Lei de locações apresenta aspectos processuais controvertidos

Autor: Hugo Crepaldi (*)

 

A Lei 8.245/91 (Lei de Locações), além de disciplinar as principais regras de direito material aplicáveis às locações de bens imóveis urbanos, traz também normas de direito processual, porém sem esgotar o tratamento das infindáveis possibilidades de questões processuais que podem surgir em meio à análise de uma relação locatícia sob litígio judicial.

Em razão disso, frequentemente são invocadas normas gerais de direito processual para solucionar lides locatícias, seja porque omissa a lei especial, seja porque a disciplina desta não é incompatível com outros diplomas legais.

Visando a contribuir para a melhor compatibilização das possíveis normas processuais aplicáveis, foram selecionados alguns temas de relevante indagação prática, na busca de apresentarmos substrato teórico para o encontro da melhor resolução do caso concreto.

Antecipação dos efeitos da tutela final de despejo: Lei de Locações ou Código de Processo Civil?

O artigo 59, §1º da Lei 8.425/91 prevê uma série de hipóteses previamente definidas pelo legislador em que cabíveis o despejo liminar.

Assim, uma vez caucionado pelo locador o valor equivalente a três meses de aluguel, é possível a concessão do despejo, sem a oitiva da parte contrária, caso haja, em linhas gerais, (i) descumprimento de mútuo acordo firmado entre as partes; (ii) rescisão do contrato de trabalho motivador da locação; (ii) fim do prazo da locação para temporada; (iv) morte do locador sem deixar sucessor legítimo; (v) permanência de sublocatário no imóvel após finda a locação; (vi) realização de reformas urgentes determinadas pelo poder público; (vii) inércia do locatário na apresentação de nova garantia, quando a substituição se faz necessária nos termos da lei (artigo 40 da Lei de Locações); (viii) término do prazo da locação não residencial; (ix) falta de pagamento de aluguel e acessórios da locação, estando o contrato desprovido de garantia.

Apesar do detalhamento e da amplitude das hipóteses, elas não são suficientes para disciplinar todos os casos em que a demora do processo com a permanência do locatário no imóvel implicaria sérios prejuízos ao locador.

Basta pensar, por exemplo, em um contrato de locação com parcelas de elevada monta, celebrado com a previsão de fiança, mas no qual a locatária tornou-se inadimplente desde o primeiro mês de aluguel. Diante dos sérios indícios de que não haverá quantias suficientes ao adimplemento mensal das obrigações assumidas, seria extremamente prejudicial manter a locatária no imóvel de modo que a dívida aumentasse exponencialmente a cada mês, mas, em razão da garantia prestada, não seria possível a concessão da liminar com base no inciso IX do artigo 59, §1º, da Lei de Locações.

Para essa e outras questões, firmou-se a doutrina e a jurisprudência no sentido de que aplicáveis, cumulativamente às hipóteses do artigo 59, §1º da Lei 8.245/91, as previsões gerais sobre antecipação de tutela, antes constantes do artigo 273 do CPC/73, e agora disciplinada no artigo 300 do novo CPC.

Nesse sentido, esclarece Gildo dos Santos que “nada impede o deferimento da tutela antecipada em despejo, desde que preenchidos os requisitos legais de sua concessão. (CPC, artigo 273, I-II). O que não se pode nem se deve é repelir, de modo absoluto, as tutelas nas ações locatícias, sem antes verificar se estão presentes os pressupostos para que seja concedida. Afinal, a lei não veda que se atenda a pedido de tutela antecipada em despejo. É claro que se mostra incabível essa providência, que confere verdadeira execução provisória, por exemplo, no caso de despejo por infração contratual ou legal que, em regra, depende de audiência de instrução, por vezes até precedida de prova pericial, e, em outras hipóteses em que, logo se vê, não é viável a concessão antecipada de efeitos da sentença de mérito. Daí não se pode concluir, porém, que a tutela antecipada não seja viável em todo e qualquer caso de despejo.”[1]

Sylvio Capanema de Souza compartilha do mesmo entendimento, afirmando que “A Lei do Inquilinato não afastou a incidência do Código de Processo Civil, aplicando-o, subsidiariamente, quando ela fosse omissa. Como se não bastasse, foi ela que desfraldou corajosamente a bandeira da efetividade do processo, na obsessiva preocupação de acelerar a solução dos conflitos. Não teria nenhuma lógica que a Lei do Inquilinato rejeitasse um sistema superveniente cujo objetivo precípuo é, justamente, abreviar o processo. Sempre entendemos que a Lei 8.425/91 recepciona a regra do artigo 273, tornando possível a antecipação da tutela de mérito, desde que presentes os seus pressupostos. Não é preciso ser um especialista em hermenêutica, para concluir que a regra do artigo 59 da Lei 8.245/91 não é incompatível com o artigo 273 do Código de Processo Civil e, muito ao contrário, elas se complementam, em benefício da efetividade do processo”.[2]

O Superior Tribunal de Justiça, da mesma maneira, já constatou que o rol do artigo 59, §1º, da Lei de Locações não é exauriente, e possui plena compatibilidade com o artigo 273 do Código de Processo Civil.[3]

Apesar de tal definição doutrinária e jurisprudencial ter se construído sob a égide do CPC/73, não há nenhum indício de que isso seja alterado pelo novo CPC. Pelo contrário, não só continuam sendo compatíveis as hipóteses de despejo liminar da Lei de Locações com as tutelas de urgência reguladas pelo novo CPC, mas também não se vislumbra impedimento para que seja aplicável também a tutela da evidência aos litígios nas relações locatícias.

Ação renovatória e cumprimento provisório de sentença
Questão de grande indagação reside em saber se é possível o cumprimento provisório das diferenças de aluguéis, ou seja: se, uma vez proferida a sentença reconhecendo o direito à renovação por um valor locatício diferente do que aquele relativo ao período anterior, pendente apelação sem a concessão do efeito suspensivo, seria possível iniciar o cumprimento provisório de sentença visando à cobrança das diferenças entre os valores pagos e os considerados devidos.

Parte da doutrina e jurisprudência entende que a cobrança da diferença só pode ser feita após o trânsito em julgado, sem possibilidade de cumprimento provisório. E isso costuma ser defendido com base no artigo 73 da Lei de Locações, que afirma que “renovada a locação, as diferenças dos aluguéis vencidos serão executadas nos próprios autos da ação e pagas de uma só vez.”

Ocorre que tal viés interpretativo acaba por fazer uma distinção que a própria lei não estabelece. Ao afirmar que a execução deve ser “de uma só vez” não há qualquer condicionante ao trânsito em julgado.

O artigo em referência veio apenas para facilitar o mecanismo de execução dessas diferenças, que passa a poder ser feita nos mesmos autos, bem como vedar o parcelamento da dívida em prestações mensais, impondo o pagamento de uma só vez.

A condicionante ao trânsito em julgado, portanto, inexiste, de modo que não há razão para se afastar a aplicação da disciplina geral sobre execuções provisórias, que passa a ser prevista nos artigos 520 e seguintes do novo CPC. Tal posicionamento é encontrado em julgados do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por exemplo TJ-SP – Agravo de Instrumento 2194588-85.2014.8.26.0000 (36ª Câmara de Direito Privado – Des. Rel. Sá Moreira de Oliveira – Julgamento: 27.11.2014) e TJ-SP – Agravo de Instrumento 2014762-36.2013.8.26.0000 (30ª Câmara de Direito Privado – Des. Rel. Andrade Neto – Julgamento: 27.11.2013).

É preciso ressaltar que uma condicionante deste tipo está prevista para as ações revisionais de aluguéis, conforme preceitua o artigo 69 da Lei de Locações (“Art. 69. O aluguel fixado na sentença retroage à citação, e as diferenças devidas durante a ação de revisão, descontados os alugueres provisórios satisfeitos, serão pagas corrigidas, exigíveis a partir do trânsito em julgado da decisão que fixar o novo aluguel”). Nesse caso, portanto, para que não haja interpretação contra legem, não será possível o cumprimento provisório de sentença.

Contudo, como bem preceitua Sylvio Capanema de Souza, “a cobrança das diferenças corrigidas, entretanto, só se admitirá a partir do trânsito em julgado da decisão que fixar o novo aluguel, o que não tem muita lógica, já que o recurso contra a sentença é recebido só no efeito suspensivo”[4]. Assim, delege data, que haja alteração desse dispositivo, porque ele não mais se coaduna com as normas processuais em vigor, e sem que se encontre qualquer justificativa para que as relações locatícias, em meio a uma demanda revisional ou renovatória, recebam tratamento diverso, principalmente quando ela mesma retira como regra a suspensão como efeito do recurso de apelação (artigo 58, inciso V, da Lei de Locações).

Ação renovatória e comprovação do adimplemento do contrato de locação
Um dos requisitos para que seja configurado o direito à renovação da locação é a comprovação do exato cumprimento do contrato. Diante do fato de essa exigência estar prevista no artigo 71 da Lei de Locações, artigo que elenca os requisitos da petição inicial, muitos entendem que, sem a comprovação de plano do cumprimento do contrato de locação, o autor da renovatória seria carecedor do interesse de agir — interpretação que, de fato, é a que se depreende de uma análise literal da lei.

Não podemos nos olvidar, porém, de que o exame do interesse de agir éprospectivo, com base nas asserções formuladas pelo autor[5]. Até porque, sem a manifestação da parte contrária, não se saberá se o que o autor trouxe a título de “prova do exato cumprimento do contrato em curso” é suficiente ao preenchimento do requisito para fins de direito à renovação.

Diante desse cenário, a melhor interpretação indica que haja a exigência dealegação do cumprimento integral do contrato por parte do autor, juntamente com o acervo documental necessário a embasar essa alegação, o que será suficiente para entender preenchidos os requisitos de admissibilidade da petição inicial.

Porém, a efetiva valoração da prova documental e da realidade de que houve ou não cumprimento do contrato é matéria de mérito. Em termos práticos, isso significa dizer que a alegação do réu no sentido de que houve inadimplemento contratual pelo autor não enseja a extinção sem resolução do mérito, mas sim, se confirmada, julgamento de improcedência, como indica parte da jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo (conforme, por exemplo, TJ-SP – Agravo de Instrumento n. 2087945-69.2015.8.26.0000 – 26ª Câmara de Direito Privado – Des. Rel. Bonilha Filho – Julgamento: 25.06.2015; TJ-SP – Agravo de Instrumento n. 2164034-36.2015.8.26.0000 – 27ª Câmara de Direito Privado – Des. Rel. Azuma Nishi – Julgamento: 15.09.2015; TJ-SP – Agravo de Instrumento n. 0081262-89.2011.8.26.0000 – 31ª Câmara de Direito Privado – Des. Rel. Adilson de Araujo – Julgamento: 21.06.2011).

Vale ressaltar que tal interpretação melhor se coaduna com as linhas valorativas adotadas pelo novo CPC, notadamente com o princípio da primazia da decisão de mérito, expresso no artigo 4º do novo CPC e corroborado por diversos artigos ao longo do Código, por meio do qual “deve o órgão julgador priorizar a decisão de mérito, tê-la como objetivo e fazer o possível para que ocorra”.

 

 

Autor: Hugo Crepaldi é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.


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