por Luciano Vitor Engholm Cardoso
A atual crise política brasileira é propícia para retomar o tema da necessidade de reforma da atual lei de licitações. Pode-se considerar que a Lei 8.666, de 1993, já se encontra ultrapassada em diversos aspectos, em que pese se tratar de um diploma relativamente novo para os padrões internacionais e ainda avançado, quando comparado aos regramentos anteriores. Mas persiste a difícil missão fácil: como evitar a desmoralização do instituto das licitações?
A atual lei consagrou, acertadamente, o menor preço como critério de escolha (ressalvadas as licitações de técnica e preço, cada vez menos utilizadas). Mas, paradoxalmente, esse critério também permitiu, por absoluta falta de ferramenta legal para impedí-lo, a possibilidade do contrato mal cumprido: se ganha com o menor preço, quase sempre inexeqüível, derrubando os preços das concorrentes sérias, para depois cumprir o contrato, diferentemente daquilo que se comprometeu com a proposta vencedora.
Com o preço baixo, não se pagam os impostos; os direitos trabalhistas, sociais e previdenciários são desrespeitados, e a qualidade é nenhuma. O preço baixo vira lucro fácil, ensejando a possibilidade de corrupção. Essa é a equação a ser enfrentada.
Existe na lei atual de licitações um instituto que sempre foi mal tratado, cuidado como mero expediente burocrático, mas que, com poucas mudanças, acarretaria enorme benefício para a moralização da licitação pública, minimizando drasticamente a possibilidade do contrato mal cumprido e do lucro fácil: trata-se do “Termo de Recebimento Definitivo” previsto no artigo 73, I e II, ‘b’, da Lei 8.666/93. Por ele, o poder público, através de uma comissão formada por seus agentes, recebe o contrato e atesta sua regularidade.
Se, além desses agentes, integrassem também essas comissões as entidades representativas dos setores organizados da sociedade produtiva (como sindicatos e entidades de classe), haveria por via transversa a participação do cidadão na gestão da coisa pública. Essa simples intervenção permitiria que profissionais com conhecimentos técnicos especializados fiscalizassem, juntamente com os agentes públicos, a adequação do contrato cumprido, comparando-o com sua proposta vencedora na licitação.
Exemplos não faltam no país: um grande hospital público contratou a empresa que havia ganho a licitação para desinfetar suas dependências por um preço demasiadamente baixo, derrubando todas as demais concorrentes especializadas nesses específicos serviços.
Ao cabo do prazo contratual, esse nosocômio apresentou índices de infecção hospitalar jamais vistos em sua história, e, mesmo assim, o contrato recebeu, burocraticamente, o “Termo de Recebimento Definitivo”. Imagine-se, todavia, se da Comissão de Recebimento tivesse feito parte o CRM — Conselho Regional de Medicina. Certamente não se teria permitido a aprovação do contrato e a empresa teria se tornado inidônea, para nunca mais contratar com a Administração Pública.
Nas obras de Engenharia, participaria das comissões o Crea — Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia de São Paulo; o Conselho de Contabilidade atestaria o correto pagamento dos impostos; e, os Sindicatos mostrariam que os pisos salariais e as conquistas trabalhistas foram cumpridas fielmente, tudo como havia se comprometido a empresa vencedora da licitação.
Que fique claro: preço baixo não é sinônimo de vantagem para o Poder Público. Proposta vantajosa é aquela que, além de oferecer o menor preço, paga todos os seus impostos, respeita os pisos salariais e as normas sindicais, e entrega a obra ou o serviço com a qualidade que o edital exigiu. Fora disso, será fraude, será sonegação e lucro fácil, escancarando a porta da corrupção.
Por isso, medidas simples como a mudança do artigo 73 da lei de licitações, obrigando a presença, no recebimento final do contrato, de representantes das entidades de classe, ajudariam a eliminar das competições públicas empresas desqualificadas, aventureiras e descompromissadas com o eficiente atendimento das necessidades da coletividade, valorizando a competição entre as empresas sérias, e, por tabela, aumentando o interesse do capital estrangeiro no país.
Os recentes episódios da vida política nacional nos convidam a uma profunda reflexão: a lei de licitações não pode mais ter dois lados, o poder público e a empresa licitante. É hora de trazer também para a lei a própria sociedade, criando ferramentas eficazes para que fiscalizem, ombreadas com os órgãos institucionais de controle como as Cortes de Contas e o Ministério Público, a correta execução dos contratos administrativos. A missão pode parecer difícil, mas é extremamente fácil. Basta ter vontade política e um pouco de criatividade jurídica.
Revista Consultor Jurídico