Justiça Restaurativa: um novo modelo de política criminal

Autor:  Ílison Dias dos Santos (*)

 

À medida que se verifica o estado da arte do Direito Penal, de imediato há que se constatar sua crise de legitimidade cada vez mais acentuada, especialmente quando confrontadas suas missões declaradas com aquelas vividas no mundo real e refletidas sob o prisma das correntes teóricas notadamente críticas, como o abolicionismo penal, a criminologia da reação social e a postura vitimológica crítica, chamada vitimologia da ação.

Tais movimentos deslegitimadores do Direito Penal tradicional, no todo ou em parte, vêm descambando em uma tendência de política criminal que enxerga o fenômeno jurídico-penal de modo distinto, tomando como ponto de partida as críticas à alta seletividade do sistema penal por fatores socioeconômicos (especialmente nos países chamados periféricos)[1]; ou ainda pelas contribuições dos plurais movimentos de reivindicação do papel da vítima no campo penal, já que até então ela, tradicionalmente, havia sofrido uma espécie de “neutralização”[2].

Este cenário epistemológico efervescente e, por certo, politicamente questionador, produziu pouco a pouco e com diversas matizes, um terreno fértil para novos modelos de justiça penal, de alternativa à ineficácia quase constante do sistema penal de lágrimas e sangue.

A Justiça Restaurativa, por seu turno, está centrada neste campo teórico de busca de uma nova prática penal. É compreendida como um novo paradigma no direito penal de garantias, que tem em conta os postulados de minimalismo do mesmo, diminuindo assim sua seletividade ante o infrator, também merecedor de atenção por parte da Justiça Restaurativa. Ela se distingue profundamente do modelo atual de justiça criminal, primordialmente porque “na filosofia restaurativa o crime é uma atitude contra as pessoas e contra as relações”[3].

A vítima sai de uma posição de quase completo esquecimento para um papel destacável na resolução de conflitos jurídico-penais, já que para a Justiça Restaurativa, antes que penal, o conflito é social e, fundamentalmente, intersubjetivo. Por tanto, a vítima, vista como imediatamente afetada pela conduta transgressora do “infrator” [4] à lei penal, tem o direito de participar com voz e escuta desse processo dialogado que se constitui através do chamado “encontro restaurativo” entre vítima-infrator-comunidade, materializado em suas ferramentas restaurativas.

Assim, para levar à prática a Justiça Restaurativa, compreendida como uma filosofia dotada de princípios e valores, ou como prefere Marshal[5] em sua clássica conceituação “um processo pelo qual todas as pessoas que têm um interesse em uma determinada ofensa se juntam para resolvê-la coletivamente e para tratar suas implicações de futuro”, faz-se uso de ferramentas como a mediação penal, os círculos de sentença ou as conferências restaurativas.

Cada uma dessas ferramentas possuem características que as fazem mais adequadas de acordo as especificidades do caso concreto. É dizer, nem todos os casos serão melhor tratados por uma mediação penal e isso tem que ver, por exemplo, com que no caso em questão seja mais adequado uma maior participação da comunidade, dos agentes operadores da justiça tradicional, etc.. Sem embargo, vale a pena mencionar que não há hierarquia qualitativa entre as ferramentas, senão mais bem, uma busca de adequar o método restaurativo à realidade fenomenológica do caso em questão.

Não obstante, por mais evidentes que sejam os possíveis benefícios da Justiça Restaurativa, há que vigiar as garantias fundamentais, como ocorre com todas as políticas criminais que pretendem ser democráticas. Este rasgo garantista, plasmado pelo direito penal iluminista, segue sendo necessário e, em uma sociedade desigual como a nossa, de fundamental importância para a contenção dos excessos do ius puniendi.

Assim mesmo, o campo de atuação da doutrina restaurativa se encontra em permanente processo de construção. Por um lado, estão os que não compartem limitações a sua aplicação, por outro, os que a veem como compatível, ao menos por enquanto, tão somente com alguns delitos in concretum, já que delitos como, por exemplo, o homicídio, dificilmente seriam aceitos como tratáveis por um processo restaurativo.[6]

Posiciono-me de modo, em parte, distinto. Para mim nem todos os delitos se adequam a um processo restaurativo, portanto, essa eleição deve surtir-se não só observando a gravidade dos delitos, como geralmente se advoga, mas deve ser avaliada as características criminológicas destes delitos, ou seja, analisando suas peculiaridades no campo social, no campo jurídico-penal e, especialmente, o impacto sofrido pela vítima do delito. Desse modo, sou partidário de que alguns delitos somente podem obter uma resposta adequada socialmente por meio do exercício do ius puniendi em sua manifestação clássica, porém, esse uso do poder punitivo estatal deve ser residual.

Em suma, a Justiça Restaurativa se apresenta como uma importante perspectiva político-criminal no sentido de encampar a defesa por um direito penal mais humano e democrático. Seus desafios são muitos, variados e, certamente, há muitas respostas que carecem de ser dadas. É para isso que estamos nós, os estudiosos da ciência do direito penal e, pelo que se insinua dessas reflexões, a Justiça Restaurativa não parece ser a panaceia, senão, para lembrar as imortais palavras de Radbruch, um importante passo até um melhor Direito Penal enquanto não encontramos algo melhor que o Direito penal.

 

 

 

Autor:  Ílison Dias dos Santos é mestre em Direito Penal e Doutorando em Estado de Direito, ambos pela Universidade de Salamanca – Espanha.


Você está prestes a ser direcionado à página
Deseja realmente prosseguir?
Atendimento