Autores: Emanuel Queiroz Rangel e Ricardo André de Souza (*)
Em breve a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça julgará matéria de relevância no procedimento relativo ao Júri. Trata-se da análise acerca do terceiro quesito, obrigatório quando o Conselho de Sentença responde afirmativamente aos dois quesitos anteriores, referentes à materialidade do fato e à autoria ou participação do acusado.
O Habeas Corpus 350.895 impetrado pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro confronta acórdão proferido pela 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça fluminense no qual se considerou haver contradição nas respostas dos jurados, na forma do artigo 490 do Código de Processo Penal. A impetração apoia-se fundamentalmente na soberania dos vereditos (CR, artigo 5º, XXXVIII, d) e na própria disposição legal que traz a expressa previsão de quesito a ser formulado nos seguintes e estritos termos: “O jurado absolve o acusado?”
Curioso que uma questão de ordem lógica tenha gerado tamanha celeuma no STJ. Para além do já superado debate acerca da utilização do Habeas Corpus como substitutivo de Recurso Especial, resta a possibilidade de concessão da ordem de ofício quando se tratar de evidente constrição à liberdade do paciente. É exatamente a hipótese.
Deve ser lembrado que a alteração ocorrida pela Lei 11.689/08 teve um propósito definido: simplificar a formação dos quesitos. Simplicidade recepcionada por aqueles que atuam na área criminal, especialmente perante o Tribunal do Júri, facilitando a decisão dos jurados. Nesta linha reflexiva, seguem a formulação dos quesitos pelo disposto no artigo 483, CPP. Ressalta-se que o legislador não criou qualquer exceção quanto a formulação dos quesitos. Os eventuais prejuízos — leia-se, a ausência de quesitação — ocorre justamente pela própria decisão dos jurados. Seguir por outra linha é a criação de interpretação contra legis, ou na realidade, legislar no lugar de decidir, como pode ser refletido pelo acórdão impugnado.
Com efeito, o Código de Processo Penal determina em redação meridianamente clara que (a) “a resposta negativa, de mais de três jurados, a qualquer dos quesitos referidos nos incisos I e II do caput deste artigo encerra a votação e implica a absolvição do acusado” (CPP, artigo 483, §1º); depois, igualmente, prevê a única outra hipótese possível, (b) “respondidos afirmativamente por mais de 3 (três) jurados os quesitos relativos aos incisos I e II do caput deste artigo será formulado quesito com a seguinte redação: O jurado absolve o acusado?” (CPP, artigo 483, §2º)
Ora, ou consideramos que o terceiro quesito concede efetivamente ao jurado a possibilidade de escolha entre validamente responder “sim” ou “não” à pergunta que lhe é formulada, potencializando a constitucional previsão da soberania dos veredictos, ou alçamos o quesito à condição de algo análogo ao enigma da esfinge adaptado ao processo penal: no lugar de ser devorada, a defesa verá anulada a decisão absolutória. No caso que ensejara a impetração, o Conselho de Sentença respondeu “sim” ao quesito absolutório nisto não consistindo qualquer contradição com a resposta dada aos dois quesitos anteriores. Pelo contrário, a afirmação de ambos é condição inelutável para o questionamento do terceiro. Qual é o drama?
E o seguinte: para dar provimento a apelo acusatório alegando decisão manifestamente contrária à prova dos autos (CPP, artigo 593, III, d), o órgão fracionário do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro invoca o artigo 490 docodex enxergando não uma contradição entre as respostas dadas aos quesitos — o que seria absurdo do ponto de vista lógico e estrutural da forma de quesitação eleita pelo legislador —, mas uma contradição entre a resposta dos jurados e… a tese de defesa (negativa de autoria).
Com todas as vênias, a aplicação do artigo 490 neste panorama representa quádrupla ofensa: (i) ofende a soberania dos vereditos — abstraída aí a discussão acerca da constitucionalidade do artigo 593, III, d; (ii) ofende o a liberdade de convencimento dos jurados (CPP, artigo 472), tributário do mencionado cânon constitucional; (iii) ofende a própria lógica sobre a qual está estruturalmente vertebrada a quesitação em Plenário, ou seja, há clara inobservância do devido processo legal formal e; (iv) ofende a plenitude de defesa (CR, artigo 5º, XXXVIII, a). Sobre esta quarta ofensa, dedicaremos uma última palavra.
A prevalecer o entendimento no qual haverá contradição entre os segundo e terceiro quesitos [!] quando a única tese de defesa desenvolvida em plenário for a negativa de autoria, estar-se-á violando a plenitude de defesa e, em larga medida inclusive a independência funcional (no caso da Defensoria Pública) e o libertas convinciandi (CR, artigo 133). Isto porque à defesa precisaria necessariamente desenvolver outras teses que não aquelas vinculadas estritamente ao primeiro (ausência de materialidade) e segundo (negativa de autoria) quesitos para que se pudesse emprestar efetiva vigência ao disposto no artigo 483, §2º do Código de Processo Penal.
Em outras palavras, por via oblíqua, a prevalecer o entendimento esposado pelo órgão a quo, se estará interferindo na própria essência da atividade defensiva ao determinar a necessidade de sustentação de tese diversa daquela eleita pela defesa nos interesses do acusado. Tudo isso, claro, para que o terceiro quesito não se traduza num inerme “decifra-me ou te devoro”. Espera-se que o Superior Tribunal de Justiça esteja atento aos reflexos da decisão a ser adotada e não devore o direito de defesa, o disposto no CPP, e, portanto, o devido processo legal.
Autores: Emanuel Queiroz Rangel é coordenador de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro
Ricardo André de Souza é coordenador de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro