Justiça: valor absoluto

Justiça [1]: valor absoluto. A história americana registra um episódio que, pelo seu alto valor humano, indica até que ponto pode chegar o clamor pela justiça.

Roma. Ano de 1805. Uma ensolarada tarde de outubro. Dois homens galgam lentamente a colina do Monte Sagrado[2]. Um deles é jovem, esguio, e o cenho carregado não esconde a beleza dos traços de origem crioula. O outro, menos jovem, menos alto, ombros curvados e cabelos grisalhos ao vento. Caminham em silêncio. Dir-se-ia que há dentro deles um vulcão prestes a explodir. Chegam ao cimo. Ambos contemplam a cidade dos Césares e dos deuses. Há, no olhar do jovem, um misto de mágoa e desafio. Seus olhos procuram algo, pousam demoradamente no Ocidente e, súbito, cai de joelhos e brada solenemente:

“Juro pelo Deus de meus antepassados; juro pelos meus antepassados; juro pelo meu país natal, que não permitirei que minhas mãos permaneçam ociosas, nem minha mente em repouso, enquanto não livrar minha pátria das algemas que a escravizam à Espanha!”.

Esse jovem era Simón Antonio Jose de La Santíssima Trinidad Bolívar y Palacios, o libertador de seis nações americanas[3]. Tinha, então, 21 anos de idade. O outro, seu mestre, Simon Rodrigues. Somente o mestre e o céu da Itália testemunharam essa promessa.

Um jovem recorre aos céus e à força de uma promessa para proporcionar justiça a um povo. A consciência da lesão sofrida, como indivíduo e como membro de uma comunidade, e a certeza de que não há um poder constituído para distribuir a justiça (ao contrário, a lesão parte justamente daquele poder cuja autoridade não pode ser reconhecida, porque foi imposta pela força, sendo espoliadora dos bens materiais e espirituais de sua gente, por mais de 300 anos) fundamentam o clamor. Clamor transformado na promessa que o mundo, assombrado, viu cumprir-se 20 anos depois.

A consciência da lesão é inata, como inato é o senso de justiça. Assim, lutar pelos direitos é um dever do interessado para consigo mesmo, seja uma lesão que fere um bem particular, individual, seja uma lesão que fere um bem coletivo. Abdicar dos seus direitos por ignorância e desesperança é aceitar descer ao nível do animal[4]. Adentrar no campo da consciência do homem, em sua capacidade de apreensão do ideal supremo, que é a Justiça (valor absoluto), é mover-se no campo do imponderável. A Justiça se sobrepõe a todos os valores visados por qualquer das regras do Direito

Ela é a condição primeira de todos eles (valores), a condição transcendental de sua possibilidade como atualização histórica. Ela vale para que todos os valores valham. Não é uma realidade acabada, nem um bem gratuito, mas é, antes, uma intenção radical vinculada às raízes do ser do homem, o único ente que, de maneira originária, é enquanto deve ser[5].

Pode ser, também, chamada valor-fonte por qualquer sociedade, em qualquer época. Sendo valor, e como tal, subjetiva, torna-se impossível uma identificação científica; é impossível aprisionar a idéia de Justiça para dela emitir um conceito.

Ao dizer que “não pode haver justiça sem homens justos”, Platão antecipa-se no tempo, saltando eras históricas e suas respectivas verdades, e vem concordar com as concepções naturalistas as quais a vêem de forma também objetiva, porque enfocam o homem e a ordem justa instaurada por ele. Ao considerar justo aquilo que está em conformidade com o Direito, é necessário inquirir: o que é de cada um? O que é bem? De que tipo de bem se está tratando? Bem material? Bem espiritual? O que é bem espiritual?

À luz do Direito hebraico e do Direito romano, Rui Barbosa[6] debruça-se numa rara ocasião sobre o processo de Jesus. Com esse estudo, pouco conhecido, produziu belíssima página na qual tocou o cerne da questão relativa à Justiça:

Por seis julgamentos passou Cristo: três às mãos dos judeus, três às dos romanos, e em nenhum teve um juiz. Aos olhos dos seus julgadores refulgiu sucessivamente a inocência divina, e nenhum ousou estender-lhe a proteção da toga. Não há tribunais que bastem para abrigar o Direito, quando o dever se ausenta da consciência dos magistrados[7].

Ao confundir-se com a Lei (Direito positivo ou escrito), não se reduz a ela; tem nela o seu referencial e ganha o aparato do Estado para se fazer cumprir. Na medida em que se institucionaliza, constituindo-se na ordem jurídica da sociedade, cuidando dos direitos, não pode afastar-se de sua outra face, a dos valores.

O dever de promover a justiça, que deve estar presente na consciência dos magistrados e de todos aqueles que por vocação ou razão de ofício se dispuseram a fazê-lo, é condição válida tanto para o ano 33 da era cristã, quanto para o tempo atual. No tempo atual, no Brasil em particular, o que não faltam são leis, leis para tudo e para todas as situações. Abrangentes. É da tradição ibero-americana essa necessidade de legislar antecipando-se às situações de fato. Da mesma cultura, provém uma prática de conseqüências danosas: vindo as leis “de cima para baixo”, elas têm de adequar-se às situações mais diversas. Dessa forma, a ignorância da lei e/ou a sua má interpretação geram ajustamentos pouco éticos os quais vão engrossando as legiões dos que duvidam da justiça, na mesma proporção daquelas dos que apostam na impunidade. O excesso e as incoerências da legislação dificultam a ação da justiça e nos colocam diante de um quadro com um aumento assustador da criminalidade. Deve haver um pacto social entre os níveis federal, municipal, estadual e a comunidade para tratarmos do problema com seriedade, mas ninguém parece querer isso.

Vivo perante uma Justiça que ouve falar de injustiças, mas, por ser cega, não as vê; que, sufocada pelo excesso de demanda, demora para resolver coisas grandes e pequenas, condenando-se pela sua própria limitação. Uma Justiça que, pobre[8] e debilitada pela falta de recursos, não tem condições materiais de atualizar-se. Uma Justiça que quer julgar, mas não pode.

Essa não é a minha Justiça[9].

Minha Justiça não é cega. É uma lady[10] de olhos abertos, ágil, acessível, altiva, democrática e efetiva. Tirando-lhe a venda, eu a liberto para que possa ver[11].

[1] Palavra de origem controvertida, não só quanto ao significado mas também quanto à etimologia. Jus, justitia e justum derivam do radical ju (yu) do sânscrito (língua clássica da Índia). Ju (yu), em sânscrito, significa unir, atar, dando origem, em latim, a jungere (jungir) e jugum (jugo, submissão, autoridade). Outros referem-se à palavra yóh, sânscrito também, encontrada no Livro dos Vedas (livro sagrado dos hindus, que corresponde à Bíblia, à Tora e ao Corão), dando a idéia de salvação. Na Idade Moderna, jus foi associado a Zeus ou Júpiter: divindade suprema de gregos e romanos. As explicações não são excludentes, revelando uma primeira noção de justiça associada a um relacionamento sob proteção divina (LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. São Paulo: Brasiliense, 1985).

[2] Monte Aventino (Roma, Itália).

[3] Simón Bolívar (1783-1830). Nasceu em Caracas, era de família nobre e rica, chefiou as revoluções que libertaram a Venezuela, Colômbia, Equador, Panamá, Peru e Bolívia. Teve a seu lado, em algumas das revoluções, o herói latino-americano San Martín.

[4] No romance intitulado Michael Koolhaas, de Heinrich Von Kleist, o poeta faz exclamar o seu herói: “antes ser um cão do que um homem, se devo ser calcado aos pés” (In: JHERING, Rudolf von. A luta pelo Direito. Rio de Janeiro: Organização Simões, 1953. p. 52).

[5] REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 1987. p. 371.

[6] Rui Barbosa (1849-1923). Jurista, orador e diplomata. Conhecido como a “Águia de Haia”, foi considerado o maior cérebro da América Latina.

[7] MELLO, Gladstone Chaves de (Org.). Rui Barbosa: textos escolhidos. Rio de Janeiro: Agir, 1968. p. 81-82. (Coleção Nossos Clássicos).

[8] Como disse o Min. Paulo Costa Leite, Presidente do Superior Tribunal de Justiça, “o Judiciário, no curso da história, sempre se viu a braços com as mais graves dificuldades financeiras, desprovido, em conseqüência, de uma estrutura capaz de atender satisfatoriamente às exigências de seus jurisdicionados” (MARTINS, Ives Gandra; NALINI, José Renato (Coords.). Judiciário: situação atual e perspectivas de mudanças. In: ______. Dimensões do Direito Contemporâneo: estudos em homenagem a Geraldo de Camargo Vidigal. São Paulo: IOB, 2001. p. 47).

[9] O magistrado Fernando A. V. Damasceno, da Justiça Federal, mantém, em sua sala, uma estátua da Justiça, sem venda. No discurso de sua posse na Presidência do Tribunal Regional do Trabalho da 10.ª Região, ele disse: “Em minha sala de trabalho, inspira-me uma singular estátua da Justiça, sem venda. Maravilho-me ao admirá-la, pois não posso admitir uma Justiça, como tradicionalmente se a representa, marcada pelo cruel estigma da cegueira. Em nossa luta pelo Direito, devemos arrancar esta venda e, inspirados na beleza de seus olhos, praticar uma Justiça verdadeiramente social, aplicada equanimemente por uma sociedade que a respeita”.

[10] Os americanos a chamam de Lady Justice, Senhora Justiça (Lady Justice thanks and summary. Davis: University of California, nov. 2001. Disponível em: ).

[11] JESUS, Damásio de. Os olhos abertos de Themis, a deusa da Justiça. São Paulo: Complexo Jurídico Damásio de Jesus, dez. 2001. Disponível em: www.damasio.com.br/novo/html/frame_artigos.htm.

* Damásio de Jesus
Presidente do Complexo Jurídico Damásio de Jesus

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