoria dos direitos adquiridos, e, citando De Ruggiero, reduz a duas. A primeira, ele não considera, por distinguir entre regras de direito público e de direito privado. Para a outra, não importa se se trata de direito público ou de direito privado, pois a lei governa todos os fatos, sob seu comando.

Para a segunda corrente, citada por De Ruggiero, a irretroatividade é uma constante, não importa tratar-se de direito público ou privado ou de ordem pública, nem se o fato deriva da manifestação da vontade da pessoa ou dela independe.

Vicente Ráo noticia que o passado é inviolável, fundado na própria natureza humana, e invocando Portalis, citado por Lomonaco, acorda que “na ordem da natureza só o futuro é incerto e esta própria incerteza é suavizada pela esperança, a fiel companheira de nossa fraqueza. Seria agravar a triste condição da humanidade, querer mudar, através do sistema da legislação, o sistema da natureza, procurando, para o tempo que já se foi, fazer reviver as nossas dores, sem nos restituir as nossas esperanças”. (25)

É um pensamento poético que, entretanto, deve tocar fundo a alma do jurista e dos estadistas, notadamente no exato estágio em que a vida humana e seus valores são postos em xeque. De fato, quando a vida humana, bem mais precioso entre todos os demais, nada mais vale, é sinal de que o homem deve parar e fazer profunda reflexão, porque chegou ao fundo do abismo e há que se repensar o sentido de todas as coisas!

Alguns países adotavam a irretroatividade, em razão da matéria, v.g., o direito germânico, o direito italiano, o direito francês e o direito suíço.

O direito transitório (ou intertemporal, assim denominado, de início, por Affolter), vem a responder a crucial indagação decorrente do conflito de competência da nova ordem jurídica com a anterior.

Carlos Mário da Silveira Pereira, comentando a Lei de Introdução ao Código Civil, assevera que a noção de direito adquirido tem aplicação tanto no direito privado quanto no direito público.

Contra o argumento de que as leis de ordem pública podem retroagir, disserta, com veemência e suma autoridade, que a lei nova não pode ferir direito subjetivo, seja de ordem privada, seja de ordem pública, desde que originado de fato, apto a produzi-lo, de conformidade com as normas vigentes, no momento de sua ocorrência e incorporado ao seu patrimônio individual. (26)

Neste sentido, também se pronunciam Reynaldo Porchat (27), com fonte em Gabba, Carlos Maximiliano, Wilson de Souza Campos Batalha (28) e Antônio José Miguel Feu Rosa. (29)

Serpa Lopes distingue entre os fatos exauridos inteiramente, sob a vigência da lei antiga, e aqueles surgidos no regime da lei anterior e prosseguem até serem atingidos pela lei nova. No primeiro caso, aduz, não há que falar em conflito, porque se trata de realidade consumada, indiferente à nova lei. Também não há conflito, quando os fatos surgem e se consumem inteiramente, sob a égide da lei nova.

Sustenta ainda que, em face da Constituição e da Lei de Introdução ao Código Civil, a proteção ao ato jurídico perfeito e ao direito adquirido refere-se com igual intensidade aos facta praeterita e aos facta pendentia, e, ainda, afirma que: “não é possível a eficácia imediata da lei nova, se contrariar ao ato jurídico perfeito ou o direito adquirido”. (30)

Na lição de João Franzen de Lima, as leis são feitas, no interesse da sociedade, e, por isso mesmo, reconhece, com apoio na melhor doutrina, que não haveria nenhuma segurança para as pessoas, se seus direitos, a cada momento, pudessem ser postos em dúvida, modificados ou suprimidos, pela alteração ou revogação das leis.

Este autor, com Köler, citado por Clóvis Beviláqua; Cunha Gonçalves, Grenier e Bonnecase, não admite que a segurança jurídica seja afetada, pois, se isto ocorrer, estar-se-á frente a uma situação de anarquia e opressão. (31)

A doutrina clássica, que a denomina de direitos adquiridos, segundo Franzen de Lima, considera três situações distintas, ante uma lei nova:

Faculdade: poder que a lei atribui a alguém e ainda não foi exercido.
Expectativa: As pessoas poderão vir a possuir um direito, se a lei não for revogada.
Direito Adquirido: É o direito que tem origem em fato apto a produzi-lo em vista da lei em vigor.
Há o respeito ao direito adquirido. Corrobora o entendimento de que a lei pode ser aplicada a qualquer situação jurídica, inclusive anterior a sua vigência, desde que não colida com aquele.

Julien Bonnecase substitui as idéias de expectativa e de direito adquirido pela de situação jurídica abstrata e situação jurídica concreta e funda-se na existência de um fato ou ato jurídico. (32)

Paul Roubier, mestre da Universidade de Lyon, advoga um entendimento original acerca do conflito de leis no tempo, tendo a doutrina aceite com agrado essa teoria.

Este autor decompõe o tempo em três momentos distintos: 1. O pretérito. 2. o presente. 3. o futuro. Assim, a lei aplicar-se-á no tempo da seguinte maneira: retroativamente, referindo-se a passado. Efeito imediato: aplicando-se desde logo ao presente. Efeito diferido: aplicação para o futuro.

Observa este autor que a aplicação retroativa se refere ao passado, ou seja, incide sobre fatos já realizados – facta praeterita e a aplicação sobre situações em curso leva em conta a facta pendentia. Analisando o Código de seu país, conclui que a aplicação, com efeito retroativo da lei, é proibida. É também o que ocorre no nosso Direito, em face da Constituição e da Lei de Introdução ao Código Civil.

Oscar Tenório alerta que “Reconhecido o primado da Constituição, o legislador ordinário tem as suas funções limitadas, não podendo prescrever leis retroativas. À magistratura cabe, por sua vez, não aplicar norma que viole o preceito constitucional”. (33)

Vale a pena meditar sobre o pensamento lapidar de Luís Recaséns Siches, ao lecionar que o direito não se destina a prestar culto à idéia de justiça, senão e precipuamente para dar segurança e certeza à vida em sociedade, já que, sendo segurança o valor essencial, sem ela inexiste o Direito. (34)

Constituições brasileiras

O princípio da irretroatividade, no Brasil, está inscrito na Constituição de 1988 e insere-se entre as garantias fundamentais. Não se trata, pois, de mera proteção legal, conquanto a Lei de Introdução ao Código Civil também contenha essa norma. (35)

A Lei de Introdução ao Código Civil (36) tem a seguinte redação: “a lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico, o direito adquirido e a coisa julgada. Os três parágrafos dessa disposição legal conceituam esses institutos”, a saber:

Direito adquirido é o direito que seu titular ou alguém por ele possa exercer, como aquele cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição preestabelecida inalterável ao arbítrio de outrem. (37)

Coisa julgada ou caso julgado é a decisão de que não mais caiba recurso.

Ato jurídico perfeito é o já consumado, de conformidade com a lei vigente ao tempo em que se efetuou. (38)

Direito adquirido é, assim, o resultado advindo do que dispõe a lei ou de fato apto, e que ingressou ao patrimônio moral ou material da pessoa (titular do direito), isto é, o constituído, de forma definitiva, em conformidade com a lei vigente no momento de sua constituição, incorporando-se, definitivamente, ao patrimônio moral ou material da pessoa (titular do direito). (39) É, assim, o patrimônio indisponível da pessoa.

O inciso XXXVI, do artigo 5º, do Texto Maior de 1988, homenageia essa norma sacrossanta, assim dispondo: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Não é qualquer assentamento legal, como sói acontecer em alguns países, senão dura e inequívoca determinação constitucional, com sede no Título II que disciplina os direitos e garantias fundamentais. Vale dizer: nem emenda constitucional poderá suprimir esse princípio.

A Constituição, realmente, pode ser emendada pela vontade de, no mínimo, um terço dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, do Presidente da República ou de mais da metade das Assembléias Legislativas das Unidades da Federação, desde que cada uma delas se pronuncie pela maioria de seus membros.

Entretanto, a Lei Maior deixa claro que sequer poderá ser objeto de deliberação proposta que vise abolir, entre outras coisas, os direitos e garantias individuais. Entre estes se coloca o princípio da irretroatividade.

Mesmo a Emenda Constitucional 20, de 1998, que alterou, entre outros, o § 10 do artigo 37 e o artigo 40 da Constituição, não suprimiu, como não poderia fazê-lo, direitos adquiridos. Estabeleceram-se regras de direito transitório e modalidade de expectativa de direito, ao tratar do regime de previdência. Respeitou o legislador os pressupostos fundamentais do Direito.

Basta que se cumpram seus ditames. Examinem-se os acrescidos artigos 248 a 250.

O artigo 60 é incisivo ao proibir peremptoriamente emenda à Constituição visando eliminar os direitos e garantias individuais. Entre essas garantias, distinguem-se o ato jurídico perfeito, os direitos adquiridos e a coisa julgada. (40)

Nem os atos de força o fizeram (Atos Institucionais I, II e V), visto que sempre mantiveram as garantias constitucionais, salvo a vitaliciedade e estabilidade (41), acrescidas da inamovibilidade (42) e, posteriormente, do exercício em funções por prazo certo.

O Ato Institucional V, de 13 de dezembro de 1968, somente suspendeu as garantias de vitaliciedade, estabilidade, inamovibilidade e a de exercício em funções por prazo certo. (43)

Todas as Constituições brasileiras sempre observaram, com rigor, o respeito à irretroatividade, não alcançando as leis o direito adquirido.

A Constituição de 1824, no artigo 179, inciso II, comanda que nenhuma lei será estabelecida sem utilidade pública e, no inciso, III, veda terminantemente o efeito retroativo.

A Constituição de 1891, de forma cristalina, proíbe a prescrição de lei retroativa. (44) O Ministro do Supremo Tribunal, João Barbalho, invocando o grande amor à liberdade, escreve que “si a lei pudesse ser com prejuízo dos direitos do cidadão applicada a factos passados antes d’ella, mal segura ver-se-ia, e o poder de legislar fora o da tyrannia e oppressão”. (45)

As demais Cartas Maiores, salvo a de 1937, continham essa regra asseguradora da irretroatividade. (46) Não obstante, apesar dessa omissão constitucional, remanescia a Lei de Introdução ao Código Civil, que proibia e, ainda, proíbe a retroatividade.

Alguns juristas entendem que só a revolução pode suprimir os direitos e garantias fundamentais ou uma Constituinte, com poder originário. (47) Todavia, até, nestas duas situações extremas, é impossível que tal ocorra, porque são valores arraigados na consciência do povo que deverão ser respeitados.

De fato, se a Constituição, oriunda de um Poder Constituinte originário, mantiver, entre os direitos e garantias fundamentais, o instituto do direito adquirido, que a anterior inscrevia, em seu bojo, não há como negar a continuação dessa garantia. É o que também se extrai do comentário de Celso Bastos. (48) E todas elas, ressalvada a de 1937 – a dita Carta Polaca – sempre conservaram esse princípio tão sagrado a todos os povos, à doutrina e à jurisprudência.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

A Corte Maior Brasileira já se manifestou sobre a irretroatividade e o direito adquirido, por muitas vezes.

Em decisão de grande alcance, pontificou que “o disposto no artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal, se aplica a toda e qualquer lei infraconstitucional, sem qualquer distinção entre direito público e direito privado, ou entre lei de ordem pública e lei dispositiva”. (49)

Neste acórdão, o Relator Ministro Moreira Alves teceu notável e erudito estudo que foi acompanhado por seus ilustres Pares. (50)

Faz profunda análise, em face da melhor doutrina e escudado no Direito brasileiro e estrangeiro.

José Carlos de Matos Peixoto anota que as leis dispõem para o futuro, daí porque os atos anteriores à vigência da lei nova regem-se pela lei do tempo em que foram praticados, isto é, tempus regit actum. Não obstante, prossegue, algumas leis, excepcionalmente, retrocedem no tempo, chamando a isto retroatividade (51).

A doutrina faz nítida distinção entre os vários graus da retroatividade. A retroatividade máxima atinge a coisa julgada ou os fatos jurídicos consumados. A média abrange os direitos exigíveis, porém não realizados antes da sua vigência da lei. Na hipótese da mínima, a lei nova atinge tão somente os efeitos dos fatos anteriores, verificados após a data em que ela entra em vigor. (52)

O Relator, em seu voto, com apoio em Planiol, Matos Peixoto e Roubier, fixa pontos significativos, que, por si só, bastam para nortear a melhor solução. Com apoio em Planiol, conclui que, nas duas primeiras hipóteses, a lei age para trás e retroage.

O Ministro Moreira Alves recorda que, entre nós, a eficácia da lei no tempo é matéria constitucional, de sorte que mesmo a idéia de ordem pública não pode contrariar o princípio da não retroatividade. Esta doutrina é partilhada também por Pontes de Miranda, Osvaldo Aranha Bandeira de Mello, Celso Antonio Bandeira de Mello, este fazendo algumas distinções de situações. (53)

Ornam ainda este acórdão, as lições do Ministro Celso de Mello, citando torrencial jurisprudência do Supremo. Reitera as palavras de Carlos Mário Pereira, concluindo que: “onde quer que exista um direito subjetivo, de ordem pública ou privada, oriundo de um fato idôneo a produzi-lo segundo os preceitos da lei vigente ao tempo em que ocorreu, e incorporado ao patrimônio individual, a lei nova não o pode ofender”.

Outros julgados e precedentes corroboram o mesmo entendimento. (54)

TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO

A Corte Maior de Contas, em decisão sobre a aposentadoria e contagem de tempo, chancelou o entendimento de que a norma dispõe para o futuro e não retroativamente, pois as regras em vigor nos mais variados sistemas jurídicos do mundo moderno se fundamentam na irretroatividade das leis. (55)

Conclusão

A propósito e que se aplica como uma luva à realidade de nossos dias, mentalize-se o que ensina Miguel Reale: “De um ponto de vista transcendental, porém que implica o prisma do vir a ser das possibilidades históricas, a contraposição do Direito Natural ao Positivo põe-se como um imperativo ético, metajurídico ou transjurídico, traduzindo um imperativo de mudança e perfectibilidade, em função dos direitos humanos fundamentais, transitoriamente feridos”. (56)

Assim, qualquer reforma legislativa ou imposição do Estado, deve levar em consideração as garantias e os direito fundamentais É preciso, pois, acabar com os sofismas que apenas mascaram a realidade.

Atente-se para a aguda observação do presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Marco Aurélio, que abomina a sistemática alteração da Constituição e considera a taxação dos inativos de hoje menosprezo à Constituição, porque estes têm uma situação constituída, como já confirmou o próprio Pretório Excelso, visto que o País têm leis demais e é preciso que as pessoas respeitem a legislação vigente. (57)

NOTAS

Cf. Lições Preliminares do Direito, José Bushatsky Editor, 1973, p. 350 usque 355.
Hammurabi (1728-1686 a.C). Cf. Código de Hammurabi, Introdução, tradução (do original cuneiforme) e comentários de Emanuel Bouzon, Editora Vozes Ltda., Centro de Investigação e Divulgação Publicações CID, Petrópolis, 1976).
Cf. O Código de Hammurabi cit. Cf. também, do mesmo autor, As Leis de ESHNUNNA (1825-1787 A.C.), Editora Vozes, Petrópolis, 1981.
1875-1865 a.C. Cf. Código de Hammurabi cit.
2050-2032 a.C. Cf. Código de Hammurabi cit.
Cf. La proprieté Foncière Privée dans L’ancien Droit Mesopotamique, in Études de Droit Contemporain, Institut de Droit Comparé, Paris, 1963.
Cf. A Irretroatividade das Leis e o Direito Adquirido, Editora Revista dos Tribunais, 4ª edição, 1994, p. 34.
Idem, ibidem.
Idem, ibidem, p. 36.
Idem, ibidem, p.42.
Cf. A irretroatividade das leis e o direito adquirido, Editora Revista dos Tribunais, 4ª edição, 1994, p. 110 a 114.
Codex Júris Canonici, promulgado pelo Papa João Paulo II, traduzido pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, com notas e comentários do Padre Jesús Hortal, S.J., Edições Loyola, São Paulo, Brasil, abril de 1998, 11a edição. O texto latino é fotocópia direta da edição oficial publicada pela Libreria Ediitrice Vaticana. Consulte-se também o Código de Derecho Canônico y Legislación Complementaria, texto latino u versión castellana, com jurisprudência y comentários por Lorenzo Miguelez Dominguez, Sabino Alonso Moran, O.P., Marcelino Cabrero de Anta, C.M.F., e prólogo de José López Ortiz, O.S.A., Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, MCMLII, 4ª edición, texto bilíngüe e comentários por professores de la Pontifícia Universidad de Salamanca.
Idem, p. 6, nota ao cânone 9.
Cf. cânone 1313, p. 5772 e 573.
Cf. artigos 97 e 14 respectivamente, in O Direito e a vida dos direitos, Editora Resenha Universitária, São Paulo, 1977, 2ª edição, 1º volume, tomo III, p. ,p. 357, de Vicente Ráo.
Cf. artigo 9, 3. Consulte-se a Constitucion y Tribunal Constitucional, Editorial Civitas, Edición preparada por Enrique Linde Paniagua, 1997, bem como a nota 15 a este artigo.
Cf. artigo 83, alínea b, da citada Constituição.
Cf. Constituição, atualizada até 1988, contendo a quarta revisão constitucional (Lei Constitucional 1/97), Livraria Almedina, Coimbra, 1998.
Cf. artigo 1º, Seção IX, § 3º, e § 1º, Seção X., in site http://www.law.cornell.edu/constitution/constitution.overview.html
f. El Cid Editor, Caracas, 1977.
Cf., DE Vicente Marotta Rangel, Direito e Relações Internacionais, Editora Revista dos Tribunais, 5ª edição, 2-1997.
Cf. artigo 25.
Cf. Curso de Direito Civil Brasileiro, Forense, 2ª edição, 1955, p. 88.
CF. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada, Saraiva, 1994, p. 192.
Cf. O Direito e a vida dos direitos, Editora Resenha Universitária, São Paulo, 1977, 2ª edição, 1º volume, tomo III, p. 355.
Cf. Instituições de Direito Civil, Forense, 2ª edição, 1966, I/107.
Cf. O Código Civil e a Retroatividade, Revista de Direito Civil, Comercial e Criminal, Rio, 1917, volume 43.
Cf, Direito Intertemporal, Forense, Rio de Janeiro, 1980, p. 164.
Cf. Processo Penal, Editora Consulex, p. 72.
Cf. Curso de Direito Civil, 1971, 5ª edição, 1, p. 170/1
Cf. Curso de Direito Civil Brasileiro, Forense, 2ª edição, 1955, p. 58 a 89.
Cf. Précis de Droit Civil, 1938, I/103/19.
Cf. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, comentada por Oscar Tenório, Livraria Jacinto Editora, Empresa A Noite, Rio de Janeiro, 1944. p. 110.
Apud obra cit. de Oscar Tenorio, p. 109.
Cf. artigo 6º da Lei de Introdução ao Código Civil.
Cf. artigo 6º do Decreto-lei 4657, de 1942.
Consulte-se o precioso trabalho de Ovídio Bernardi, sobre o assunto, na Revista dos Tribunais 284/21.
Esta redação foi determinada pela Lei 3238, de 1957.
Neste sentido, Gabba (Teoria de la retroatività delle leggi, 1891, 3ª edição, Maria Helena Diniz, Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretado, Saraiva, 1994, R. Limongi França, Irretroatividade das Leis e o Direito Adquirido, Editora Revista dos Tribunais, 4ª edição, 1994, e José Náufel, Novo Dicionário Jurídico Brasileiro, José Konfino – Editor, 1959, Volume II).
Cf. artigo 5º, XXXVI. Neste sentido, Luiz Alberto Gurgel de Faria, O Direito Adquirido e as Emendas Constitucionais, in www.jfrn.gov.br/docs/art3.doc ; Carlos Ayres Brito e Valmir Pontes, in Revista de Direito Administrativo, Editora Renovar, 202/80; Sérgio de Andréa Ferreira, O princípio da segurança jurídica, in Revista Forense 334/198; Carlos Mário Velloso, in Temas de Direito Público, Belo Horizonte, 1994, p. 448; Raul Machado Horta, in Estudos de Direito Constitucional, Del Rey, 1995, p. 282; Ivo Dantas, in Direito Adquirido Emendas Constitucionais e Controle da Constitucionalidade, Lúmen Júris, Rio de Janeiro, 1997; José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, Revista dos Tribunais, 6ª edição, 1990, p. 374/375.
Cf. artigo 7º do Ato Institucional 1, de 9 de abril de 1964.
Cf. artigo 14 do Ato Institucional 2, de 7 de outubro de 1965.
Cf. artigo 6º.
Cf. artigo 11, 3º.
Cf. Constituição Federal Brazileira, Commentarios, Typographia da Companhia Litho-Typographi, em Sapopemba, 1902.
Cf. artigos 113, 3, CF/34; 141, § 3º CF/46; 150, § 3º CF/67 e 153, § 3º EC1/69.
Cf. matéria escrita pelo jornalista Fausto Macedo, citando o Ministro Marco Aurélio, in O Estado de São Paulo de 15 de janeiro de 2003, p. A8.
Cf. Comentários à Constituição do Brasil, Saraiva, 1989, 2º volume, p. 189.
Cf. Ação Direta de Inconstitucionalidade 493 – DF, Pleno, Relator Ministro Moreira Alves, in Revista Trimestral de Jurisprudência volume 143, p. 724 e segs. Por maioria de votos, o Tribunal conheceu ação, integralmente, vencido em parte o Ministro Carlos Mário Velloso, que dela conhecia apenas no ponto que impugna os artigos 23 e parágrafos, 24 e parágrafos, da Lei 8177, de 1º de março de 1991, não assim quanto aos artigos 18, caput, §§ 1º e 4º, 20, 21 e parágrafo único. No mérito, por maioria de votos, o Pretório Excelso julgou a ação procedente, in totum, declarando a inconstitucionalidade dos artigos 18, caput, 21 e parágrafo único, 23 e §§. 24 e §§, da Lei 8177, vencidos em parte os Ministros Ilmar Galvão e Marco Aurélio, que a julgavam procedente também, em parte, para declarar a inconstitucionalidade, apenas, do § 3º do artigo 24; e, ainda, o Ministro Carlos Mário Velloso que a julgava parcialmente procedente para julgar inconstitucional somente os artigos 23 e seus §§, 24 e seus §§. Presidiu a sessão o Ministro Sydney Sanches.
Neste sentido, a Representação 1451-7 – DF, relatado pelo Ministro Moreira Alves.
Ministros Sydney Sanches, presidente, Celso de Mello, Sepúlveda Pertence, Paulo Brossard, Octavio Gallotti e Néri da Silveira, Ilmar Galvão, Marco Aurélio e Carlos Mário Velloso. O Ministro Francisco Rezek não participou, porque não integrava o Tribunal, quando se iniciara o julgamento.
In acórdão supracitado.
Neste sentido, situam-se Arnoldo Wald e Carlos Mário da Silva Pereira.
Cf. respectivamente Comentários á Constituição de 1967, com a Emenda 1/69, V, Editora Revista dos Tribunais, 2ª edição, 1974, p. 99; Princípios Gerais de Direito Adminstrativo, Forense, 2ªedição, p. 333 e segs., e Atos Administrativos, Editora Revista dos Tribunais, 1981, p. 105 a 119.
Cf. ADin 2112, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, RJ, DJ 18.5.01, Pleno; RE 226894 – PR, Rel. Ministro Moreira Alves, Pleno, DJ 7.4.00.
Cf. Processo TC – O14. 927/99-3. Decisão 41/502 – 1ª Câmara, Ministro presentes: Presidente Walton Alencar Rodrigues, Relator Iran Saraiva e Lincoln Magalhães da Rocha e Auditores: Augusto Sherman Cavalcanti e Marcos Benquerer Costa, publicado na DOU de 13-3-2002, apud Boletim de Direito Administrativo, Editora NDJ 11, de novembro de 2002, p. 913 e segs. São Paulo. O Relator adotou, in integris, como relatório a Instrução elaborada no âmbito da Secretaria de Recursos.
Cf. Teoria Tridimensional do Direito, Situação Atual, Saraiva, 4ª edição, 1986, p. 110.
Cf. entrevista do Presidente do STF, Ministro Marco Aurélio, aos jornalistas Alexandre Botão e Eumano Silva, in Correio Braziliense, de 24 de fevereiro de 2003, p. 8.

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