As vergonhosas privatizações brasileiras, em que o Estado — principalmente a União — passou as empresas estatais às mãos da iniciativa privada, desmontaram parcialmente o nosso modelo francês de ação estatal no domínio econômico (chamado de regulamentação), baseado naquela modalidade direta de atuação econômica dos entes públicos, juntamente com a produção de normas jurídicas — a dita intervenção indireta.
Após isso, passamos a adotar, na ultima década, o modelo americano de regulação, em que a ação na vida econômica por parte do Estado se dá a partir da intervenção indireta e pelas agências de regulação.
O novo governo federal está diante dos dois modelos sobrepostos. E pior: operando ineficientemente. O adotado modelo americano, inadequado para a nossa realidade socioeconômica, resultou na inoperância, em geral, das agências reguladoras e fragilizou o Estado brasileiro em suas missões constitucionais de ação na esfera econômica e social. E levou, ainda, ao aumento escorchante das tarifas, acumulado com a baixa qualidade dos serviços privatizados. Ficou evidenciada, portanto, a força do poder econômico privado e a falácia da sua competência empresarial.
A grita é geral contra a ganância das concessionárias dos serviços públicos e passividade das agências reguladoras, principalmente devido à elevação descomedida das tarifas. Às vozes de protesto e indignação, juntou-se a do Presidente da República, recentemente eleito e empossado.
Contudo, para solucionar a questão do comportamento abusivo das concessionárias e omissão das agências, não precisamos recorrer à fantasia da mudança das normas jurídicas (existe projeto de lei da deputada Telma de Souza para modificar a Anatel e a Aneel) sempre desgastante e/ou proteladora, seja até mesmo, através de medidas provisórias futuras de fixação de tarifas ou reestruturação do papel das agências, dentro do direito positivo podemos resolver o impasse sem maior criatividade jurídica.
Em um raciocínio jurídico, dentro da ótica do Direito Econômico, entendemos que as concessionárias de serviços públicos não estão cumprindo a Regra da Utilidade Pública. De acordo com o jurista Washington Peluso Albino de Souza, no livro Primeiras Linhas de Direito Econômico, essa regra determina que “nas relações do Estado com os particulares, assim como na política econômica praticada por ele ou por particular, a motivação pela utilidade pública deve ser predominante. As tarifas e outros ônus deverão ser compatíveis com os objetivos da administração e da política econômica, respeitando os legítimos interesses públicos e privados”.
Portanto, as tarifas praticadas pela concessionárias dos serviços públicos, bem acima dos índices inflacionários, com o beneplácito de algumas agências reguladoras, violam a citada regra. No Direito Econômico não se admite que a micropolítica econômica setorial — das concessionárias, de elevação abusiva das taxas de lucro — destrua a macropolítica econômica geral — estatal, de estabilidade de preços e combate a inflação.
Para colocar em eficácia a Regra da Utilidade Pública, pode-se utilizar da Lei Delegada nº 4 de 26/9/1962. Ela admite a intervenção da União no domínio econômico para assegurar a livre distribuição de mercadoria e serviços essenciais ao consumo e uso do povo, como a de água, luz e telefone, ora inviabilizados pelas tarifas exorbitantes. O art. 1º da dita Lei Delegada permite a União intervir para fixar preços e tarifas. (art. 2º, II )
A fixação de tarifas pela União, nos parâmetros legais da Lei Delegada nº 4/62, seria para cortar a parte abusiva dos lucros dos donos das concessionárias, após estudos econômicos e do mercado comprovando o fato. Contudo, a tarifa a ser fixada respeitará o equilíbrio financeiro dos contratos. Ou seja, as concessionárias terão os custos e despesas cobertas e uma margem de lucro compatível para o setor, mantendo assim os pilares da economia de mercado, mas eliminado a ilegalidade. Dessa forma, os mandamentos da Lei de Concessões (Lei nº 8.987 de 13/2/1995), que prega o equilíbrio contratual, estarão respeitados.
É importante ressaltar que os ditos “planos” do governo Collor para liquidar a inflação — fixação de preços, como tabelamento e congelamento, estabelecidos por mediadas provisórias —, foram editados durante a vigência Constituição de 1988 e considerados constitucionais.
Aliás, em 4 de junho de 1989, o jurista Tércio Sampaio Ferraz Júnior, publicou artigo no jornal “O Estado de S. Paulo”, intitulado “A economia e o controle do Estado”, admitindo a constitucionalidade do congelamento de preços em hipótese de desvios graves do funcionamento da economia de mercado, como no caso de hiperinflação.
A dita Lei Delegada é recepcionada pelo art. 174, “Caput” da CF, que admite a ação estatal no domínio econômico como agente normativo e regulador. Outrossim, a Lei Delegada é, também, recepcionada pelo art. 170, III e V da CF, visto que o aumento arbitrário dos lucros, através da elevação excessiva dos preços acima da inflação, geraria uma ação estatal na vida econômica, baseada em norma infra-constitucional, fixando tarifas, para impor a função social da propriedade, nesse caso, das empresas, em suas atuações no mercado de consumo e, para realizar a defesa do consumidor.
Por outro lado, a nossa Constituição, também, determina a repressão do abuso do poder econômico por parte do Estado, em seu art. 173, parágrafo 4º, pelo motivo em tela, que transversalmente pode ser reprimido através da Lei Delegada.
O Supremo Tribunal Federal já emitiu uma decisão unânime em 2001(Agravo de Instrumento nº 268.857-0/ Rio de Janeiro), relatada pelo ministro Marco Aurélio Mello, em que admitiu a recepção da Lei Delegada nº 4/62 pela Constituição Federal fr 1988, afastou a sua inconstitucionalidade e possibilitou, assim, a aplicação da norma jurídica citada para fixar preços (tabelar e congelar).
“FISCALIZAÇÃO — LEI DELEGADA Nº 4/62 — RECEPÇÃO PELA CF/88. A Lei Delegada nº 4/62 foi recepcionada pela CF/88, no que revela o instrumento normativo como meio para reprimir o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e o aumento arbitrário dos lucros — parágrafo 4º do art. 173 —, bem com quanto à atuação fiscalizadora do Estado — art. 174, ambos da Carta Política em vigor. Provimento ao agravo regimental negado por unanimidade.”
Ademais, dentro de uma da interpretação histórica da Carta Magna de 1988, não existia qualquer distinção doutrinária ou política entre regulação e regulamentação, seja durante a Constituinte ou logo após a confecção da Lei Máxima, não cabendo ao intérprete fazer qualquer distinção. Aliás, a diferenciação teórica doutrinária das referidas técnicas de intervenção estatal na vida econômica é dos anos 90. No Brasil, somente depois da queda do Muro de Berlim em 1989, do “Consenso de Washington” em 1990 e do fim do socialismo real na União Soviética em 1991, passamos a tratar da pseudo-saída do Estado do domínio econômico (regulação).
O atual Texto Constitucional em seu art. 174, “caput”, possui uma redação genérica, uma das características possíveis nas normas de Direito Econômico, admitindo ambas as técnicas de intervenção do Estado, desde que atenda aos mandamentos da Constituição Econômica. Portanto, a regulação é uma técnica estatal de agir na vida econômica que não exclui a outra, a regulamentação, com sua fixação de preços, de acordo com a nossa Carta Magna.
Os comandos da Constituição Econômica de 1988 impõem o poder/dever do Estado de agir no domínio econômico dentro de uma economia de mercado, observando suas bases, seus princípios e na busca de seus fins de Justiça social. Aliás, a tentativa de restringir a ação direta do Estado no processo econômico no Brasil, nos colocando nas trilhas do perverso Estado mínimo e da retomada do pacto colonial em bases pós-modernas, chamada de globalização, só foi possível por intermédio de Emendas Constitucionais (nº 6/1995, nº 7/1995, 9/1995). Contudo, a concepção originária do Texto Constitucional persistiu intacto em seus princípios gerais para a atividade econômica.
Existe ainda a argumentação de que a Lei Delegada nº 4/62 não poderia ser utilizada, no intuito de fixar tarifas, por que as concessionárias dos serviços públicos são regidas por leis especiais, incluindo a Lei de Concessões (Lei nº 8.987/95). Todavia, as ditas leis especiais não excluem o poder/dever do Estado agir no domínio econômico em momentos turbulentos, ditando tarifas para viabilizar o consumo e uso de serviços necessários a sociedade, em virtude de ações ilegais das concessionárias, com a possível conivência das agências.
Aquelas normas especiais são aplicáveis em momentos normais da economia de mercado, mas quando instala-se a anormalidade naquela, via atos e omissões dos agentes econômicos, gera a necessidade de aplicar a norma cabível para o instante, a Lei Delegada, para que, por meio de comandos jurídicos, restabeleça a normalidade.
Mesmo porque as leis especiais não cogitam de instantes excepcionais no mercado nem de atitudes para seu enfretamento. Elas se omitem, mostrando assim que tais situações não são de sua seara, mas sim da norma delegada apropriada para a situação.
Paralelamente, as concessionárias dos serviços públicos poderiam ser enquadradas na legislação de abuso do poder econômico (Lei nº 8.884 de 11/6/1994 e alterações), regulamentadora do art. 173, parágrafo 4º da CF. Esta legislação de defesa da concorrência admite que as pessoas jurídicas de direito privado possam cometer abuso do poder econômico, à luz do art. 15 da Lei nº 8.884/94, e sofrer as sanções administrativas capituladas nos arts 23 a 26 da dita Lei (multas, publicação da decisão em jornais, etc.), impostas pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), após prévio processo administrativo, iniciado na Secretaria de Direito Econômico, com amplo direito de defesa dos infratores.
A infração administrativa seria a do art. 20, III da Lei nº 8.884/94 (aumento arbitrário dos lucros) devido à prática de conduta do art. 21, XXIV da referida Lei (impor preços excessivos ou aumentar sem justa causa os preços de bens e serviços).
Em sua decisão final, o Cade pode determinar, ainda, providências (reduzir tarifas) a serem tomadas pelos infratores para cessarem o abuso (aumento arbitrário dos lucros) com multa diária pelo seu descumprimento (art. 46 de Lei nº 8.884/94) e a decisão pode ser executada na Justiça em caso de não cumprimento. Contudo, pressionadas pela instalação do processo administrativo, as concessionárias dos serviços públicos podem celebrar o compromisso de cessação de prática abusiva a qualquer momento, antes da decisão final do Cade, reduzindo assim as tarifas (art. 53 da Lei nº 8.884/94 e alterações).
Uma outra hipótese, seria a exoneração dos dirigentes das agências de regulação que estão coniventes, comprovadamente, com os aumentos arbitrários dos lucros pelos concessionários. Logicamente, outros dirigentes seriam nomeados e a agência realizaria a revisão de tarifas, colocando-as dentro dos valores corretos, conforme os arts. 29, V e 6º, parágrafo primeiro, da Lei 8.987 de 13/2/1995 (Lei de Concessões).
Tal solução tem suas inconveniências políticas e jurídicas, já que o presidente poderia ser cunhando de autoritário por exonerar aqueles que possuem mandatos fixados por lei — caso dos atuais dirigentes nomeados pelo governo anterior. Todavia, o presidente da República solucionaria a questão econômica e jurídica com aplausos populares e estaria apoiado na Súmula 25 do STF que permite ao chefe do Executivo exonerar os ocupantes de cargo a termo por justo motivo (o que sugere o caso em tela, desde que haja prova da conivência ou omissão dos dirigentes).
Logicamente, as exonerações desencadeariam um desgastante bombardeio de medidas judiciais para anular tais atos presidenciais.
Independentemente da Súmula 25 do STF, em virtude da prova do justo motivo para a exoneração, a fixação de mandato e estabilidade dos dirigentes, estabelecidas pelas leis criadoras das agências de regulação, é característica não apropriada para as autarquias. Isso porque feriria o art.84, II da CF, que determina ao presidente da República a competência privativa da direção superior da administração federal, seja direta ou indireta (autarquias).
Dessa forma, as características acima inviabilizam o exercício pleno da dita competência constitucional pelo presidente, como bem ensina o jurista Ricardo Antônio Lucas Camargo em seu livro “Agência de Regulação no Ordenamento Jurídico-econômico Brasileiro”. Contudo, o STF tem entendimento contrário, provisoriamente proferido, manifestado em medida cautelar na ADI 1.949-0, Rio Grande do Sul, no caso Agers, no qual os dirigentes das agências com mandato estipulado em lei só podem ser exonerados por justa causa. A questão não foi analisada frente ao art. 84, II da CF.
Pela ótica da Lei nº 8.078/90 de 11/9/90 e do seu Decreto regulador 2.181 de 20/3/1997, é plausível ainda os órgãos de proteção do Consumidor (Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça, Procon Estadual ou Municipais), punirem administrativamente, após devido processo legal e o exercício do direito de ampla defesa, as concessionárias de serviços por práticas abusivas. As empresas estariam sujeitas, ainda, às sanções estabelecidas pela referida lei, entre elas a de multa e revogação da concessão.
Contudo, as concessionárias podem celebrar termo de ajuste de conduta para cessar as práticas abusivas (art. 3, XII do Decreto nº 2.181/97), junto aos órgãos de defesa do consumidor (arts. 3, XII e 4, “Caput” do Decreto nº 2.181/97), antes de qualquer punição administrativa, minimizando os desgastes daquelas frentes aos seus usuários/consumidores e escapando das ditas sanções administrativas.
A utilização da ação civil pública (Lei n.º 7.347 de 24/7/1985) é, também, uma solução para o conflito pela via do Poder Judiciário. Tanto o Ministério Público como as associações de proteção do consumidor podem ingressar com a ação, em defesa da coletividade, demonstrando o aumento ilegal dos lucros das concessionárias, impostos pela elevação das tarifas acima da inflação, em patamares superiores aos alçados pelo setor, em uma economia de mercado.
Cabendo pedido de medida cautelar, o juiz poderia sentenciar com base nos arts. 3º e 11 da Lei n.º 7.347 de 24/7/1985 (determinando uma obrigação de fazer/reduzir preços) diante do evidente abuso do poder econômico. Inclusive, tendo como base constitucional o arts. 170, III (a função do social da propriedade), V (a defesa do consumidor); 173, parágrafo 4º (repressão ao abuso do poder econômico devido ao aumento arbitrário dos lucros) da CF e, também, apoiado na Lei nº 8.987/95 (Lei de concessões).
Esta lei de concessões estabelece dentro dos direitos dos usuários que os mesmos recebam os serviços adequadamente (art. 7º, I da Lei nº 8.987/95) e no art. 6º, parágrafo 1º, dita as condições para que sejam adequados, dentre elas, a modicidade das tarifas. Não existe modicidade de tarifas quando se aumenta arbitrariamente os lucros, através elevação abusiva das tarifas, inviabilizando o consumo de serviços ou bens.
A ação civil pública pode ser ainda fundamentada no Código de Defesa do Consumidor, atuando-se para cessar as práticas abusivas nas relações consumeristas (art. 39, V e X do CDC). Também pode ser requerido ao julgador da causa a obrigação de findar a ilegalidade, e a fixação de multa diária pelo descumprimento da decisão (art. 84 do CDC).
Obviamente, os consumidores lesados terão direito a receber em dobro o que pagaram a mais nas tarifas (art. 42, parágrafo único da Lei nº 8.078/90) e a indenização de quaisquer outros danos sofridos (art. 6º, VI do CDC).
É prudente que o Ministério Público, antes de propor a ação civil pública, inicie sua atuação por intermédio do inquérito civil para apurar os fatos e comprovar o aumento arbitrário dos lucros (art. 20, III c/c art. 21, XXIV da Lei nº 8.884/94) e a prática abusiva perante o consumidor (art. 39. V e X da Lei nº 8.078/90) mediante estudos econômicos e do mercado.
O inquérito civil pode trazer desgastes, assim como temores para as concessionárias dos serviços concedidos em relação à sua imagem, perante seus usuários e podem se ver pressionadas a celebrarem o ajuste de conduta (art.5º, parágrafo 6º da Lei nº 7.347/85), com a conseqüente redução das tarifas.
Também, não fica excluída a possibilidade de os dirigentes das concessionárias responsáveis pelas práticas ilegais acima descritas, serem punidos criminalmente, de acordo com a Lei nº 8.137 de 27/12/1990 (crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo).
Por fim, podemos concluir que a ordem jurídica nacional oferece várias soluções possíveis, as relatadas acima e outras a serem estudadas e apresentadas, independentemente de modificações das normas jurídicas, possibilitando a vedação e punição dos comportamentos em tela, bem como o restabelecimento da legalidade e da Justiça econômica e social no Brasil.
Bibliografia:
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Giovani Clark é doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, professor da PUC de MG, membro da Fundação Brasileira de Direito Econômico (www.fbde.org.br) e autor do livro “O Município em Face do Direito Econômico”.