Claudio Julio Tognolli*
Um veterano das redações, com passagens em cargos de chefia na Veja São Paulo, na sucursal paulista de O Globo, no site www.no.com.br, e vasta militância na reportagem da Folha de S.Paulo e do Estado de S.Paulo, João Wady Cury assestou as suas baterias, agora, contra as Organizações Globo-Globopar.
Na segunda-feira, 9/9, Cury defendeu na ECA-USP, sob orientação do professor doutor Carlos Marcos Avighi, dissertação de mestrado em que mostra as maquinações da Globo nos leilões do sistema Telebrás – tudo analisado à luz da reeleição do presidente Fernando Henrique Cardoso. Cury avalia a relação entre o endividamento do maior grupo brasileiro de comunicação, as Organizações Globo-Globopar, e a cobertura jornalística do diário O Globo sobre os dois principais fatos do ano de 1998 em política e economia: a reeleição do presidente Fernando Henrique Cardoso e a privatização das empresas de telecomunicações do sistema Telebrás – processo no qual a Globopar foi compradora de três operadoras de telefonia celular.
O trabalho discute o posicionamento ético e de lealdade com o leitor da empresa jornalística de Roberto Marinho, sendo o próprio governo de FHC um dos credores da Globo, por meio do BNDES. A dissertação de João Wadih Cury está dividida em três capítulos: quem é a Globopar (quais empresas formam o grupo, como seguradoras, bancos, empresas de telefonia celular, administradoras de shopping centers, fazendas de gado etc.); como O Globo cobriu a privatização da Telebrás (sendo uma das interessadas na compra de telefonia) e como O Globo cobriu as eleições. Depois de quatro anos de investigação, Cury conclui: “O jornal O Globo, na figura da empresa e dos jornalistas, foi desleal com o leitor”. A seguir, sua entrevista ao Observatório da Imprensa.
Por que escolheu esse tema?
João Wadih Cury – Achei importante o fato de várias das grandes empresas de comunicação, como o grupo de Roberto Marinho, o gaúcho RBS e O Estado de S. Paulo, para citar três delas, se movimentarem na tentativa de arrematar algumas das empresas públicas nos leilões do sistema Telebrás.
Considerei esse movimento importante por três motivos: a maioria dos grandes grupos de comunicação brasileiros estava endividada, alguns deles, aliás, com empréstimos junto a bancos do governo federal; segundo, estava em jogo, na mesma época, a reeleição do presidente Fernando Henrique Cardoso, credor, indiretamente, de algumas das empresas; e, por fim, havia sido iniciado o movimento pela modificação do artigo constitucional 222, que impedia a entrada do capital estrangeiro nas empresas jornalísticas, e só acabou sendo modificada em junho passado.
Por que esse movimento chamou sua atenção?
J.W.C. – Uma empresa de comunicação deve ter como objetivo zelar pelo interesse público com isenção, distanciamento dos fatos e pluraridade. Não se trata, portanto, de uma empresa comum, que só tem como meta final o lucro. A partir do momento que um grupo jornalístico passa a misturar interesses comerciais comuns à administração de um jornal ou emissora de televisão, por exemplo, há o risco de lesar o leitor, omitindo informações que seriam fundamentais para a compreensão completa dos fatos e ver claramente quais os interesses dos personagens envolvidos na cobertura jornalística , inclusive o próprio jornal.
O senhor acha que O Globo foi tendencioso?
J.W.C. – Durante os 70 dias que se passaram entre o leilão da Telebrás até a data da reeleição de Fernando Henrique, em primeiro turno, em nenhum momento O Globo comunica oficialmente a seus leitores que tinha interesses empresariais naquele leilão, sobre o qual faz cobertura diária e intensa. (O governo Fernando Henrique concedeu empréstimos à holding Globopar, um deles, inclusive, no valor de R$ 16,9 milhões, um dia antes do leilão, para a subsidiária Net Campinas.) Em nenhum momento, nesse período, O Globo assume perante o leitor, com transparência, os seus negócios empresariais. E o centro desses negócios foi, invariavelmente, a Globopar.
Quais empresas fazem parte da Globopar?
J.W.C. – A Globopar (Globo Comunicações e Participações S/A) reunia em 1998 as empresas não jornalísticas das Organizações Globo. São empresas que atuam em setores como TV a cabo (operação e distribuição, como Net, Globosat), TV por microondas (Sky, em sociedade com Ruppert Murdoch, o magnata australiano das comunicações), produtora de filmes (Globo Filmes), de computação gráfica e programas de televisão, telecomunicações (sociedade na Maxitel, Tele Nordeste Celular, Tele Celular Sul), fabricação de equipamentos telefônicos (Nec, em sociedade com a Nec japonesa), operadora de pagers (Teletrim), fazendas de gado de corte, construção e administração de shopping centers (Shopping Interlagos, em São Paulo, e Botafogo Praia Shopping, no Rio), hotéis, centros comerciais, prédios residenciais e comerciais, instituições financeiras e securitárias (Banco ABC, Arab Banking Corporation, Seguradora Roma, sociedade na Golden Cross) e mineradoras, entre outras atividades que constam nos balanços pesquisados.
Acha, então, que liberdade de imprensa é liberdade de empresa?
J.W.C. – Acho que o dono de uma empresa jornalística precisa, antes de tudo, assumir um compromisso real, ético, com a missão de informar e ser leal a seu público. Analisando as reportagens de O Globo em 1998 é fácil notar que, tanto na cobertura das privatizações como na da eleição presidencial, não se nota apartidarismo nem pluralismo no posicionamento do principal diário do grupo de Roberto Marinho. O que leva à conclusão que o jornal, na figura da empresa e dos jornalistas, foi desleal com o leitor.
Como é possível evitar esse tipo de confusão de interesses?
J.W.C. – Temos que ser objetivos: hoje, em todo o planeta, empresas jornalísticas têm se fundido, ou melhor, têm sido compradas por empresas de entretenimento, como ocorreu com o AOL Time Warner. Quem nos garante que não há determinação de favorecimento aos produtos de entretenimento (filmes, CDs, DVDs, sempre muito lucrativos) nas coberturas jornalísticas das empresas Time?
Quem garante que funcionários não sofrem pressão, mesmo na AOL brasileira, para noticiar um filme em detrimento de outro, só porque foi criado pela empresa do mesmo grupo? E se isso acontece na cobertura de entretenimento, por que não aconteceria em outras áreas, como política e economia? As Organizações Globo, por exemplo, produzem notícias, de um lado, e de outro vendem filmes, CDs, celulares e muitos outros serviços.
Como saber se são transparentes e leais? Acho que o desafio que se coloca a nós, jornalistas, é justamente garantir a isenção dos processos. E não acho que isso seja possível só com jornalistas. Toda a sociedade, justamente em seu favor, deve ser convocada a participar desse processo por meio de suas entidades representativas, como ABI, OAB e o próprio Observatório de Imprensa, que já se mostrou fundamental como fiscalizador da mídia.
Revista Consultor Jurídico
Claudio Julio Tognolli é repórter especial da Rádio Jovem Pan, professor do Unifiam (SP) e da ECA-USP e consultor de jornalismo investigativo da Unesco no Brasil