Jogo eletrônico não pode ser considerado obra audiovisual para fins tributários

Autor: Magno de Aguiar Maranhão Junior (*)

 

O objetivo deste artigo é de estabelecer uma proposição para solucionar, fundamentadamente, o imbróglio polêmico e atual que gira em torno da definição legal do instituto dos jogos eletrônicos, mormente após o lançamento dos editais PRODAV 14/2016 e PRODAV 14/2017, ambos por intermédio do Fundo Setorial Audiovisual (FSA) e da Agência Nacional do Cinema (Ancine).

Em suma, o ponto nevrálgico da discussão é acerca do duplo enquadramento do conceito de jogos eletrônicos por parte do Poder Público diante do ordenamento jurídico tanto como conteúdo audiovisual, cuja definição se encontra no artigo 2º da Lei 12.485/11; e como software, consoante disposto no artigo 1º da Lei 9.609/1998.

Nesse sentido, pela simples leitura dos artigos, fica claro que o conceito de jogos eletrônicos pode ser enquadrado em ambos os dispositivos, conforme se abstrai da definição técnica de jogo eletrônico. Portanto, a questão que exsurge é: seria cabível ou pertinente esse duplo enquadramento diante do ordenamento jurídico brasileiro?

Conceitualmente, jogo eletrônico é uma atividade lúdica formada por ações e decisões que resultam numa condição final. Tais ações e decisões são limitadas por um conjunto de regras e por um universo, que no contexto dos jogos digitais, são regidos por um programa de computador. Sendo certo que tal processo resultado da atividade de produção que consiste na fixação ou transmissão de imagens, acompanhadas ou não de som, que tenha a finalidade de criar a impressão de movimento.

Nesse diapasão, deve-se perquirir as consequências de cada enquadramento legal para buscar a melhor solução e interpretá-la de acordo com o ordenamento jurídico.

O encontro entre jogos eletrônicos e a indústria cinematográfica

Como frisado, os jogos eletrônicos sofreram ao longo dos anos diversas transformações, chegando a um nível de conseguir executar uma verdadeira simulação da realidade da mesma maneira que faz a estética do cinema. Esta semelhança dos jogos com o mundo real traz características que são encontradas nas produções cinematográficas, que como um produto de entretenimento lida com o real, com relação a constituição da imagem, ambientação sonora e narrativa. De modo que esta convergência exsurge é fundamental para a sobrevivência de ambas as mídias. Tal fato é bastante perceptível também pelas “cutscenes” comumente existentes nos jogos “triple A”.

Por outro lado, já existem filmes que utilizam do elemento da interação do telespectador, utilizam-se da expressão “breaking the fourth wall”, que ignora a “barreira imaginária entre o cenário, o palco e o público”, estando presente um dos elementos mais importantes dos jogos eletrônicos que é a interação. Nesse diapasão, poder-se-ia até utilizar um trocadilho de palavras mencionando que temos atualmente verdadeiros “jogos cinematográficos” ou “filmes interativos”.

Noutro giro, apesar de conter similaridades, ambos possuem formas de interatividade distintas. De maneira ilustrativa, enquanto assiste a um filme, o espectador adota uma postura lean back, mas recebe estímulos, decodifica-os, interpreta-os, arquiva-os e, doravante, os evoca em seu sistema nervoso. Ressaltando que essas habilidades demandam diversas funções cognitivas, como a percepção, a linguagem, a memória e a consciência. Já nos jogos eletrônicos, os jogadores – players – adotam uma postura lean forward, mais ativa, proporcionada pela interatividade homem-máquina. Segundo GRAU, “a interatividade dos videogames é aquela que permite exploração e surpresa e, ao mesmo tempo, é coerente e razoavelmente previsível”. Sem olvidar o uso de funções cognitivas bastantes similares.

Dessarte, a tendência que tem se apresentado ao longo dos últimos anos é a aproximação entre os jogos eletrônicos e o cinema que se torna cada vez mais evidente. Portanto, ambos os institutos – cinema e jogos eletrônicos devem ser encarados como simbióticos e não como compartimentos estanques.

Do reconhecimento dos jogos eletrônicos como obra audiovisual
Delineadas algumas semelhanças e diferenças entre as obras cinematográficas e os jogos eletrônicos, ficou devidamente demonstrada ao longo do texto a possibilidade do enquadramento do conceito de jogos eletrônicos tanto no artigo 1° da Lei 9.609/1998, bem como no artigo 2° da Lei 12.485/2011.

Nessa toada, percebe-se a viabilidade de utilização desse duplo espectro de proteção para os jogos eletrônicos. Isto posto, vale a pena trazer à baila para essa construção, o pensamento de Nietzsche, segundo o qual os conceitos e valores tradicionais tem sua razão de existir em um momento histórico determinado e vão se modificando de acordo com a evolução da sociedade para que sejam erigidos novos conceitos, princípios e valores condizentes com a realidade.

Um outro arquétipo interessante que se aplica às transformações dos conceitos no tempo e espaço é da própria concepção do princípio da liberdade, conforme explana Hobsbawm: “antes de 1800, sobretudo uma expressão legal que denotava o oposto de escravidão […]”. E hoje temos um conceito muito mais amplo de liberdade.

Resta flagrante, portanto, a transformação tecnológica que denota a aproximação entre o cinema e os jogos eletrônicos, de modo que o conceito de obra audiovisual seja perfeitamente aplicável a ambos os casos. Nesse cenário, sugere-se a distinção entre obra audiovisual stricto sensu e obra audiovisual lato sensu.

Ao longo dos tempos o termo “audiovisual” foi utilizado pela indústria, pelo poder público para se referir à obra videofonográfica e cinematográfica, além dos projetos transmidiáticos. Logicamente não se havia pensado nos jogos eletrônicos como obra audiovisual naquele momento de criação das leis que regem o audiovisual. Nesse sentido entende-se aqui interpretar essas obras audiovisuais originalmente pensadas pelo legislador como obra audiovisual stricto sensu. Já o conceito de obra audiovisual que engloba os jogos eletrônicos poderia ser caracterizado como obra audiovisual lato sensu.

Apesar do edital da Ancine ter dado maior alarde e publicidade ao tema, o Minc já havia enquadrado os jogos eletrônicos como audiovisual para fins da Lei 8.313/1991 por intermédio da Portaria 116/2011. Assim sendo, o primeiro passo para o enquadramento dos jogos eletrônicos que havia sido dado com a portaria supracitada, culminou com a concessão de recursos através de incentivos fiscais pela empresa Swordtales, responsável pela elaboração do jogo Toren, o que foi bastante celebrado pelo setor.

Do reconhecimento dos jogos eletrônicos como software
Noutro giro, para fins tributários, a Justiça Federal vem reconhecendo os jogos eletrônicos como software. Em decisão recente, em caráter liminar, nos autos do processo 5007448-54.2017.03.6100, há menção ao artigo 81 do Regulamento Aduaneiro, Decreto 6.759/2009, que corrobora a tendência mundial de combate à pirataria e incentivo à tecnologia, com a finalidade de estimular o comércio legal de softwares na importação desses bens e tem por escopo fixar uma menor carga de tributação nesses produtos e maior competitividade no mercado interno.

O Relatório Técnico 1.072/2013, apresentado pelo Instituto Nacional de Tecnologia (INT), esclarece: “Pode-se afirmar, portanto, que os videogames são softwares, e como tal são desenvolvidos a partir do emprego de linguagens de programação tanto quanto os demais softwares”. Diante de toda essa argumentação, ficam elucidadas as razões de uma inclinação do Poder Judiciário em reconhecer como software os jogos eletrônicos para fins tributários.

Das implicações jurídicas da classificação dos jogos eletrônicos como obra audiovisual para fins tributários
As questões principais desse tópico são verificar as implicações de se reconhecer os jogos eletrônicos como obra audiovisual no âmbito do Direito Tributário, além de software. E fundamentar a coexistência desses dois conceitos dentro do nosso ordenamento jurídico da melhor maneira, permitindo o fomento do setor.

Preliminarmente, para responder a primeira indagação, deve-se ter em mente que a carga tributária dos jogos eletrônicos no Brasil já é muito elevada, tal como descreve a nota esclarecedora da Análise de impacto regulatório, confira-se: “A conclusão é de que a carga tributária hoje é excessiva e pode inibir o desenvolvimento do setor. Desta forma, o estudo recomenda a redução da carga tributária atual”.

Na sequência, deve ser mencionado que as obras audiovisuais contribuem para o desenvolvimento da indústria cinematográfica e videofonográfica nacional (Condecine). Dessa maneira, ao se reconhecer os jogos eletrônicos como obras audiovisuais, alguns juristas poderiam defender a cobrança de Condecine em face dos produtos oriundos dos jogos eletrônicos. Além do ICMS ou ISS, dependendo do tipo de operação realizada pelo contribuinte.

A derrocada da summa divisio e o ponto ótimo da dupla proteção

Dito isso, passa-se a formular uma proposta de compatibilização. Em primeiro lugar, apesar de parecer inusitado que um instituto tenha um significado para um determinado ramo do direito e tenha um significado, acepção ou conceituação diversa para outro, há alguns exemplos claros da doutrina que seguem essa mesma lógica.

Um exemplo clássico é a maioridade penal do Código Penal e do artigo 3º do Código Civil de 2002. Outro exemplo é a diferença entre o domicílio civil (artigo 70 e seguintes do CC/2002) e tributário (artigo 127 do CTN). Os institutos da prescrição e da decadência também possuem regras diferentes no direito civil e no âmbito do direito tributário, tal como prevê o CC/2002, especificamente no título IV e consoante o disposto no CTN, incluindo o artigo 173.

Ultrapassado esse ponto, passa-se a explanar o porquê da não aplicação do conceito de audiovisual para fins tributários ao invés de software, tal como vem decidindo a Justiça Federal.

O princípio da determinação conceitual, corolário do princípio da tipicidade, aduz que os aspectos da norma impositiva sejam estabelecidos com acentuada precisão, a fim de reduzir a vagueza e a ambiguidade dos dispositivos tributários. Noutros termos, o que o princípio em foco proíbe é a adoção de termos e expressões imprecisos, ambíguos ou duais a ponto de exigir que o Poder Executivo integre a norma de incidência, vindo a complementar o trabalho do legislador. Com isso, objetiva conferir segurança jurídica aos contribuintes, permitindo-lhes ter plena ciência acerca do conteúdo das suas obrigações jurídico-tributárias.

Ademais, conforme construção de Xavier, a tipicidade significa que os conceitos tributários devem estar totalmente descritos na lei, a fim de que o contribuinte possa saber previamente o tributo a ser pago, sem ingerência da Administração.

Ora, o contribuinte que tem diversas alterações e inclusões de novos conceitos para determinar seu escopo sem utilizar o critério da preponderância dará azo a insegurança jurídica e a desconsideração do princípio da tipicidade estrita.

Portanto, a importância da determinação conceitual, da legalidade estrita, da segurança jurídica e da razoabilidade se mostram fundamentais para a solução do imbróglio. De modo que o Estado possa, por intermédio do Direito Administrativo, fomentar a atividade dos jogos eletrônicos que necessita de apoio governamental para criar bases sólidas e criar um novo mecanismo de circulação da economia. E, ao mesmo tempo, garantir a segurança jurídica do contribuinte e não aumentar ainda mais a alta carga tributária do setor inviabilizando seu objetivo.

Em suma, seria uma contradictio in terminis, o poder público entender os jogos eletrônicos como obra audiovisual para fins de fomentar a atividade e, por via transversa, aumentar a carga tributária. Dito isto, vale a pena lembrar o mito de Sísifo para ilustrar a situação indesejada e esdrúxula do Estado fomentar a atividade por um lado e, por outro, aumentar a carga tributária, inviabilizando o crescimento da indústria dos jogos eletrônicos.

 

 

 

 

Autor: Magno de Aguiar Maranhão Junior  é advogado, professor de Direito Público e Privado e especialista em regulação da Agência Nacional do Cinema (Ancine).


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