Autores: Élida Graziane Pinto, Victor Carvalho Pinto e Leandro Maciel do Nascimento (*)
O projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) da União para 2018 encontra-se em tramitação no Congresso há cerca de dois meses. Contudo, verificamos nele uma omissão grave para o equilíbrio global das contas públicas.
A LDO deve reger a Lei Orçamentária Anual (LOA), e esta deve fixar a despesa na conformidade e em estrita correlação de limite com a previsão de receitas (artigo 165, parágrafo 8º da Constituição). Tendo em vista que muitas despesas são obrigatórias, na prática o equilíbrio do Orçamento depende da previsão consistente tanto do volume a ser arrecadado, quanto dos gastos incomprimíveis.
Não obstante tal dever de planejamento, como toda previsão está sujeita a erros, notadamente em função de eventos futuros incertos, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) determina que a LDO contenha Anexo de Riscos Fiscais, “onde serão avaliados os passivos contingentes e outros riscos capazes de afetar as contas públicas, informando as providências a serem tomadas, caso se concretizem” (artigo 4º, parágrafo 3º). Em igual medida, a LRF impõe que a LOA contenha reserva de contingência “destinada ao atendimento de passivos contingentes e outros riscos e eventos fiscais imprevistos” (artigo 5º, III, “b”).
Para o equilíbrio intertemporal das contas públicas, nenhuma omissão é mais severa, pois, do que a ausência de levantamento transparente e sistemático dos riscos de frustração de receita e de surgimento abrupto de novas despesas obrigatórias. No nível da União, entendemos que o PLDO/2018 deixou de explicitar — em caráter preventivo e, portanto, fiscalmente prudente — os passivos contingentes e os riscos dos resultados do Banco Central para o orçamento federal. Trata-se de falha grave, igualmente presente nas LDOs anteriores, que vem comprometendo as finanças públicas desde a edição da LRF.
Esse amplo dever de cautela não tem sido observado, em toda a sua higidez normativa, no Anexo de Riscos Fiscais do PLDO federal, para fins de transparência, motivação e equilíbrio intertemporal na relação entre o Tesouro (STN) e o Banco Central.
Ao nosso sentir, há riscos pouco elucidados e mal avaliados na eventual frustração dos saldos positivos do BC que já tenham sido, porventura, considerados pelo Tesouro na estimativa da receita da LOA, assim como inegavelmente são passivos contingentes os elevados custos fiscais dos resultados negativos, por vezes, impostos[1] pelas políticas cambial, creditícia e monetária conduzidas por aquela autarquia.
A volatilidade dos fluxos monetário e cambial, bem como os instrumentos de fomento ao mercado produzem impactos evidentemente elevados no ciclo orçamentário da União e isso precisa ser, no mínimo, evidenciado na forma de balizas prévias para fins de contraste e análise de razoabilidade com a realidade verificada ao longo da execução.
A questão mostra-se tão relevante que passou a ser objeto de atenciosa análise por parte de agentes externos, sob o ponto de vista da consistência das finanças públicas brasileiras. Com efeito, no início de maio de 2017, o Fundo Monetário Internacional (FMI) divulgou relatório sobre a transparência fiscal em nosso país[2], onde foi abordado especificamente o “complexo” (segundo o próprio FMI) relacionamento entre o BC e a STN. Tal estudo questionou (i) o impacto do custo da política monetária no endividamento público, (ii) os elevados saldos do Tesouro sob custódia do BC (a indicar elevado montante de lucros não realizados por esse) e (iii) a relação entre taxa de juros e intervenção no mercado de câmbio. Ressaltamos que a análise do Fundo claramente indica que não são fiscalmente neutras as opções de política cambial e monetária, haja vista seu elevado custo financeiro.
Acerca de tal impasse, é preciso tecnicamente esclarecer que a LRF confere, por assim dizer, um regime especial de orçamentação ao BC, dispensando sua atividade finalística de limitação prévia dada pela LOA. O artigo 7º, parágrafo 1º, da LRF admite que o resultado, porventura, negativo do BC seja integralmente suportado pela STN como uma dotação específica, que tem sido interpretada como dotação aberta, ou seja, uma fatura aferida posteriormente, ao final de cada semestre durante a execução orçamentária. Isso é feito independentemente do custo dessa fatura ex post para o cumprimento das metas fiscais e mesmo para o conjunto do orçamento.
A cobertura dos resultados negativos do BC é realizada mediante emissão direta de títulos públicos pelo Tesouro em favor do banco, o que resulta em aumento da dívida pública. Não se tratando de despesa primária, tal dispêndio não afeta a meta de resultado primário, mas impacta a meta de resultado nominal, igualmente exigida pela LRF (artigo 4º, parágrafo 1º). Daí a ausência de limite na dotação orçamentária para cobertura de saldo negativo, haja vista a própria natureza de despesa ilimitada dada pela LRF ao prejuízo que as operações do BC possam acarretar ao Tesouro.
São limitadas previamente na LOA apenas as despesas com “pessoal e encargos sociais, custeio administrativo, inclusive os destinados a benefícios e assistência aos servidores, e a investimentos” do BC, segundo o artigo 5º, parágrafo 6º, também da LRF.
Por outro lado, o eventual resultado positivo do BC constitui receita do Tesouro, auferida semestralmente e sem qualquer lastro real na realização, por exemplo, de ganhos cambiais que justifiquem o seu ingresso nos cofres públicos. Basta a nominal valorização do dólar, diante do elevado estoque de reservas cambiais mantidas pelo BC, ainda que essas não tenham sido vendidas, para falseadamente[3] ser gerado um registro formal e irreal de “lucro” a ser repassado para o Tesouro.
Como método de controle das atividades do BC, a LRF (artigo 7º, parágrafos 2º e 3º) prevê tão somente demonstrações trimestrais sobre o impacto e o custo fiscal de suas operações. A tais demonstrativos, somam-se audiências públicas semestrais das quais o BC é obrigado, pelo artigo 9º, parágrafo 5º, da LRF a participar perante o Congresso, para “avaliação do cumprimento dos objetivos e metas das políticas monetária, creditícia e cambial, evidenciando o impacto e o custo fiscal de suas operações e os resultados demonstrados nos balanços”.
Ora, demonstrações trimestrais e audiências públicas semestrais, sem qualquer lastro anterior na evidenciação dos riscos fiscais causados pelo BC e suportados pela STN, são mecanismos de controle meramente posterior e formal, pautados por uma tônica eminentemente descritiva em relação a fatos consumados.
A flexibilidade orçamentária genérica e apriorística dada ao resultado do BC precisa passar pelos filtros da transparência, motivação e razoabilidade, para resguardar minimamente o equilíbrio intertemporal das contas públicas. A falta de publicidade e a insuficiência de controle se somam à duvidosa constitucionalidade da Lei 11.803/2008 que regulamenta essa temerária relação entre o Banco Central e o Tesouro Nacional.
A atuação finalística do BC abrange operações com títulos da dívida pública, operações compromissadas, swaps cambiais e gestão de elevado estoque de reservas cambiais. Na ausência de limites das dotações específicas para seus eventuais resultados negativos, os valores anualmente envolvidos no desempenho das atribuições da autoridade monetária são de complexa visualização na peça orçamentária, assim como ficam ocultados os riscos que podem acarretar ao equilíbrio das contas públicas. Faltam tanto uma adequada equalização cambial, quanto balizas mínimas para tais operações.
A título de exemplo, lembramos que o orçamento federal prevê uma categoria orgânica para tal gestão (7100 – “Encargos gerais da União”), no âmbito do qual há unidade orçamentária específica (71101 – “Recursos sob supervisão do Ministério da Fazenda”). Cabe a essa unidade a realização de despesas relativas a obrigações financeiras (principal e acessórias) assumidas pela União. Dentre as receitas previstas para tais órgão e unidade, está o resultado positivo do BC (Fonte 152).
Para o exercício de 2016, a LOA federal (Lei 13.255, de 14/1/2016) estimou, na Fonte 152, R$ 81,591 bilhões[4], decorrentes do resultado positivo do BC em 2015. Mas tal receita foi frustrada, pois o resultado, ao final, foi negativo em R$ 9,528 bilhões[5].
Para o exercício de 2017, a LOA (Lei 13.414, de 10/1/2017)[6] prevê a receita de R$ 215,023 bilhões para a mesma fonte (conforme Quadro 3 – “Receita de todas as fontes, por órgão e unidade orçamentária”).
Ressalte-se: em 2016, a estimativa de resultado do BC era de R$ 81 bilhões, mas se consumou uma perda de R$ 9,5 bilhões. Diante desse prejuízo e considerando que, em 2017, a meta de receita na Fonte 152 é superior a R$ 215 bilhões, já começamos este ano com um desarranjo, verdadeiro risco fiscal, caso devamos levar a sério da previsão da LOA federal vigente. Acreditar em sua realização soa quimera impossível para fins de equilíbrio global do Orçamento Geral da União, porque tal valor seria muito superior aos resultados apresentados pelo BC nos últimos anos.
Muito possivelmente haverá redução drástica de dezenas de bilhões de reais das receitas oriundas da Fonte 152. Não há dúvida de que essa situação comprometerá o equilíbrio das contas públicas e acarretará o aumento do endividamento. Falta, ao nosso sentir, um mecanismo de compensação intertemporal entre “lucros” e “prejuízos” em prol do erário.
É preciso urgentemente submeter a relação do Tesouro com o BC, no mínimo, a uma avaliação prévia sobre os riscos fiscais nela incursos, até para que possam ser debatidas, à luz do artigo 4º, parágrafo 3º da LRF, no anexo próprio da LDO federal, “as providências a serem tomadas, caso se concretizem” passivos contingentes (resultado negativo) ou frustrações de receitas (resultado positivo inferior ao estimado ou resultado negativo) no acerto de contas entre a STN e o BC.
Quando retomamos a LDO/2017 (Lei 13.408, de 26/12/2016), vemos, em seu Anexo de Riscos Fiscais, algumas diretrizes sobre o conteúdo do que deveria ser considerado risco e, portanto, ali inserido. De um lado, há “eventos cujo impacto se materializa através da afetação dos parâmetros macroeconômicos projetados para a elaboração do cenário base contido” na LOA. De outro, há os que impactam “de forma direta nas receitas e/ou despesas constantes no cenário base, sem necessariamente afetar, a priori, os parâmetros projetados para a sua construção”.
O aludido anexo, por exemplo, considera como risco fiscal “haveres financeiros administrados pelo Tesouro Nacional, risco de capitalização bancos públicos federais, administração da dívida pública mobiliária, passivos e ativos contingentes”. Entre os passivos contingentes, constam desde o tema relativo à discussão judicial sobre a inclusão dos tributos PIS/Cofins na base de cálculo do ICMS, como também demandas que tramitam perante o STJ e STF, com estimativa de custo de R$ 8,3 bilhões (relativa a valores de desapropriações). Esses são riscos, por vezes, inferiores aos que podem decorrer de quebra de receita ou aumento da despesa, em razão do resultado do BC, que pode impactar o equilíbrio entre receitas e despesas no montante de dezenas ou mesmo centenas de bilhões de reais.
No entanto, os riscos da relação entre STN e BC não constam de modo expresso no citado anexo da LDO. Basta ter em mente o custo fiscal de operações compromissadas, swaps cambiais ou mesmo o estabelecimento do nível ótimo de reservas internacionais, cuja diferença entre o custo da captação de recursos internos e a compra de títulos públicos no exterior é significativa. Daí porque a gestão e execução de tais atribuições, ao longo do exercício, estão sujeitas a inúmeros fatores de risco que podem impactar o equilíbrio refletido nas metas fiscais, bem como impactar macrodados econômicos que constrangem as contas públicas.
Vale lembrar, aliás, que parte do debate feito pelo Congresso em 2016 quanto ao crime de responsabilidade da ex-presidente Dilma teve por objeto o desconhecimento do impacto das assim chamadas “pedaladas fiscais” nas contas públicas, pela falta da sua explicitação no correspondente Anexo de Riscos Fiscais da LDO. Interessante rememorar trecho do relatório de pronúncia[7] apresentado no Senado, onde foi expressamente mencionado (fls. 170-171), o dever de avaliar exaustivamente os riscos fiscais e sua conformidade com as metas fiscais:
Caberia ao Anexo de Riscos Fiscais identificar, mensurar e apresentar a decisão estratégica sobre as opções para enfrentar o risco. Além disso, em audiências públicas quadrimestrais a serem realizadas perante a CMO para avaliar o cumprimento das metas fiscais, deverá o Poder Executivo estimar o grau de tolerância das contas públicas frente ao risco, indicar medidas de mitigação do risco e monitorar continuamente a exposição ao longo do tempo.
O Executivo tinha o dever, portanto, de incluir as “pedaladas fiscais” no Anexo de Riscos Fiscais das LDOs e prever, nas Leis Orçamentárias Anuais, reserva de contingência suficiente para atendê-los. (grifo nosso)
Para que se tenha mais transparência quanto aos custos na gestão da dívida pública, mostra-se imperativa a inclusão, no Anexo correspondente da LDO, do detalhamento dos riscos das operações do BC, bem como seu relacionamento com a STN, de modo a assegurar a “responsabilidade na gestão fiscal [que] pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas”.
Uma adequada aplicação da LRF exigiria não apenas que a estimativa desses riscos constasse do Anexo próprio da LDO, mas também que esse indicasse as ações a serem adotadas na hipótese de sua ocorrência e que a Reserva de Contingência da LOA incluísse valores suficientes para assegurar o equilíbrio das contas públicas em cenários macroeconômicos negativos.
Na falta dos limites de dívida consolidada e mobiliária da União, bem como na ausência de dotação orçamentária que fixe limites prévios para a atividade finalística do BC, é preciso urgentemente reequilibrar a relação entre autoridade monetária e Tesouro Nacional para que tenhamos clareza, de fato, sobre os custos globais da ação governamental, no que se incluem, por óbvio, as políticas monetária, cambial e creditícia a cargo daquela autarquia.
Autores: Élida Graziane Pinto é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Victor Carvalho Pinto é consultor legislativo do Senado Federal e doutor em Direito Econômico e Financeiro pela USP.
Leandro Maciel do Nascimento é procurador do Ministério Público de Contas do Piauí e doutorando em Direito Financeiro pela USP.