Autor: Peter Panutto (*)
O Brasil possui uma estrutura judiciária complexa, dotada de justiças federais especializadas (trabalhista, militar e eleitoral), de justiça federal comum e das justiças estaduais. No que tange à justiça comum (federal e estadual), para efeito de lei federal, cabe a última palavra ao Superior Tribunal de Justiça. Para efeito de matéria constitucional, o último entendimento é dado pelo Supremo Tribunal Federal, o qual atende demanda de todas as justiças. Para as justiças federais especializadas, há tribunais superiores próprios (TST, STM e TSE), aos quais cabe a última palavra sobre as leis federais específicas correspondentes.
Temos, portanto, o STJ que julga recursos especiais oriundos dos tribunais de Justiça dos 26 estados membros e também do TJ do Distrito Federal, além dos recursos especiais oriundos dos cinco tribunais regionais federais do país.
De outra banda temos o STF que recebe, em controle difuso de constitucionalidade, recursos extraordinários oriundos do TST, STM, TSE, dos TJs dos estados membros e do Distrito Federal, do STJ, dos TRFs e dos órgãos de segundo grau dos juizados especiais federais e estaduais de todo o Brasil.
Sempre é bom ressaltar que vivemos em um país com aproximadamente 200 milhões de habitantes, com acesso ao Poder Judiciário facilitado pela Carta Magna de 1988, o que, apenas numericamente, já nos leva a uma crise do Poder Judiciário, e este “problema se torna um dos mais graves quando se discute a tendência, posterior à Constituição da República de 1988, de utilização do Judiciário como compensador dos déficits de funcionalidade dos demais Poderes”.[1]
Não bastasse a quantidade incomensurável de recursos endereçados ao STF e ao STJ, não temos a vinculação ao entendimento jurisprudencial destas cortes, com exceção das decisões oriundas de controle concentrado e dos entendimentos objeto de súmulas vinculantes do STF. Ressalta-se que não há também respeito aos precedentes judiciais nem pelos próprios membros destes tribunais, de modo que no STJ as “turmas não guardam respeito pelas decisões das seções e, o que é pior, entendem-se livres para decidir casos iguais de forma desigual”.[2]
A ausência de unidade na jurisdição gera insegurança jurídica na medida em que os juízos de primeiro e segundo graus não são obrigados a adotar os entendimentos jurisprudenciais do STF e do STJ, pois não há unidade de entendimento de matéria de Direito em nosso sistema judiciário, o que provoca a solução diversa a causas semelhantes, desrespeitando-se a máxima treat like cases alike.
Esta ausência de previsibilidade das decisões judiciais acaba por alimentar ainda mais a enorme quantidade de recursos endereçados às cortes supremas, pois, na medida em que não há unidade de entendimento jurisprudencial nestas cortes, bem como não há respeito aos precedentes judiciais de tais tribunais pelos seus próprios membros e nem pelas instâncias inferiores, toda parte sucumbente se vê diante da necessidade de interpor todos os recursos cabíveis, visando obter a última palavra sobre o assunto em matéria federal pelo STJ e em matéria constitucional pelo STF, pois cada caso, em regra, é julgado de forma autônoma dentro do sistema jurídico pátrio.
A segurança jurídica é condição para a realização das garantias constitucionais, razão pela qual todos os Estados verdadeiramente democráticos de Direito a asseguram plenamente, como princípio fundante e constitutivo do próprio Estado de Direito,[3] a qual é feita através da previsibilidade e da estabilidade, pois “a previsibilidade das consequências oriundas da prática de conduta ou ato pressupõe univocidade em relação à qualificação das situações jurídicas, o que torna estes elementos indissociavelmente ligados. Em outra perspectiva, a segurança jurídica reflete a necessidade de a ordem jurídica ser estável”.[4]
O respeito aos entendimentos jurisprudenciais do STF e STJ dar-se-á pela adoção, no Brasil, dos precedentes judiciais vinculantes, os quais têm fundamento constitucional na segurança jurídica, igualdade, previsibilidade e estabilidade e estão previstos no novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015) CPC, pois, do “ponto de vista do Estado Constitucional, o fim do processo civil só pode ser reconduzido à tutela dos direitos mediante a prolação de uma decisão justa e a formação e respeito aos precedentes”,[5]pois cada cidadão tem o direito de saber o que pode e o que não pode fazer, podendo confiar na segurança jurídica dos precedentes, até como meio de prevenção de conflito de interesses.
Com a criação dos precedentes judiciais vinculantes pelo novo CPC será tutelada a segurança jurídica no tocante às decisões do STF também no exercício do controle difuso de constitucionalidade, do STJ como guardião de lei federal, bem como haverá vinculação, nas situações definidas por este novo diploma legal, dos precedentes dos demais tribunais do país, situação que aproximará nosso sistema jurídico ao sistema do common law, vez que estabelecerá o stare decisis em seus artigos 926 a 928.
Pelo sistema estabelecido no artigo 927 do novo CPC serão considerados precedentes judiciais vinculantes as decisões proferidas pelo STF em controle concentrado de constitucionalidade e as geradoras de súmulas vinculantes; as decisões proferidas pelo STF e pelo STJ geradoras de súmulas persuasivas e proferidas em recursos extraordinários e especiais repetitivos; os acórdãos proferidos por qualquer tribunal em incidente de assunção de competência e de resolução de demandas repetitivas, bem como a orientação do plenário ou do órgão especial de qualquer tribunal. Desta forma, não serão apenas as decisões proferidas pelo STF e pelo STJ que poderão gerar precedentes, assumindo também esta competência os demais tribunais do país, especificamente no tocante às decisões proferidas em incidente de assunção de competência, de resolução de demandas repetitivas e a orientação do plenário ou do órgão especial.
Além de garantir a segurança jurídica, o sistema de precedentes do novo CPC será mais uma forma de busca pela duração razoável do processo, pois, à medida que o juízo de primeiro grau se vincular aos precedentes judiciais dos tribunais superiores, não haverá, por um lado, a necessidade de recursos para fazer com que o processo chegue a estes tribunais para cumprimento de seus próprios precedentes e, por outro lado, haverá um desincentivo à interposição de recurso pela parte derrotada, pois esta saberá, de antemão, que o entendimento da sentença é pautado nos precedentes judiciais destes tribunais, propiciando à sociedade em geral a previsibilidade das decisões judiciais.
A diminuição da quantidade de recursos em razão dos precedentes judiciais vinculantes levou o legislador, sob a ótica do sistema de precedentes, a eliminar, no novo CPC, o juízo de admissibilidade dos recursos pelo juízo a quo, passando o juízo prolator da decisão recorrida apenas a receber o recurso e suas contrarrazões e remetê-lo ao juízo ad quem para o exercício dos juízos de admissibilidade e de mérito[6]. Esta nova realidade em matéria recursal permite a oxigenação dos precedentes judiciais vinculantes, pois o juízo ad quem de toda forma terá contato com o recurso, o que facilitará a alteração de precedente em caso de sua superação e também ficará facilitada a revogação do precedente.
Contudo, os ministros do STF e do STJ bradaram contra a eliminação do juízo de admissibilidade pelo juízo a quo quando da interposição de recurso extraordinário e de recurso especial, demonstrando preocupação com o aumento do trabalho nestas cortes pela nova realidade imposta pelo artigo 1030, parágrafo único, do novo CPC, função que na vigência do CPC de 73 é exercida pela presidência ou vice-presidências dos tribunais de segundo grau.
Em razão disto, tramita em regime de urgência no Congresso Nacional o Projeto de Lei da Câmara 168, já aprovado pela Câmara dos Deputados e em tramitação no Senado Federal, o qual pretende, dentre outras alterações no novo CPC, modificar a redação do artigo 1030, de modo a restituir o juízo de admissibilidade pelo juízo a quo nos recursos extraordinário e especial, nestes termos:
Art. 1.030. Recebida a petição do recurso pela secretaria do tribunal, o recorrido será intimado para apresentar contrarrazões no prazo de quinze dias, findo o qual os autos serão conclusos ao presidente ou ao vice-presidente do tribunal recorrido, que deverá:
I — negar seguimento a recurso extraordinário que trate de controvérsia a que o Supremo Tribunal Federal tenha negado a repercussão geral;
II — negar seguimento a recurso extraordinário ou a recurso especial interposto contra acórdão em conformidade com o precedente de repercussão geral ou de recurso especial em questão repetitiva;
III — encaminhar o processo ao órgão julgador para juízo de retratação, se o acórdão recorrido divergir de precedente de repercussão geral ou de recurso especial em questão repetitiva;
IV — sobrestar o recurso que versar sobre controvérsia de caráter repetitivo ainda não decidida por tribunal superior;
V — selecionar o recurso como representativo de controvérsia constitucional ou infraconstitucional de caráter repetitivo, nos termos do § 6° do art. 1.036;
VI — realizar juízo de admissibilidade e, se positivo, remeter o feito ao tribunal superior correspondente, desde que:
a) o recurso ainda não tenha sido submetido ao regime da repercussão geral ou do recurso especial repetitivo;
b) o recurso tenha sido selecionado como representativo da controvérsia; ou
c) o tribunal recorrido tenha refutado o juízo de retratação.
§ 1º Das decisões de inadmissibilidade proferidas com fundamento no inciso VI caberá agravo ao tribunal superior, nos termos do art. 1.042.
§2º Das decisões proferidas com fundamento nos incisos I, II e IV caberá agravo interno, nos termos do art. 1.021.[7]
Lenio Luiz Streck e Dierle Nunes, ao criticarem o PLC 168, sustentaram:
Na lei já aprovada (o novo CPC), o fato do juízo de admissibilidade dos recursos extraordinários ter sido transferido para os tribunais superiores auxiliava que ele fosse acessível para rever seus posicionamentos, uma vez que somente o próprio tribunal que forma um precedente pode revê-lo (overrule). Tirava-se a intermediação, demorada e contraproducente — dos tribunais de segundo grau. Ora, o sistema do CPC-2015 foi debatido à exaustão durante anos no Congresso Nacional e cada dispositivo buscava promover um modelo de aprimoramento do direito e de exercício constitucional da função jurisdicional.[8]
Correto o entendimento de Lenio Streck e Dierle Nunes. Ademais, a preocupação do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça com o aumento de trabalho pela extinção do juízo de admissibilidade dos recursos extraordinário e especial pelo juízo a quo se justifica apenas a curto prazo, pois, na medida que o sistema de precedentes for implementado, os precedentes destas cortes passarão a vincular os juízos de primeiro e segundo graus, não havendo mais a necessidade do julgamento de mérito de tais recursos por nossas cortes supremas para fazerem prevalecer seus próprios precedentes, como ocorre no sistema atual.
Diante disto, para manter íntegro o sistema de precedentes implementado pelo novo CPC, o correto seria a extinção do juízo de admissibilidade destes recursos pelo juízo a quo, mantendo-se incólume o novo CPC neste quesito.
Entretanto, demonstra-se totalmente compreensível a preocupação de nossas cortes supremas com o aumento de trabalho diante da assunção do exercício do juízo de admissibilidade nos recursos extraordinário e especial, dada a extrema quantidade de trabalho já exercida por estas Cortes. Devemos considerar ainda que os processos que tramitam atualmente têm decisões proferidas sem levar em consideração o sistema de precedentes do novo CPC, o qual terá sua vigência iniciada em março de 2016 e levará algum tempo para ter seu sistema de precedentes implementado, mediante decisões sendo proferidas em respeito aos precedentes judiciais vinculantes estabelecidos no artigo 927 do novo CPC, até porque algum destes precedentes passarão a ser criados apenas na vigência do novo CPC, tais como os decorrentes da assunção de competência e do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR).
Neste sentido, propomos ao Congresso Nacional uma regra de transição para o novo CPC no tocante ao juízo de admissibilidade nos recursos extraordinário e especial, de modo a conciliar a necessidade de manter íntegro o sistema de precedentes, bem como a atender a preocupação do STF e do STJ pelo aumento de trabalho pelo exercício do juízo de admissibilidade nestes recursos, estabelecendo-se uma emenda ao PLC 168 para impor uma regra de transição ao novo CPC, incluindo-se nas disposições finais e transitórias deste diploma legal um prazo de cinco anos para o fim do juízo de admissibilidade pelos tribunais de origem nos recursos extraordinário e especial, pois, neste prazo, haveria a sedimentação do sistema de precedentes e a consequente diminuição drástica da quantidade destes recursos, sendo mantido assim, incólume o sistema de precedentes idealizado e que deverá impactar muito positivamente em nosso sistema judiciário.
[1] BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco; NUNES, Dierle; THEODORO JÚNIOR, Humberto. Breves Considerações sobre a Politização do Poder Judiciário e sobre o Panorama de Aplicação no Direito Brasileiro: análise da convergência entre o civil law e common law e dos problemas de padronização decisória. In: Revista de Processo, vol. 189, p. 17. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
[2] MARINONI, Luiz Guilherme. O Precedente na Dimensão da Segurança Jurídica. In: MARINONI, Luiz Guilherme (org.). A Força dos Precedentes: estudos dos cursos de mestrado e doutorado em direito processual civil da UFPR. Salvador: Juspodivm, 2012-b, p. 583.
[3] RODOVALHO, Thiago. Das Rechtsstaatsprinzip: o princípio do Estado Democrático de Direito e a segurança jurídica. In: Revista Forense, vol 415, p. 299. Rio de Janeiro: Forense, jan./jun. 2012-a.
[4] MARINONI, Luiz Guilherme. O Precedente na Dimensão da Segurança Jurídica. In: MARINONI, Luiz Guilherme (org.). A Força dos Precedentes: estudos dos cursos de mestrado e doutorado em direito processual civil da UFPR. Salvador: Juspodivm, 2012. p. 560-561.
[5] MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e Cortes Supremas: do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 19.
[6] Art. 1010, § 3º (Apelação), art. 1028, § 3º (Recurso Ordinário), art. 1030, parágrafo único (Recurso Extraordinário e Recurso Especial).
[7] Disponível em:http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/12376. Acesso em: 05/12/2015.
[8] STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle. O Senado vai permitir a mutilação do novo CPC antes de entrar em vigor. Disponível emhttp://www.conjur.com.br/2015-dez-01/senado-permitira-mutilacao-cpc-antes-entrar-vigor. Acesso em 06/12/2015.
Autor: Peter Panutto é advogado, mestre e doutor em Sistema Constitucional de Garantia de Direitos pela Instituição Toledo de Ensino.Diretor e professor de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da PUC-Campinas.