Lei 9.613 não protege administração da Justiça

Por Andrei Zenkner Schmidt

O traficante adquire um imóvel em nome de terceiro com o dinheiro do tráfico; o autor de um peculato deposita o valor desviado na conta-corrente de um “laranja”; o doleiro utiliza contas-correntes de “fantasmas” para instrumentalizar o “dólar-cabo”. Esses são apenas alguns exemplos de condutas que a jurisprudência costuma considerar “lavagem” de dinheiro.

Em todos eles, a ofensa à administração da Justiça estaria circunscrita às dificuldades criadas pelo sujeito ativo para a incidência do poder punitivo sobre o proveito dos crimes antecedentes a que faz menção o artigo 1° da Lei 9.613/1998. Tem-se dito, ainda, que o bem jurídico protegido pelo delito de “lavagem” de dinheiro não seria a ordem econômica, que até poderia ser fomentada (exemplo: mediante a geração de empregos) com os recursos de origem ilícita.

Ao leigo, poderiam soar razoáveis as conclusões jurisprudenciais acima referidas. Aceitando-as, entretanto, estaremos subvertendo o objeto da proteção dos crimes antecedentes da “lavagem” e também ignorando as contemporâneas diretrizes políticas de uma economia de mercado.

O que distinguiria a ocultação/dissimulação descrita na Lei 9.613/1998 e a ocultação/dissimulação imanente à maioria das infrações penais (o homicida não possui um cartão de visitas de assassino; o ladrão não personaliza o veículo furtado com um adesivo de “100% furto”)?

Antecipemos a nossa conclusão: a Lei 9.613/1998 só pode proteger a ordem econômica, e não a administração da Justiça. Não estamos a falar de uma ordem econômica direcionada apenas à geração de empregos e de riqueza. A economia mudou (se é que algum dia foi assim). Superávit primário, câmbio flutuante e metas de inflação constituem, hoje, o tripé de uma economia de mercado. Tais diretrizes podem ser criticadas e até revistas, mas não podem ser ignoradas em sua historicidade.

Em paralelo, as recentes crises econômicas mundiais vêm demonstrando que um desenvolvimento econômico sustentável de longo prazo está a exigir responsabilidade na gestão dos gastos públicos (preferencialmente direcionados à educação, pesquisa, saúde e infraestrutura) e do sistema financeiro, além da devida proteção à transparência dos fluxos financeiros públicos e privados. Interessa-nos, no particular, esta última diretriz. Uma breve visita ao site do World Bank, com a inserção da palavra “transparency” ou “transparência” no mecanismo de busca, pode ser útil para a compreensão da relevância do tema na política econômica contemporânea. Ou seja: a afirmação de que a ordem econômica se esgota na geração de empregos está em flagrante descompasso com os mais elementares princípios de macroeconomia.

O curioso é que a releitura econômica do bem jurídico protegido pela Lei 9.613/1998, nos termos aqui propostos, é um excelente instrumento de recuperação da autonomia do objeto da tutela desempenhada por tal diploma legislativo em relação aos crimes antecedentes e de contenção do poder punitivo incidente na espécie.

Apenas para ilustrar a primeira função: todo crime de “lavagem” de dinheiro deveria ser processado perante a Justiça Federal (artigo 109, VI, in fine, da CF/1988), porquanto o critério hoje vigorante na jurisprudência (a competência varia conforme o crime antecedente) pressupõe que a origem ilícita do recurso seja considerada mais relevante do que a sua dissimulação/ocultação/conversão. É como se a “lavagem” de dinheiro, hoje, fosse um corpo sem alma.

E ilustremos a segunda função: os tipos penais previstos na Lei 9.613/1998 só incidem em condutas ofensivas à transparência da ordem econômica. É no adensamento conceitual dessa categoria (que certamente transborda os limites do direito penal) que o jurista encontrará um sólido terreno para a melhor compreensão do que representa, numa economia de mercado, um delito de “lavagem” de dinheiro.

A justificar a tese, veja-se o disposto na recente Carta-Circular 3.542, editada em 12 de março de 2012 pelo Banco Central do Brasil para descrever as “operações e situações que podem configurar indícios de ocorrência dos crimes previstos na Lei 9.613/1998, passíveis de comunicação ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf)”. Um breve exame de todas as práticas descritas na normativa irá demonstrar que o Estado está muito mais preocupado com a inserção clandestina de recursos de origem ilícita no sistema financeiro do que, propriamente, com eventual prejuízo à administração da Justiça.

Andrei Zenkner Schmidt é advogado Criminalista e Professor da PUC-RS.

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