Tem absoluta razão o Senhor Ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, ao afirmar que um eficaz instrumento na prevenção e repressão ao crime organizado internacional é a efetiva aplicação da Lei de Lavagem de Dinheiro. Realmente, enquanto o produto da criminalidade de massa, sem espírito empresarial, consistente em roubos, furtos, estelionatos etc., deságua geralmente na receptação[1], os grandes lucros ilícitos da criminalidade organizada, com espírito empresarial, advindos de corrupção na Administração Pública, falsificação, tráfico de drogas e de armas etc., são consumidos pela lavagem de dinheiro, sua “causa final”[2], uma espécie de favorecimento real[3] levado a escala internacional.
O Governo Federal decretou guerra à lavagem de dinheiro[4], procurando impedir que “o produto do crime transforme-se em gigantescos fluxos de curto prazo nos paraísos fiscais”[5]. Aplaudindo a iniciativa, queremos adicionar neste trabalho uma pequena contribuição.
Participamos, em Viena, de 13 a 22 de maio último, do 12.º Período de Sessões da Comissão das Nações Unidas de Prevenção ao Crime e Justiça Penal, em que o crime de tráfico internacional de mulheres e crianças, tema principal do evento, foi colocado em terceiro lugar na lista dos delitos que mais obtêm lucros ilícitos[6]. Ocorre, todavia, que entre nós os delitos referentes ao tráfico internacional de seres humanos não se enquadram no tipo penal da lavagem de dinheiro[7]. Vejamos.
O art. 1.º da Lei n. 9.613, de 3 de março de 1998, ao definir o delito de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores, tem a seguinte redação:
“Ocultar ou dissimilar a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime:
I – de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins;
II – de terrorismo;
III – de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção;
IV – de extorsão mediante seqüestro;
V – contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de atos administrativos;
VI – contra o sistema financeiro nacional;
VII – praticado por organização criminosa;
VIII – praticado por particular contra a Administração Pública estrangeira (arts. 337-B, 337-C e 337-D do Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal)”[8].
A lavagem de dinheiro é crime pressuposto, i. e., pressupõe a prática de outro delito. Note-se que há o fato antecedente, descrito nos incisos, de onde provém o “dinheiro sujo”, e a posterior lavagem de capitais (crime conseqüente), definida no caput. Onde está, nos incisos, o tráfico internacional de mulheres e crianças, um dos que mais desembocam na lavagem de capitais[9]? Não está definido em nenhum dos incisos supracitados. A razão histórica está em que nos idos de 1998, quando a Lei entrou em vigor, não obstante o delito de tráfico internacional de pessoas estivesse sendo cometido há muito tempo e em grande escala, não tinha grande repercussão social. Esquecido pela mídia, passou despercebido aos olhos do legislador. De maneira que não há crime de branqueamento de capitais na hipótese de o objeto material advir de tráfico internacional de pessoas, subsistindo apenas o delito antecedente.
O sistema legal de enunciação de rol de crimes que devem ser alcançados pela norma punitiva é sempre falho, como fizemos sentir em outro trabalho[10]. Norma taxativa, o rol do art. 1.º da lei referida não pode ser ampliado por analogia nem por interpretação extensiva.
É certo que o inciso VII menciona crime “praticado por organização criminosa”. De ver-se, entretanto, que, não obstante termos legislação sobre o crime organizado[11], a lei brasileira ainda não nos disse o que se deve entender por “organização criminosa”. Além disso, é possível que o fato seja cometido em concurso de pessoas (co-autoria e participação) ou por quadrilha, escapando do eventual conceito de organização criminosa. Como diz Cláudia Fernandes dos Santos, “o delito de lavagem de dinheiro não está apenas adstrito às organizações criminosas, apesar de serem estas seus autores na maioria das vezes,” podendo ser “cometido por quadrilhas, bandos e empresários”[12]. Como a adequação típica obedece a um processo restritivo de interpretação, a aplicação da lei se restringe, deixando longe da punição crimes de relevante potencial ofensivo.
Em suma, nossa sugestão é no sentido da inclusão de um inciso IX no art. 1.º da Lei n. 9.613, de 3 de março de 1998, mencionando os crimes de tráfico internacional de mulheres e crianças.
[1] Código Penal, art. 180, caput: “Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime.”
[2] Expressão empregada pelo Ministro da Justiça. BASTOS, Márcio Thomaz. O pacote contra lavagem de dinheiro. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 14 jun. 2003. Editorial, p. A3.
[3] CP, art. 349: “Prestar a criminoso, fora dos casos de co-autoria ou de receptação, auxílio destinado a tornar seguro o produto do crime”.
[4] LAVAGEM de dinheiro, o próximo alvo. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 29 maio 2003; PACOTE contra lavagem de dinheiro atinge factoring. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 10 jun. 2003. Caderno Cidades, p. C1; LAVAGEM de dinheiro: resultado em 3 meses. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 11 jun. 2003. Caderno Cidades, p. C4.
[5] Palavras do General Jorge Armando Félix, Ministro Chefe do GSI/PR. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE COMBATE AO CRIME ORGANIZADO E DEFESA DA ORDEM DEMOCRÁTICA, 3 jun. 2003, Brasília.
[6] O tráfico internacional de drogas coloca-se em primeiro lugar, seguido do tráfico ilícito de armas de fogo. Vide sobre o tema: JESUS, Damásio de. Tráfico internacional de mulheres e crianças – Brasil. São Paulo: Saraiva, 2003.
[7] Euclides Dâmaso Simões também percebeu essa falha na legislação portuguesa: “Não consta, surpreendentemente, o crime de tráfico de pessoas no art. 169.º do Código Penal”, que descreve o delito de lavagem de capitais. SIMÕES, Euclides Dâmaso. Tráfico de pessoas. Lisboa: Editorial Minerva, 2002. p. 86. Separata de: Revista do Ministério Público, Lisboa, v. 23, n. 91, p. 81-93, jul./set. 2002.
[8] Inciso introduzido pelo art. 3.º da Lei n. 10.467, de 11 de junho de 2002.
[9] Tráfico internacional de mulheres: CP, art. 231: “Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de mulher que nele venha a exercer a prostituição, ou a saída de mulher que vá exercê-la no estrangeiro”. Como se vê, a descrição típica é incompleta, pois somente trata do tráfico que visa a prostituição, quando, na verdade, a finalidade é mais ampla, endereçando-se, por exemplo, ao trabalho escravo. Tráfico internacional de crianças: Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 239: “Promover ou facilitar a efetivação de ato destinado ao envio de criança ou adolescente para o exterior com inobservância das formalidades legais ou com o fito de obter lucro”.
[10] JESUS, Damásio de. Ali-Babá e o crime de lavagem de dinheiro. Atuação Jurídica, Florianópolis, n. 77, maio 2002.
[11] Lei n. 9.034, de 3 de maio de 1995, alterada pela Lei n. 10.217, de 11 de abril de 2001.
[12] SANTOS, Cláudia Fernandes dos. Lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores. Jus Navegandi. Disponível em:
* Damásio E. de Jesus
Presidente e Professor do COMPLEXO JURÍDICO DAMÁSIO DE JESUS