Por Helder Galvão
Em outubro deste ano completa-se um ano do falecimento de Steven Paul Jobs. Para muitos, Jobs foi o homem inovador, gênio responsável por produtos extraordinários e que revolucionou a vida de todos nós. Para outros, não passou de um falso ídolo, adepto de práticas concorrenciais desleais e um autêntico ladrão de ideias.
Para o bem ou para o mal, a sua trajetória está direta e intimamente ligada com a propriedade intelectual, que ora era ignorada, ora era enaltecida. Tudo dependeria da sua famosa visão binária do mundo e da ocasião que melhor lhe convinha.
Foi assim, por exemplo, ao criar a marca Apple, cuja existência no mercado já era conhecida através da editora musical dos Beatles. Não foi à toa que esta colidência gerou um longo processo judicial entre as empresas e só resolvido mediante o pagamento de generosas cifras da Apple, a dos computadores.
Já no lançamento do Apple I, pioneiro computador pessoal, foi necessário que Steve Wozniak, seu parceiro e sócio na criação da empresa, publicasse um livro para esclarecer que a autoria daquela máquina fora inteiramente sua. A Jobs, o reconhecimento do seu talento como empreendedor, mas não como autor.
Não demorou muito para que outro projeto, o famoso Macintosh, levasse o crédito de Jobs. Porém, o que corre nos bastidores do Vale do Silício é que a sua autoria coube a Jef Raskin, então engenheiro líder do projeto, mas tendo Jobs a habilidade de aperfeiçoá-lo e dar o seu toque de midas. Só que ideias e aperfeiçoamentos não lhe conferem o status de autor.
E por falar no Vale do Silício, ali ocorreu o que Walter Isaacson, autor da biografia de Jobs, chama de o maior assalto da história. Jobs, então, ao visitar o Centro de Pesquisa da Xerox, toma conhecimento da criação da interface gráfica e do mouse. Se ladrão que rouba ladrão tem 100 anos de perdão, Jobs passou a copiar a interface gráfica e o mouse da Xerox, assim como fez Bill Gates contra a Apple ao lançar o Windows. A partir desse episódio, Jobs não só acusa Gates de “pilhagem de direitos autorais”, mas também cunhou a célebre frase: “Bons artistas copiam. Grandes artistas roubam.”
Rod Holt, Bruce Horn, Tony Fadell e Jony Ive, engenheiros e designers da Apple, enfileiram a lista de autores que apontam o dedo indicador (e acusador) contra Jobs e o que era o seu esporte favorito: tomar para si as ideias e criações intelectuais dos outros. Porém, se não fosse a perspicácia de Jobs, seu perfeccionismo e ousadia em levar adiante tais ideias, este escriba aqui, assim como você leitor, nem tomaria conhecimento da existência desses indivíduos. A história, então, é dita por Jobs e periga cair no ostracismo quem acusá-lo de subtrair a autoria ou o crédito alheio.
Se, por um lado, Jobs ignorava os direitos autorais, por outro os defendia com intensidade. A contradição em si mesmo está para o fato de que Jobs não admitia qualquer tipo de alteração ou transformação das obras que recebessem a sua assinatura, levando ao extremo o direito autoral moral. O controle, assim, é absoluto, tornando o seu sistema fechado, desde o software, hardware, e da chamada nuvem. A proteção é tão ferrenha ao ponto de se criar o parafuso pentalobe, que não existe chave de fenda no mercado capaz de abri-lo. Na sua defesa, dizia ser uma tal “coisa de coesão” ou que não admitiria um “sujeito indigno alterar suas criações ou será que Picasso deixaria alguém dar umas pinceladas nas suas telas?”.
Jobs soube manipular a propriedade intelectual a seu favor até mesmo na polêmica saída da Apple. Ao fundar a Next, resolveu investir no segmento educacional e estabeleceu parceria com a Universidade de Oxford para ter acesso a todo acervo de Shakespeare. Detalhe: não pagou nenhum centavo por isso, já que as obras do dramaturgo inglês já se encontram no domínio público.
Há quem diga que Jobs não foi um doador efetivo, filantropo nato. Mentira. Jobs, ao apostar na criação do iPod e do iTunes, deu a mão e salvou da penúria o mercado fonográfico, aterrorizado naquela época pelo gravador de CDs da Panasonic e o efeito Napster de downloads ilegais. Coube a ele, ainda, oxigenar o combalido mercado editorial, ao abandonar o tosco Newton e, por cascata, todos os palm tops do mercado, investindo nos tablets e nas versões digitais das obras literárias (hoje na Amazon mais vendidas que as analógicas). Também nunca é demais lembrar que Jobs alçou os autores de games e aplicativos em geral ao status de nerds-milionários, assim como na proliferação de verdadeiras corporações de ofício e de conteúdos do século 21. Quer maior distribuição de renda do que isto?
E, se não bastasse a sua íntima relação em vida com a propriedade intelectual, Jobs, ao morrer, também deixou um legado: se valer de todos os recursos judiciais possíveis para impedir a diluição, quiçá banalização, da áurea que cerca os produtos Apple. Basta ver a maior e mais milionária disputa judicial do momento.
O Infinite Loop, nome que dá o formato dos prédios em círculo da sede da Apple, na Califórnia, é a mais completa tradução de como Steve Jobs tratou a propriedade intelectual: girando para um lado e para o outro, em loops infinitos, de acordo com a sua conveniência. Talvez seja mesmo essa tal coisa de coesão.
Helder Galvão é advogado, sócio do escritório Candido de Oliveira Advogados e secretário-geral da Comissão de Direitos Autorais da OAB-RJ.