Juízes não são combatentes da corrupção, mas garantes da não corrupção

Autor: José Carlos Garcia (*)

 

O mais recente filme de Steven Spielberg, Ponte dos espiões (Bridge of spies, EUA, 2015), situa-se no auge da Guerra Fria, nos fins dos anos 1950, e na intensa polarização global daí decorrente: espião soviético atuando nos EUA (Mark Rylance, no papel que lhe deu o Oscar de melhor ator coadjuvante) é preso pelo FBI, a Polícia Federal americana, e o advogado de seguros James Donovan (interpretado por Tom Hanks) é indicado para defendê-lo.

A evolução dos fatos demonstra que o que o aparato judicial estado-unidense realmente desejava era apenas conferir um verniz de legalidade ao procedimento, assegurando formalmente ao acusado “uma defesa tecnicamente adequada”[1]. Ocorre que Donovan não aceita desempenhar este papel — em homenagem a suas convicções e a seus compromissos com a justiça e o sistema legal, pretende realizar uma defesa efetiva do acusado, não lhe importando se as gravíssimas acusações, de repassar segredos nucleares norte-americanos à União Soviética, eram ou não verdadeiras.

Imbuído deste espírito, questiona a legalidade da forma de cumprimento de mandados judiciais, bem como das provas deles advindas, expondo-se à expiação pública diante do acachapante consenso de que o espião era o inimigo e precisava ser punido, não importavam as provas nem como fossem obtidas. Decidido a salvar seu cliente da pena capital, provoca a Suprema Corte dos Estados Unidos, e a abertura de seu discurso de defesa perante aquele Tribunal é extremamente significativo do contexto geral do filme:

Senhor ministro presidente, e se a Corte me permite, a Guerra Fria não é apenas uma frase. Não é apenas uma figura de linguagem. Verdadeiramente, uma batalha está sendo travada entre duas visões concorrentes do mundo. Eu afirmo que Rudolf Ivanovich Abel, coronel Abel, como era chamado até mesmo pelos homens que o prenderam, é nosso inimigo nessa batalha. Ele foi tratado como um combatente nesta guerra até que já não fosse conveniente ao nosso governo tratá-lo assim. Portanto, a ele não foi dada a proteção que damos aos nossos próprios cidadãos. Ele foi submetido a um tratamento que, ainda que apropriado para um inimigo suspeito, não era apropriado para um criminoso suspeito. Eu conheço este homem. Se a acusação for verdadeira, ele serve a uma potência estrangeira, mas serve fielmente. Se ele é um soldado no exército inimigo, ele é um bom soldado. Ele não fugiu do campo de batalha para salvar a si mesmo. Ele se recusou a servir a seu captor. Ele se recusou a trair a sua causa. Ele se recusou a tomar o caminho do covarde. O covarde deve abandonar sua dignidade antes de abandonar o campo de batalha. Isso, Rudolf Abel nunca vai fazer. Não deveríamos, dando-lhe o benefício pleno dos direitos do sistema que define o nosso governo, mostrar a este homem o que nós somos? Quem nós somos? Isso não é a maior arma que temos nesta Guerra Fria? Defenderemos nossa causa menos resolutamente do que ele a sua?[2]

Nos tensos dias que correm em nosso país, a opinião pública parece dividir-se entre “amigos” e “inimigos”, no clássico binômio de Carl Schmitt[3]. Engalfinhados em aguerrido combate político desde as eleições presidenciais de 2014, o partidário de cada facção tem a certeza da razão, e da ausência total de razão de seu oponente. Não vou repisar o perigo de paixões políticas fomentadas ao ponto do que já se começa a ver nas ruas: agressões a pessoas e a sedes de entidades e partidos. Em um quadro tão tenso e grave, espera-se do Judiciário o papel de apaziguador, de apelo à razão e ao entendimento, à observância à Constituição e às leis, o que não tem escapado sequer a ministros do STF[4].

O que aqui me importa, todavia, são os reflexos deste clima de ruptura de pontes entre pessoas e ideias no plano institucional, em especial no sistema legal do país, pois sem tais pontes é impossível dotar os conflitos políticos de um caráter construtivo e assim fugir à maldição schmittiana[5].

Diz-se que nosso sistema legal é injusto e desigual, que há garantias demais para os de cima enquanto aos de baixo sobram violações sistemáticas aos direitos mais elementares, e que os grandes corruptos e corruptores jamais seriam tocados. A operação “lava jato”, dizem[6], é o ponto de inflexão deste sistema desigual, o momento em que ele passa a atingir os privilegiados de sempre e a desbaratar esquemas de corrupção no centro do poder político e econômico (altos mandatários do Executivo e do Legislativo, diretores de empresas estatais e privadas).

São muito graves as acusações que circulam pela mídia e pela sociedade, um pouco reproduzindo o que muitos já suspeitavam ou ouviam falar sobre financiamentos de campanha, desvios de recursos públicos ou pagamento de propinas para viabilização de polpudos contratos (em partidos do governo e da oposição, no atual e em anteriores governos), e não se duvida da necessidade de enfrentar tais questões e tornar efetivo o sistema legal. O grande problema reside no clima de agudo tensionamento gerado por parte da mídia, certos partidos e parcela da opinião pública no qual estabelecer dúvidas ou questionamentos sobre a validade constitucional ou legal de certos procedimentos equivale a defender a corrupção ou a se opor às investigações, em afloramento de verdadeiro fascismo social que visa à uniformização da opinião e ao silenciamento da crítica.

Por fascismo social quero dizer o que vários autores observam como o retorno ou a permanência de formas fascistas de socialização ou controle, mesmo sob formas democráticas. Para Agamben, por exemplo, elementos constitutivos do fascismo têm funcionado intensamente em regimes formalmente democráticos como técnicas regulares de governo, suspendendo localizadamente no tempo ou no espaço, ou para certas pessoas, as garantias próprias de um regime constitucional de tipo liberal (presunção de inocência, direito de defesa, contraditório, ônus da prova para a acusação, direito à intimidade etc.)[7]. Boaventura de Souza Santos situa a emergência do fascismo social na crise contemporânea do contrato social, em que aqueles direitos fundamentais, antes tidos por inalienáveis, passam a ser relativizados e precarizados a partir de relações sociais não diretamente dependentes do fascismo político:

Não se trata do regresso ao fascismo dos anos 30 e 40. Ao contrário deste, não é um regime político, mas social e civilizacional. Em vez de sacrificar a democracia às exigências do capitalismo, promove-a até não ser necessário nem conveniente sacrificá-la para promover o capitalismo. Trata-se de um fascismo pluralista, forma que nunca existiu[8].

A cobertura da grande mídia sobre a operação “lava jato” parece ensejar este clima de patrulhamento da opinião, o que se conforma à aguda polarização política em curso no país. A pretexto de informar o público, investigações complexas e temas jurídicos caros à democracia são espetacularizados e simplificados quase ao ponto de uma votação em reality show, negligenciando-se o debate sobre as consequências institucionais que alguns procedimentos possam ter em nosso futuro.

Enquanto alguns juristas celebram o uso da delação premiada após a Lei 12.850/13[9], outros questionam se tais delações, sucedendo-se à determinação de prisões preventivas generalizadas, atenderiam ao requisito de voluntariedade[10] própria do instituto[11]. O uso indiscriminado de ordens de condução coercitiva sem prévio esgotamento da tentativa de intimação para comparecimento de acusados e investigados, para tantos outros críticos, serviria apenas para constranger estas pessoas e expô-las na mídia, em claro desvio de finalidade e com o fim de mobilizar a opinião pública em favor das investigações e contra os acusados[12]. A prisão de um senador da República em pleno exercício de seu mandato, mesmo determinada pela Suprema Corte, também indicaria uma vulneração das inviolabilidades dos parlamentares, tão relevantes que se mantêm até na vigência do estado de sítio (art. 53, §§ 2.º e 8.º, da Constituição) — tanto que o maior esforço argumentativo daquele Tribunal ao apreciar a medida foi para a caracterização do flagrante em prisão por mandado, algo nada evidente ou usual na prática forense[13].

O vazamento seletivo de provas e teor de escutas telefônicas em processos em segredo de justiça, fora de seus contextos e antes mesmo que a defesa pudesse acessá-las, ou até de escutas manifestamente inúteis à investigação (como conversas entre investigados e seus familiares), também tenderia objetivamente a subverter o curso do processo penal e a transferir, na prática, o julgamento para a opinião pública, facilitando uma pré-condenação social antes mesmo da finalização do processo judicial[14]; pior, tais vazamentos, que ocorrem há anos e antes eram muito criticados[15], hoje se mostram naturalizados, ao que parece sequer ensejando investigação, vez que de crime se trata (art. 10 da Lei 9.296/96). Finalmente, em sucessivas delações, segundo a imprensa, há menções a nomes de destaque da oposição, implicando indícios de cometimento de crimes tão graves e similares àqueles que vem sendo imputados a membros do governo ou de partidos de sua base, sem que estas numerosas menções tenham deflagrado, ao que se sabe, investigações de mesma intensidade e publicidade e sem que a opinião pública seja adequadamente informada dos motivos desta divergência de tratamento aparentemente incompatível com o elementar princípio republicano da igualdade de todos perante a lei (art. 5.º da Constituição).

A todas estas críticas e questionamentos, tribunais, juízes e boa parte de suas associações parecem rebater como infundados, extemporâneos, eventualmente como partidarismo ou ataques à independência do Judiciário. O espaço basilar do debate, da dúvida, da crítica e do questionamento, inerentes a qualquer democracia viva, vai aos poucos cedendo terreno ao que parece uma pura necessidade de condenação, como no caso do espião russo do filme de Spielberg.

Compreende-se que uma população cansada de saques à coisa pública foque mais em resultados do que em meios, mas a juristas, e em especial aos juízes, não é dado este conforto catártico: sua missão institucional e sua única razão de ser em uma democracia é a observância rigorosa do procedimento e o uso criterioso e constitucional dos meios. Juízes não são necessários para punir, como o demonstram quaisquer ditaduras, à direita ou à esquerda — carrascos e torturadores são suficientes. Juízes só são indispensáveis para controlar o uso dos meios, a justiça e a proporcionalidade da punição. Por isso, juízes não podem ser combatentes contra a corrupção ou outros crimes e sim os garantes da não corrupção do próprio sistema legal; somente serão comprometidos com a punição justa, equitativa, adequada, decorrente do devido processo legal, com todas as garantias do contraditório e da ampla defesa e no qual o ônus da prova é exclusivo da acusação. Em qualquer outra circunstância, com quaisquer outros compromissos ou tendo em conta quaisquer outros valores, por mais elevados que sejam, principia o processo de corrupção do sistema judicial, contaminado pela paixão partidária, pela vocalização midiática, pelos prejulgamentos fora dos autos ou pelas provas não legalmente válidas.

A desigualdade de tratamento entre ricos poderosos e pobres desempoderados deveria nos fazer gerar políticas de ampliação dos direitos embaixo, não de sua vulneração em cima, sob pena de legitimarmos os desmandos e a arbitrariedade de forma generalizada. Curiosamente, em vez de um amplo engajamento nacional para revermos, por exemplo, um sistema prisional e punitivo visivelmente ineficiente, que nem pune criminosos perigosos seriamente (às vezes permitindo que comandem seus negócios escusos de dentro das prisões), nem respeita os direitos humanos de apenados ou preserva a segurança de quem está fora do sistema (vejam-se os casos reiterados de rebeliões e fugas), vemos a inversão do discurso para validar uma certa “flexibilização” da legalidade para todos[16].

Quando autoridades judiciais, policiais ou do Ministério Público, que deveriam zelar pela legalidade de seus procedimentos, empenham-se na utilização de práticas pouco usuais e de controvertida legalidade (ainda que ao final possam ser consideradas legais) e as veem criticadas por juristas de variados matizes e amplos setores sociais, têm a obrigação institucional e moral de desincumbirem-se de seu elevado ônus argumentativo e não apenas fundamentar formalmente suas decisões, para sustentá-las perante o crivo da sociedade. Parafraseando a famosa e machista observação de César acerca de sua mulher, não basta que a Justiça seja correta, é preciso que pareça correta. É neste jogo de expectativas e realidades que se corporifica a democracia, não em discursos vagos e apelos formais à seriedade e à independência de seus atores.

De fato, a democracia só é realmente testada em seus momentos difíceis, nas crises severas e nas grandes polarizações políticas e sociais. Como o personagem de Tom Hanks em plena Guerra Fria, que não se permite negar ao réu uma defesa digna, a competent representation em toda a sua extensão, assim a luta contra a corrupção somente pode se dar com o compromisso inequívoco dos agentes públicos, especialmente dos juízes e suas associações de classe, com a preservação das garantias fundamentais do processo, sob pena de, quebrando-se as pontes entre cidadãos e cidadãs com crenças distintas, eventual e momentaneamente opostas, confundirem-se as pontes entre as várias corrupções possíveis das instituições, tanto as derivadas do desvio de verba e da propina, quanto as derivadas de sua ação fora ou à margem de um padrão legal imediatamente reconhecível. Ou não será, ainda que de outra forma, também corrupta (no sentido literal de corrompida, alterada ou adulterada, inapta para os fins a que se destina) uma instituição que atropela a legalidade e a Constituição para punir criminosos? E não se permitirá tal corrupção a instituição que se negar à dúvida e à permanente crítica sobre a legalidade e validade de seus próprios atos? O que então diferenciará moralmente criminosos, perseguidores e julgadores, se a nenhum deles controla a lei?

Para instituições verdadeiramente comprometidas com a democracia, não basta a aparência formal de legalidade, é preciso que os princípios constitucionais protegidos por esta aparência tenham efetivamente se concretizado em cada investigação e em cada processo criminal. Menos que isso é ser previamente derrotado em face do crime ou da corrupção, é também corromper-se e abrir a porta ao arbítrio dos pretensos agentes da lei. Afinal, como diria o personagem de Tom Hanks, poderíamos nós defender nossa causa menos resolutamente ou por meios de questionável legalidade? Ou escolher quais, dentre os ditos criminosos, iremos perseguir, em favor de outros? Ou deveríamos, ao invés, reconhecer a todos o benefício pleno dos direitos do sistema que define, ou deveria definir, a nossa forma de governo?

Tal é a escolha que devemos fazer agora, não amanhã, não depois, mas aqui e agora. Ao darmos substância a estes direitos, ou ao negá-los, qualquer que seja o caminho, diremos claramente o que somos, quem somos e quem queremos ser.

 

 

Autor: José Carlos Garcia é Doutor em Direito Constitucional pela PUC Rio. Juiz Federal no Rio de Janeiro desde 1996. Foi vice-presidente da 2ª Região da Associação dos Juízes Federais do Brasil, entre 2004 a 2006.


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