Lei de Contrato de Seguro é fundamental para contratantes

Por Ernesto Tzirulnik

“Convém não confundir alhos, que são a metade prática da vida, com bugalhos, que são a parte ideológica e vã.”

Machado de Assis

Recentemente, escrevi um artigo sobre a tragédia de Santa Maria, publicado no Consultor Jurídico. Afirmei que “[n]a minha restrita seara, que é a do direito do seguro, ocorreu chamar a atenção para o fato de que, se tivéssemos seguros obrigatórios de verdade — não porcarias como o Seguro Obrigatório de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores (DPVAT), uma roubalheira oficializada, mas seguros que realmente garantissem os interesses dos cidadãos —, com coberturas indisputáveis, valores relevantes e regras de proteção, então aí poderíamos contar com um instrumento capaz de ajudar a reduzir os acidentes e, quando fossem merecidamente denominados ‘acidentes’, amenizar as perdas.”

O artigo chamou a atenção para a importância do primeiro projeto de lei de contrato de seguro da história brasileira, de autoria do então deputado José Eduardo Cardozo, hoje ministro da Justiça do Brasil. Caso esse projeto fosse aprovado e sancionada uma lei de seguro, comum nos demais países, as vítimas de acidentes como o ocorrido na boate Kiss contariam com uma proteção verdadeira e seus beneficiários receberiam indenizações menos aviltantes do que aquelas costumeiramente pagas por aqui. O projeto de lei, afinal, propõe um regime de grande eficácia e total transparência. Tem como paradigma algo que faria o desacreditado seguro obrigatório automobilístico morrer de vergonha, além de obrigar as autoridades administrativas a intervirem sempre a favor, jamais contra os segurados e beneficiários.

A Lei de Contrato de Seguro é fundamental para a defesa dos contratantes, para as vítimas e para a maior solidarização social. Apesar disso algumas seguradoras fogem do projeto de lei como o diabo da cruz. Tratam-se daquelas cujos “produtos” e práticas se vêem ameaçados. O projeto proíbe o desvio de finalidade dos prêmios arrecadados, os pagamentos de comissões indevidas, a fixação dos valores das indenizações em quantias irrisórias etc.

As que mais se notabilizam na tentativa de bloquear esse indiscutível benefício cidadão são justamente as seguradoras que orbitam em torno dos seguros obrigatórios e dos que envolvem serviços capciosos e nefastos como os seguros de crédito disfarçados de seguro de vida.

Muitos profissionais dependentes dos bons resultados que hoje são facilmente atingidos graças a certas práticas que a lei viria a tornar explícitas, coibir e disciplinar, saem gritando que o Brasil já tem boas leis, que cada seguro é um universo em si, que uma lei prejudicaria o funcionamento do sistema, enfim, despencam em defesa do status quo. Esses arautos do reacionarismo securitário às vezes conseguem reforços entre funcionários despercebidos do governo, ou com um olho voltado para futura ascensão no setor privado, o que é demais comum nos dias de hoje. Apóiam-se, também, naqueles que ignoram as competências constitucionais e acreditam ser possível a edição de normas jurídicas contratuais pela Superintendência de Seguros.

Alguns funcionários públicos de ocasião e certos executivos do setor segurador dizem que a Susep deve ser transformada numa agência — como se já não fosse —, para assumir a função normativa. A Susep e não o Congresso Nacional é que criaria as regras contratuais, uma “competência normativa” inconstitucional que só ousam defender aqueles que não se envergonham de afirmar que a produção de normas de direito estaria franqueada ao Conselho Nacional de Seguros Privados, conhecido títere.

Para ter uma ideia do desastre, basta lembrar que a razão pela qual o Judiciário é obrigado a entulhar-se com ações judiciais mesquinhas que só desservem a imagem do seguro brasileiro é justamente a normativa da Susep que encolhe os já minguados valores das indenizações do DPVAT, contra os termos fixados em lei.

Nesse cenário bizarro surgem os mais diversos tipos de mercenários para defender os muros de entulho que protegem as más práticas do mais republicano entre os instrumentos de luta da sociedade: a lei produzida pelo Poder Legislativo.

Não é a primeira vez que se critica o DPVAT. Nos anos 80 um importante segurador, envergonhado com os rumos adotados, abriu mão desse rentável seguro quando lhe proibiram moralizá-lo, ainda que um pouquinho, atribuindo mais dinheiro para as vítimas e beneficiários. Tempos depois, advogados preocupados com os rumos da sociedade brasileira recusaram patrocinar suas clientes seguradoras nas causas de DPVAT. Afinal, suas clientes se viam obrigadas a litigar em situações esdrúxulas com os beneficiários e vítimas, sob pena de não serem reembolsadas pelo consórcio gerenciado pela federação nacional das seguradoras.

Nesse contexto todo, volto ao artigo Chega de praças e homenagem às vítimas de acidentes. Ele fala da distância entre a solidarização e a demagogia. A demagogia com que os agentes que se dizem a serviço do governo brasileiro tratam as vítimas de acidentes e os sistemas de seguro, público e privado. O problema desse artigo, cuja sorte natural seria cair no esquecimento, é que ele resvalou o DPVAT.

O diretor jurídico da seguradora líder do DPVAT, combativo legado, revidou com o truculento Alhos e Bugalhos — DPVat é cobertor abrangente para vítimas de acidentes. Disparou um discurso pelego e ad ominem, que apaga toda a história de abuso que só há pouco e timidamente estão a reparar, acusando-me da “irresponsabilidade” de ter “espalhado” uma “calúnia” contra o DPVAT.

O articulista pró DPVAT provavelmente sabe que artigos não são “espalhados” por quem os escreve, mas seguem a natural fluência dos meios de comunicação de prestígio, como é o caso do Consultor Jurídico, que também publicou o seu. Não se duvida, também, que o diretor jurídico da seguradora líder do DPVAT saiba que a calúnia é um crime e que todo crime é comportamento tipificado pela lei.

Portanto, se a “roubalheira” é “oficializada” e não simplesmente “generalizada”, não é crime, embora devesse ser, para o bem da coletividade! Se essa roubalheira não é tipificada, não é crime. Se não é crime, não há calúnia.

Desse modo, quando o diretor da seguradora do DPVAT acusa-me de cometer calúnia, ele mostra que, embora muito versado no seguro DPVAT, esse canudinho “oficializado” que sugou por décadas o povo brasileiro, desconhece a própria definição de crime.

Além disso, o seguro DPVAT em si não pode ser vítima de crime porque não é pessoa. E nessa toada o diretor da seguradora do DPVAT comete, ele próprio, o crime de calúnia do qual sou vítima.

Como se vê, a ponto mesmo de cometer crime contra a honra, alguém ficou irritado com o protesto contra o despautério em torno do seguro obrigatório automobilístico, para o qual nossas autoridades deveriam voltar os olhos com mais acuidade ao invés de comodamente sancionarem leis para surrupiar o cobertor e descobrir os pés das vítimas.

Não era esse seguro o foco do artigo que molestou os interesses dos seguradores e das tantas instituições parasitárias dos proprietários de veículos e das vítimas dos acidentes de trânsito brasileiros.

Esse seguro sustentou, e por mais que tentem emendá-lo, ainda sustenta muitas bocas estranhas. Ainda não encontrou sua função social. Embora o diretor da seguradora do DPVAT diga que se trata de “uma das poucas armas de que o brasileiro, principalmente o mais humilde, dispõe”, esse seguro mal paga para enterrar a vítima fatal de acidente de tráfego. Para os mais humildes é arma com bala de festim! Contra eles, verdadeiro canhão!

Pese o risco para os que vivem do DPVAT, o seguro “fogo de artifício” bem que mereceria um artigo mais alentado. Um artigo que esmiuçasse o sem número de abusos cometidos na operação graças à falta de percepção, iniciativa ou mesmo seriedade de alguns.

Esse artigo poderia começar recordando que na manjedoura, quando da passagem do seguro de responsabilidade civil obrigatório que se chamava Recovat para o DPVAT, já aí fizeram nascer um seguro não só limitado a custear um mediano funeral, como também capado de eficácia indenizatória para danos patrimoniais. Seria grande serviço para o esclarecimento do público mostrar que foi no berço que criaram um seguro de responsabilidade civil dos proprietários de veículos para ser “tiro de festim”. Coisa de ninguém suscetível às mais licenciosas manipulações, entre as quais as evasões de receitas das quais a certa altura até SUSEP veio a se beneficiar a pretexto de incrementar a fiscalização, como se entre nós também os tributos não tivessem de ser criados por lei.

Mas, no desabafo justiceiro que é o artigo Alhos e Bugalhos — DPVat é cobertor abrangente para vítimas de acidentes o diretor jurídico da seguradora do DPVAT, que cuidou de trazer números, já poderia ter contribuído apresentando, ano a ano, quais os valores das receitas de prêmios e quais os valores de indenizações pagas às vítimas e beneficiários. Para que outros números? Afinal, basta isso para mostrar quem é e para que veio o DPVAT. Que ele não é para as vítimas do “segmento de baixa renda e carentes de informação”.

A propósito, apesar de o diretor da seguradora dizer que essas vítimas “jamais contribuíram com um centavo sequer para o fundo de seguro”, elas contribuem sim — e muito! Contribuem recebendo uma merreca pela própria invalidez e pela morte do familiar. É desse modo que, embora indiretamente, os “humildes” são duplamente vitimados com o prolongado desvio da arrecadação para agências de publicidade,comissões por intermediações inexistentes, prestadores de serviços, escolas de seguro para seguradores, e, o que é pior, para o próprio Estado.

Ao invés de mostrar os números que importam, ou mesmo de revelar com minúcia o queveio sendo feito ao longo dos anos do dinheiro arrecadado com o DPVAT, e quais as medidas que as gestões mais recentes vem tomando para reduzir o despropósito, o executivo da seguradora preferiu empurrar a informação de que metade da grana vai para fins diversos da finalidade do DPVAT, porém oficiais [Fundo Nacional de Saúde —FNS (45%) e Denatran (5%)]. É como o empregador dizendo que paga míseros salários porque a carga tributária é elevada!

Alhos para o Estado! Bugalhos para as vítimas?

Alguns artigos incômodos do PL 3.555/2004 (versão do PL 8.034/2010)

Artigo 127. As garantias dos seguros obrigatórios terão conteúdo e valor mínimos que permitam o cumprimento de sua função social, devendo o órgão regulador competente, a cada ano civil, rever o valor mínimo das garantias em favor dos interesses dos segurados e beneficiários.

Artigo 128. É vedada a utilização dos prêmios arrecadados com seguros obrigatórios para finalidades não previstas em lei.

Ernesto Tzirulnik é advogado em São Paulo e presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro.

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