Lei Antiterrorismo traz imprecisões ao Direito Penal e relativiza garantias

Autores: André Luís Callegari e Raul Marques Linhares (*)

 

Tornou-se lugar comum na doutrina político-criminal a afirmação de que nos encontramos, já há algum tempo, em um contexto conhecido como de “expansão do Direito Penal”[1]. Essa expansão possui algumas características marcantes, como a flexibilização de garantias até então intocáveis, a ampliação do âmbito de intervenção do Direito Penal a áreas que não eram de sua preocupação e a antecipação da intervenção penal, com a utilização crescente de crimes de mera conduta e de perigo, bem como com intervenção penal em atos antes considerados preparatórios de delitos.

O terrorismo se insere nesse contexto expansionista potencializando algumas dessas características mencionadas[2]. Dentre outros fatores, isso ocorre porque, se a criminalidade comum já produz um certo sentimento social de insegurança, com o terrorismo isso dá de maneira ainda mais acentuada, já que a característica principal do terrorismo é justamente a disseminação do sentimento de terror.

Além disso, se uma marca significativa da expansão do Direito Penal é a influência de reivindicações das vítimas em prol de um maior rigor no combate ao crime, no terrorismo isso se faz ainda mais sentido, já que o número de vítimas diretas e indiretas é muito maior.

Como o terrorismo mexe tanto com o sentimento social de medo, de insegurança, acaba-se criando uma crescente preocupação com a prevenção de atos de terrorismo; e, como o Direito Penal contemporâneo passou a desempenhar o papel de protagonista no combate a condutas violentas (poderíamos dizer que deixou de ser, em algumas ocasiões, a ultima ratio), cada vez mais se torna comum a atuação penal, como antes já mencionado, sobre atos preparatórios, em uma antecipação da intervenção punitiva.

A crítica a um Direito Penal futurista ou preventivo se refere, então, ao uso indiscriminado dessas figuras de crimes de perigo, ao uso exacerbado da antecipação da intervenção punitiva, ao rompimento já não disfarçado entre a separação entre Direito Penal do fato e Direito Penal do autor com a criação de um “modelo” de criminoso, como no caso do terrorista em razão da realização do batismo ou juramento feito a um grupo[3].

Essa manifestação expansionista é visível na Lei Antiterrorismo brasileira (Lei 13.260/2016), que torna ainda mais evidente, em seu artigo 5º, a presença da expansão do Direito Penal no ordenamento jurídico pátrio ao ser assim estabelecido:

“Artigo 5º Realizar atos preparatórios de terrorismo com o propósito inequívoco de consumar tal delito:

Pena – a correspondente ao delito consumado, diminuída de um quarto até a metade”.

Duas são as marcas expansionistas mais perceptíveis nesse tipo penal incriminador. Primeiramente, a completa indeterminação do tipo penal, que não estabelece em momento algum qualquer conduta específica objeto de criminalização. O que se faz nesse tipo penal é utilizar de uma expressão genérica (“atos preparatórios”) que abarca uma infinidade de possíveis condutas.

Esse modelo de tipificação se diferencia do padrão até então conhecido e presente no Direito Penal brasileiro de criminalização de atos preparatórios. Esse já consagrado modelo de antecipação da intervenção penal é encontrado, por exemplo, no artigo 291 do Código Penal[4], ao criminalizar condutas que configurariam atos preparatórios do delito de “moeda falsa”, tipificado no artigo 289 do Código Penal. Mas, destaca-se que o artigo 291 do Código Penal estabelece, especificamente, as condutas típicas.

Na Lei Antiterrorismo, entretanto, apenas se realiza menção à expressão genérica “atos preparatórios”, elemento do tipo excessivamente genérico e, por isso, incompatível com o clássico princípio da legalidade.

Além disso, outra marca expansionista presente nesse tipo penal é a exacerbada preocupação preventiva que acaba por contaminar o Direito Penal, conduzindo-o a um caminho de insegurança em sua aplicação.

Não bastando a imprecisão da expressão “atos preparatórios”, o tipo penal se torna também problemático ao exigir um “propósito inequívoco” de consumar o delito de terrorismo. Se as dificuldades dogmáticas são presentes já na distinção entre dolo eventual e culpa consciente, se farão ainda mais presentes na tarefa de se estabelecer um propósito inequívoco de realização de um ato futuro tão distante do momento da intervenção penal.

Constrói-se, com isso, um Direito Penal impreciso, relativizado em suas garantias e sujeito a aplicações arbitrárias e ainda mais estigmatizadas. Nesse caso, não se trata, necessariamente, de se defender um Direito Penal mais ou menos severo, mas sim um Direito Penal fiel às suas garantias fundamentais e capaz de fazer frente a atuações (ou abstenções) estatais infundadas.

 

 

 

 

 

 

 

Autores: André Luís Callegari é advogado criminalista e professor na Unisinos. Pós-doutor em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid. Doutor honoris causa pela Universidad Autónoma de Tlaxcala e pelo Centro Universitário del Valle de Teotihuacan. Fundador do Centro de Estudos Ibero-americano de Ciências Penais.

 Raul Marques Linhares é advogado criminalista. Integrante do projeto de pesquisa Estado e Política Criminal: a expansão do Direito Penal como forma de combate ao terrorista. Coautor do livro O Crime de Terrorismo – Reflexões Críticas e Comentário à Lei de Terrorismo de acordo com a Lei n. 13.260/2016


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