João José Sady*
Desde há alguns anos que o Brasil parece uma terra lendária por onde passou o mítico Rei Fernando que expulsou um terrível dragão que afligia a nobres e camponeses e que atendia pelo simpático cognome de Inflação. Agora que acabaram os oitos anos do Reinado, algumas pessoas começam a indagar de si mesmas qual era a pior das pragas: Fernando ou o Dragão?
Dizia-se que o pior de todos os inimigos do povo brasileiro era a inflação que causava a terrível moléstia da instabilidade. A Inflação foi controlada e dizem que a Estabilidade é uma conquista que devemos preservar.
Nos primeiros tempos de estabilidade, até que a renda melhorou. Depois, foi se revelando qual era o preço daquela paz imaginária: montanhas de dividas. Para segurar a inflação vinda de fora com as ameaças do disparo do dólar par o alto, permitiu-se a entrada do capital especulativo, levantaram-se a maioria das barreiras alfandegárias, triplicou-se a dívida externa. Para segurar a inflação criada aqui mesmo, eleva-se a taxa de juros à estratosfera, permitindo-se aos bancos ganhar rios de dinheiro e impedindo-se o crescimento econômico.
Agora, vivemos atrelados ao medo de que o Dragão retorne para nos assombrar. O Governo da Esperança submete-se às exigências do FMI e eleva o “superávit primário”, ou seja, o corte no orçamento bem mais para cima do que o Rei Fernando.
Com este imenso contingenciamento, não há dinheiro e o Estado não tem capacidade de investir para gerar crescimento. De outro lado, a taxa Selic continua a subir garantindo que não haja uma expansão da demanda.
O povo raciocina e fica a perguntar: elevam a taxa de juros para que as pessoas não saiam comprando e para que a inflação então não retorne; mas, por outro lado, se as pessoas não comprarem, como é que as empresas vão aumentar a produção? E se elas não puderem aumentar a produção, como é que se vai criar empregos? O preço da expulsão do dragão foi expulsar sete milhões de brasileiros para o desemprego.
Agora, o Governo da Esperança continua a mantê-los rigorosa e cientificamente desempregados através da elevação da taxa de juros. Para que não volte a inflação. Será preciso continuar a “preservar” a miséria das grandes massas em homenagem à estabilidade? Será preciso continuar a inibir a criação de empregos por temor ao retorno do Dragão da Inflação?
Esta Paz da Estabilidade em que vivemos, é só uma aparência de paz. Parece que o andar de cima venceu de vez o pessoal do andar de baixo, porque a economia está estável. No entanto, a estabilidade vai estourando por todas as costuras em face da incapacidade do país legal em atender às demandas do povo dentro da legalidade. Este um terço dos brasileiros que não está vivendo neste território feliz que chamamos de “economia”, não está em paz, está submetido.
No entanto, há um rumor surdo de rancor crescendo pelas sombras e se vê a morte em cada esquina, a truculência governando as relações entre as pessoas. Mais cedo ou mais tarde, será preciso enfrentar a realidade: para criar emprego será preciso romper com as altas taxas de juros, e diminuir o superávit primário.
Esta é a dura realidade. Dura porque vai implicar em enfrentar, do lado de fora, o FMI e seu cortejo de morcegos e, no lado de dentro, a ameaça de retorno à inflação. Quanto mais tempo o país fugir a este enfrentamento, maior será a acumulação de sofrimento e ressentimento. Maior será a dificuldade de enfrentamento. Esta paz aparente é muito confortável, para quem não foi expulso para o barraco, sem água, sem luz, sem esgoto, sem polícia.
Para esse pessoal que não tem renda mesmo, inflação ou não, tanto faz. Lá em baixo, torce-se de inquietude a mais perigosa criatura do Capitalismo: o homem que não tem nada a perder. Aqui em cima, o Estado e o Mercado continuam sua feliz lua de mel “de esperança” supondo que a vida sem o dragão vale qualquer sacrifício. Não percebem a ameaça de que existe uma criatura bem mais perigosa e que está ficando cada vez mais inquieta e desesperada.
João José Sady é professor universitário, advogado trabalhista em SP, coordenador da Comissão de Direitos Humanos e conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional de São Paulo