Lei 13.330/2016 criou nova forma do crime de furto, o de animais de produção

Autor: César Dario Mariano da Silva (*)

 

A Lei 13.330/2016 criou nova forma do crime de furto ao acrescentar outra qualificadora. Diz o § 6º do artigo 155 do Código Penal: “A pena é de reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos se a subtração for de semovente domesticável de produção, ainda que abatido ou dividido em partes no local da subtração”.

Parece-nos estranha a criação de uma forma qualificada do delito de furto que contém elementos que já se encontram na sua própria definição. Não nos convence a afirmação de que haveria maior proteção penal aos pecuaristas em razão do grande e crescente número de furtos de animais na zona rural, uma vez que, na grande maioria das vezes, já incidiria a qualificadora do concurso de pessoas (§ 4º do art. 155 do CP) e a causa de aumento de pena por ter sido o furto cometido durante o repouso noturno (§ 1º do art. 155 do Código Penal).

As novas normas penais ajudam a aumentar a crescente inflação legislativa e criam vários conflitos normativos, contribuindo para a insegurança jurídica diante das previsíveis decisões contraditórias. Comumente são criadas normas penais incriminadoras que pouco ou nada contribuem para a política criminal, vindo apenas a dar uma aparente sensação de segurança.

Não tenho nenhuma dúvida que poderíamos suprimir ao menos 20% das normas penais incriminadoras existentes e ainda assim os respectivos bens jurídicos continuariam a ser protegidos da mesma forma por outros tipos penais. O exemplo típico dessa hipótese é a criação do furto e receptação de animais domesticáveis de produção, cujos bens jurídicos já se encontravam protegidos adequadamente em outros tipos penais.

No entanto, como a lei entrou em vigor, passaremos a fazer uma análise de seus principais pontos. O furto de gado é chamado em algumas regiões do País de “crime de abigeato ou abacto” e tem ocorrido com grande frequência em zonas rurais e no período noturno, aproveitando-se o larápio da escuridão e da ausência de pessoas nos campos, pastos, currais ou retiros.

Até então, a subtração de gado bovino, equino, ovino ou de outros animais de propriedade privada era tratado como crime de furto, uma vez que são para o direito “coisa alheia móvel”, mais precisamente bem semovente, que é aquele suscetível de movimento próprio.

Tanto o furto quanto a receptação têm como objeto material o semovente domesticável de produção, que é o animal já domesticado, ou que possa sê-lo, criado para abate, exploração de seus frutos ou procriação. São exemplos dele o boi, o carneiro, o cavalo, as aves e até mesmo o cachorro, desde que esteja sendo criado para o fim de procriação, o que ocorre, pelo menos em regra, em canis.

Defendemos que a elementar produção não se aplica apenas aos animais destinados ao abate e exploração de seus frutos, mas também àqueles que têm como finalidade a procriação, por exemplo: cachorros em canis e cavalos em haras.

A qualificadora não alcança o animal silvestre e nem o abandonado ou que não tenha dono, uma vez que o crime atenta contra o patrimônio, tutelando a posse e a propriedade, exigindo necessariamente para sua configuração prejuízo para a vítima. Além do mais, é elemento do tipo que o animal seja domesticável e de produção.

O animal pode ser subtraído vivo, abatido ou dividido em partes no local da subtração. Em qualquer dessas formas, a qualificadora estará configurada. Não incide a qualificadora quando o animal subtraído já se encontrar morto, transformado em produto comercial, como ocorre com o furto de carne previamente cortada para venda. Do mesmo modo, não é objeto material deste delito o furto do animal, tal como o leite de vaca. Nesses casos, o crime é o de furto simples ou qualificado por outro motivo.

Esta qualificadora pode coexistir com as previstas no § 4º do artigo 155 do Código Penal (concurso de pessoas, rompimento de obstáculos etc). Nesta situação, aplicam-se as descritas no § 4º, sendo a do abigeato (§ 6º), que é residual, considerada para aumentar a pena-base como circunstância judicial (art. 59 do CP). Além do mais, o furto qualificado pelo § 4º tem a pena prisional máxima cominada superior (oito anos), o que também justifica esse entendimento.

Do mesmo modo que ocorre com as demais qualificadoras do § 4º do artigo 155, é aplicável a causa de aumento de pena do repouso noturno (§ 1º). Até porque, a grande maioria dos furtos de animais ocorre à noite, ocasião em que os campos, pastos e currais estão menos protegidos e mais suscetíveis ao furto.

É possível o reconhecimento do privilégio previsto no § 2º do artigo 155 do Código Penal, desde que o bem subtraído seja de pequeno valor e o agente primário e sem antecedentes criminais. Cuida-se de furto com todas suas elementares, mas que possui objeto material específico, ensejando o aumento da pena. Também foi criada a figura típica da receptação de animal. Diz o artigo 180-A do Código Penal:

Adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito ou vender, com a finalidade de produção ou de comercialização, semovente domesticável de produção, ainda que abatido ou dividido em partes, que deve saber ser produto de crime. Pena – reclusão, de dois a cinco anos, e multa”.

A novel norma traz como bem jurídico protegido o patrimônio do proprietário ou possuidor do semovente domesticável de produção. Este delito, como ocorre com a receptação, pode ser praticado por qualquer pessoa, com exceção do autor, coautor ou partícipe do crime principal, que respondem apenas por este e não, pelo delito acessório.

Também é possível o proprietário do objeto material ser o autor do delito de receptação de animal, quando, por exemplo, o bem encontrar-se em poder do credor pignoratício, sendo dele furtado e entregue para seu proprietário, que o recebe, sabendo ou devendo saber de sua origem criminosa.

O delito atinge o patrimônio da vítima do crime anterior (principal), que é o sujeito passivo. A nova figura típica possui os mesmos verbos do crime de receptação dolosa própria, acrescido das condutas de ter em depósito e vender, que dizem respeito ao exercício do comércio ou produção.

A conduta típica consiste em adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito ou vender, com a finalidade de produção ou de comercialização, semovente domesticável de produção, ainda que abatido ou dividido em partes, que deve saber ser produto de crime.

Adquirir é obter a propriedade; receber significa tomar posse sem ânimo definitivo; transportar é levar de um lugar para outro por meio de qualquer tipo de veículo (caminhão, barco etc); conduzir é levar o animal de um local para outro com a sua própria força (o animal vai andando, montado pelo agente, puxando carroça etc); ocultar significa esconder para não ser encontrado; ter em depósito é manter guardado; vender significa alienar onerosamente.

Não se trata de crime que somente pode ser cometido por comerciante ou produtor. O autor será qualquer pessoa, desde que sua intenção (elemento subjetivo) seja a de comercialização do objeto material ou de sua produção, que ocorre quando há o abate, a procriação, a extração de leite ou de lã, dentre outras situações análogas. Sem esse elemento subjetivo, o crime poderá ser o de receptação dolosa própria ou mesmo receptação culposa.

A norma não exige o dolo direto, ou seja, que o agente saiba que o objeto material tem origem criminosa. Basta a presença do dolo eventual, isto é, que ele deva saber que o bem é produto de crime. Como a lei se contenta com o dolo eventual (menos), certamente se o sujeito agir com dolo direto (mais) haverá a adequação típica. Para a caracterização do delito, o animal pode ser receptado vivo, abatido ou dividido em partes.

O crime em comento está em sintonia com o de furto de animal (art. 155, § 6º, do CP). O objeto material de ambos os delitos é o mesmo (semovente domesticável de produção). No entanto, o crime antecedente e principal não necessita ser o de furto de animal, podendo ser outro em que o semovente domesticável de produção tenha sido o objeto material. Assim, v.g., pode ocorrer o roubo desse animal e a posterior venda para o receptador, o que ensejará o reconhecimento da conduta de receptação de animal (art. 180-A, do CP). Ausente uma das elementares poderá ocorrer outro delito, como a receptação (dolosa ou culposa) ou mesmo a cometida no exercício de atividade comercial ou industrial, que tem pena cominada mais severa e possui algumas outras especialidades.

Aliás, ocorrendo conflito aparente de normas entre o delito em comento e o de receptação cometida no exercício de atividade comercial ou industrial (art. 180, § 1º, do CP), prevalece este último que comina pena mais severa e é especial (contém outras elementares). Tal situação pode ocorrer, por exemplo, quando o receptador adquire para si o animal domesticável de produção, no exercício de atividade comercial ou industrial, com o propósito de produção ou de comercialização, sabendo ou devendo saber ser produto de crime.

A venda, manutenção em depósito para comércio, exposição à venda ou outra forma de entrega de matéria-prima ou mercadoria, como a carne, em condições impróprias ao consumo, caracteriza o delito contra as relações de consumo previsto no artigo 7º, inciso IX, da Lei 8.137/1990, podendo ensejar concurso de crimes com o de receptação de animais, uma vez que possuem objetos jurídicos e vítimas distintas, o que impede o reconhecimento do princípio da consunção.

Ainda que o autor do delito de que proveio a coisa seja desconhecido ou isento de pena, a receptação de animal é punível. Do mesmo modo que ocorre com o delito de receptação previsto no artigo 180 do Código Penal, há autonomia entre o crime principal e o acessório, não sendo necessária a identificação e nem a punição do autor do crime anterior (principal). O que deve existir é a prova de que o crime principal ocorreu, mesmo que não haja inquérito policial ou processo para sua apuração. A prova da materialidade delitiva pode ser feita na investigação da receptação e no processo criminal correspondente.

Resta evidente, depois de feitas as análises dos tipos penais, que estamos diante de bens jurídicos que já se encontravam suficientemente protegidos pela legislação em vigor, não sendo necessária a criação de novas figuras típicas.

De certo, o grupo de pressão dos pecuaristas e a bancada rural, de forma totalmente compreensível, foram os maiores responsáveis pela criação dessas normas penais para aumentar a proteção de seu patrimônio.

Contudo, a criação desses novos tipos não diminuirá a quantidade de furtos de animais no campo, criando uma falsa sensação de maior segurança para seus proprietários.

 

 

 

Autor: César Dario Mariano da Silva é promotor de Justiça em São Paulo, mestre em Direito das Relações Sociais e professor da PUC-SP, Escola Superior do Ministério Público de São Paulo e da Academia da Polícia Militar do Barro Branco.


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