Lei de abuso de autoridade e a minimização das arbitrariedades do Judiciário

Autores: Anderson Brasil e Thiago Siffermann (*)

 

O Projeto de Lei 280, datado de julho de 2016, é ideologicamente um recurso normativo de responsabilização política do agente público, no exercício de função pública juridicamente relevante — junto às “Dez Medidas Contra a Corrupção” propostas pelo Ministério Público Federal (ler aqui). É discutido em espaço temporal compatível com o desenvolvimento da operação  “lava jato” (ler aqui), ao inserir, no bojo de sua atualização normativa perante a Lei 4.898/1965, trinta dispositivos penais exclusivos a agentes públicos (servidores, ou não, mas que exerçam função pública)

Apesar da coincidência ideológica desse projeto com aqueloutros que formam as chamadas “Dez Medidas Contra o Cidadão”, quer dizer “Contra a Constituição”, corrigindo, “Contra a Corrupção”, temos um Judiciário e um Ministério Público, em parte, que se negam a lançar um olhar crítico sobre si mesmos, se negam a reconhecer o paradoxo de aceitarem ver apenas no outro a corrupção.

Decerto, não há prisões ilegais, não existem denúncias sem justa causa, não existem excessos do servidor, não existe desídia consciente que possa sofrer limitação por meio de uma modernização da lei que sanciona as autoridades que abusam do poder que foi conferido a elas.

A estrutura política do Estado e a mídia movimentam a opinião pública sendo que os meios de comunicação frequentemente assumem a seleção de fatos que podem ser convertidos em notícias e o conteúdo do noticiável possui também um claro viés político, podendo acentuar ou não uma perspectiva e neste jogo de holofotes, Ministério Publico e Poder Judiciário têm servido bem para a espetacularização do Direito Penal na sociedade da cultura criminal. (ler aqui)

“Ao final do século XVIII e início do XIX começa a perder-se o contato direto com o “espetáculo punitivo” que, inicialmente, não desaparece: a praça pública nas sociedades modernas são os meios de comunicação de massa”. (OSORIO, 2005) (ler aqui)

O trabalho técnico e a racionalidade característica dos que operam e interpretam as leis deveria ser imune a midiatização, pelo menos em um plano ideal. Indiferente a isso, alguns juízes e promotores habituando-se aos holofotes e sob o efeito da deletéria audiência que os transmuda em personalidades influentes, acabam mais atentos à sonoridade dos aplausos do que a uma inaudível razão da proporcionalidade em respeito as garantias constitucionais.

“…os meios nos apresentam vozes que … chegam a pedir ao poder legislativo e executivo a intervenção penal como medida adequada, a sugerir a maneira como se tem que legislar penalmente, solicitando ao poder judiciário uma determinada forma de aplicação das leis penais existentes”(Osorio, 2005) (ler aqui)

Provas disso faz com que precisemos de explicações sobre as ideologias que vem sendo priorizadas pelo Ministério Público e pelo Judiciário. Qual ideologia?  A de que seus atos estão acima de qualquer suspeita e quem suspeita disso quer colaborar com a corrupção e age como se quisesse o fim de operações como a  “lava jato”.

Como exemplos mais atuais, o partidarismo do juiz Sergio Moro na audiência pública da Comissão Especial da Câmara dos Deputados na data de 24 de outubro deste ano, em ocasião da análise das Dez Medidas Contra a Corrupção. Afirmou em prol da operação “lava jato” que “as pessoas precisam ter fé nas instituições democráticas.” Além disso assinala que cabe ao “Congresso  demonstrar de que lado ele está nessa equação” (assistir aqui). Outrossim,  o procurador da República Deltan Dallagnol fez uma coletiva de imprensa para apresentação de uma denúncia, o que também chama a atenção (assistir aqui), em sua introdução faz uma análise estatística onde afirma:

“O fato é que quando nós olhamos os resultados dos habeas corpus impetrados contra supostos abusos nós vemos que em mais de 95% porcento deles foi legitimada a atuação do Ministério Público, policia federal, receita federal e da justiça federal em primeira instância, é um dado significativo de legitimação da atuação em primeira instância quando nós olhamos os casos que foram revisados pela justiça nenhum deles denota abuso evidente, denota abuso significativo.”

Não denotam abuso evidente ou significativo? Toda forma de abuso não seria uma forma de corrupção? Interessante essa declaração onde salta aos olhos a noção de que há abusos insignificantes.

Juiz e promotor, ambos dizendo o mesmo, querendo o mesmo, perseguindo o mesmo, mas não são eles o mesmo! Não seriam em seu cadinho de atribuição estatal tão diferentes entre si que postura, discurso e finalidades teriam que ser distintas? A lei os quer de mãos dadas?

Que mal há em um juiz que diz perseguir corruptos? Que mal há em um Ministério Público que articulado com o judiciário desenvolvem operações? Que mal há em reluzirem pelos holofotes? Que mal há em um juiz ministerial e um promotor judicante? Sergio Moro e Deltan Dellagnoll são gêmeos circunstancialmente siameses e ligados pelo cérebro.

Explico isso pelo tamanho entrosamento dentro e fora da operação “lava jato”, ambos apoiam inexoravelmente as Dez medidas contra a corrupção e repudiam o melhoramento da lei que é contra qualquer Abuso de Autoridade (PL 280/2016).

Ministério Público e autoridades judicantes acabam mergulhando no clamor público, em que a seletividade de informações reforça o mote da “necessidade de se prender”, sem expressar o estágio embrionário do qual usufrui qualquer investigação, não se fala em excessos da autoridade que determina a prisão, ou daquele que acusa, ou daquele que investiga em tempos de “lava jato”.

Não poderia ter momento mais inoportuno para a exigência de amadurecimento e modernização da lei de abuso de autoridade. Onde já se viu pleitear zelo com as garantias do investigado em tempos em que não se volta o olhar aos excessos do Estado, onde pensam que apenas cegos disso poderemos ter eficiência contra uma criminalidade inescrupulosa e sem limite?

Os “mocinhos” não precisam seguir mais as regras do jogo, as regras do processo penal, pois segundo o TRF da 4ª Região decidiu, na data de 22 de setembro do ano corrente

“a operação “lava jato” não precisa seguir as regras dos processos comuns… para a Corte Especial do TRF-4, os processos “trazem problemas inéditos e exigem soluções inéditas”. (…) Os desembargadores da corte afirmam que as situações da “lava jato” escapam ao regramento genérico. Além disso, “uma ameaça permanente à continuidade das investigações” justificaria tratamento excepcional em normas como o sigilo das comunicações telefônicas.” (ler aqui) (ler aqui)

Com tantas declarações, com tanta seletividade, há uma predominância de quem são os mocinhos, de qual é o discurso deles, dificultando sobremaneira um olhar mais atento e desconfiado sobre problemas como o abuso de autoridade, como as necessárias críticas as Dez Medidas Contra a Corrupção.

Na realidade predominam imagens pouco plurais da realidade social o que dificulta a percepção plena do conflito: se da preferência a certos grupo sociais e seus modos de vida, ao tempo que não se  leva em conta a perspectiva de certos agentes e setores da sociedade nos processos de eleição de acontecimentos, produção e distribuição da notícia.(Osorio, 2005, p. 16: 34) (ler aqui)

Deixemos expresso tudo o que pesa contra o projeto de lei 280/2016 segundo a AMB. Inicialmente eles tem uma petição online inserta na data de 16 agosto de 2016 (ler aqui), outrossim, uma nota (a) técnica (ler aqui) emitida na data de 19 de agosto de 2016.  O apelativo recurso de apontarem o apoio de 73.504 pessoas e a famigerada alegação de que a lei é inoportuna diante do atual cenário deveria trazer algum constrangimento.

“Em primeiro lugar, cumpre referir que a discussão parlamentar a respeito deste tema encontrava-se travada desde o ano de 2009 e que neste momento, o país se encontra sob particularíssima circunstância, dada a investigação e os consectários de incontáveis casos de corrupção no âmbito público, reacende a percepção da sociedade de que se esta buscando refrear a atuação dos órgãos de persecução penal, contribuindo com a sensação de impunidade.” (Costa, 2016) (ler aqui)

A AMB aparentemente não se atenta sobre o fato de que a corrupção implica toda e qualquer estrutura de poder, principalmente no que diz respeito ao funcionário público, cuja necessária vinculação de seus atos a uma descrição legal não pode titubear pelo estado de coisas, ou pela excepcionalidade das circunstâncias.

Não pode existir a negativa de se avaliar os limites de uma autoridade por que “reacende a percepção da sociedade de que esta buscando refrear a atuação dos órgãos de persecução penal.” (assim esta descrito na nota técnica).

Sobre a nota (a) técnica da AMB, se resume a traçar os supostos defeitos do projeto: a) mácula ao princípio da legalidade em razão de tipos penais demasiados abertos (nos artigos 9º, 10, IV, 12, 13, 14, 15, 28, 30, 31), b)  normatividade suficiente no ordenamento jurídico brasileiro para prescindir do projeto de lei, c) nocividade de se permitir a Ação Penal Pública Condicionada a Representação e a Privada Subsidiária da Pública, d) a difícil interpretação da ilegalidade no uso das algemas sem necessidade, e) a inconstitucionalidade parcial pelo confronto do Projeto de Lei com a LOMAN e f) o fato de ter o apoio popular. Em relação ao último, oportunamente implicado em tempos de grande corrupção para quem sabe os ajudar a ascender a uma categoria de ente inumano sobre o qual não deverá se impor grande atenção ou revisão dos limites de atuação.

O desconforto com o projeto é tal que se a nota (a) técnica não der muito certo, vamos pedir bom senso aos parlamentares.

“seja como for, se essa análise geral convoca a rejeição do PLS 280/2016, ou quando menos, a suspensão dos debates para um momento em que a discussão deveras revelar-se oportuna.” (leia aqui).

“…as discussões sobre o tema encontrava-se travada desde 2009”

Ou seja, se não der para rejeitar o projeto, deixemos para “depois de amanhã, só depois de amanha” como diria Álvaro de Campos (ler aqui). Não é tão importante falarmos disso em um cenário com tanta corrupção, é?

Em resposta, basta o quadro comparativo disponibilizado pelo Senado Federal (leia aqui o quadro comparativo).

Então ótimo, o artigo 9 do projeto de lei seria de “incontornável inconstitucionalidade” (ler aqui)? É para levar a serio isso? Pois, se comparado com as alíneas descritas do artigo 4 da lei de Abuso de Autoridade temos um aperfeiçoamento do tipo.

Oras, segundo a AMB a expressão “ordenar a prisão fora das hipóteses legais” tanto se poderia incriminar um magistrado que tem sua decisão em prol da prisão preventiva alterada pelo tribunal, quanto poderia se incriminar a autoridade policial que prende em flagrante não homologado pela autoridade policial. O mesmo se aplicaria ao inciso II do artigo 9, pois, afirmam que se não concedida a liberdade provisória após a reforma da decisão pelo tribunal, o juiz correria o risco de ser punido.

E por que não poderia correr o risco de ser punido? Nos dois casos esta punição não ocorre de oficio, existe contraditório e ampla defesa, para assegurar que a autoridade em questão possa justificar a complexidade hermenêutica que o fez optar em não determinar a liberdade provisória. Oras, não pode ser o livre convencimento refúgio de decisões arbitrárias.

Há quem pense o mesmo, por exemplo, o douto Lenio Streck à quem exorto pela coerência, diz em um de seus artigos:

Viva o livre convencimento. Ele está aí. Serve para blindar qualquer decisão. Ah: será que a associação de classe dos juízes esqueceu que o novo Código de Processo Civil retirou a palavra “livre” (artigo 371)? Portanto, nem a nota oficial se baseou na legalidade. Bem… o que mais precisaria ser dito?  (ler aqui)

Pensemos na prisão de Eduardo Cunha e vejamos o que diz, Aury Lopes Jr.

O que se vê na decisão é a invocação de perigos “passados”, supostamente existentes enquanto Cunha era parlamentar e a partir dessa situação. A rigor, falta a ‘atualidade do perigo’, elemento fundante da natureza cautelar. Prisão preventiva é ‘situacional’ (provisionais), ou seja, tutelam uma situação fática presente, um risco atual. (ler aqui)

Pensemos em Paulo Roberto Barbosa Ramos, membro do MP que sem assombro diz ter combinado com a juíza:

Eu não disse que não fiz. Eu fiz. Eu so não quero antecipar… Já que vai ser decidido na sexta, até pelo acordo que fiz com a juíza (ler aqui)

O projeto é importante para todos, mas para nós advogados chamo atenção para o fato de que as situações ali abarcadas são do nosso cotidiano, teremos a proteção contra a exposição de um cliente investigado, coibindo a espetacularização referida no início desta coluna (artigo 12), haverá responsabilidade pelo constrangimento do investigado, que depõe diante da ameaça de ser preso, no artigo 13, responsabilidade pela não obediência aos prazos (artigo 10) que não implicara apenas em relaxamento da prisão, mas também na responsabilidade por abuso de autoridade e deste modo fará às vezes do sentimento público daquele que foi mantido, mesmo que por curto tempo, em uma cela sem qualquer necessidade.

À AMB por fantasiar que o projeto de lei possui tipos penais impraticáveis, somente afirmo que o direito não deixara que a indignação (de alguns juízes e promotores) degenere em ferocidade e a expiação jurídica se torne extermínio cruel. (Barbosa, Rui, p. 36) (ler aqui)

 

 

 

 

 

 

Autores: Anderson Brasil é pós-graduado MBA em Gestão do Sistema de Execução Penal, em Gestão Prisional e em Direito Penal. Atualmente é Coordenador Assistente e professor do Curso de Direito das Faculdades ALFA. Professor na Pós-graduação em Ciências Criminais da Faculdade Sul Americana.

 Thiago Siffermann é mestre em Direito e Relações Internacionais pela PUC GO, especialista em Direito Penal e Processual Penal, professor e advogado criminalista. É Secretário Geral da Comissão de Direito Criminal da OAB-GO.


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