Autores: Guilherme Cardoso Leite e Leonardo Pimentel Bueno (*)
As análises até agora empreendidas acerca do Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT), estabelecido nos termos da Lei 13.254/2016, não têm enfrentado um aspecto que se afigura flagrante e desarrazoadamente discriminatório. Trata-se da disposição normativa inscrita no artigo 11 da referida lei, que veda aos detentores de cargos públicos — aqui tratados como “pessoas politicamente expostas” — e seus familiares a fruição dos benefícios daquele benefício de regularização de patrimônio.
O RERCT foi concebido com o objetivo de incrementar a arrecadação do atualmente combalido Governo Federal, com foco à regularização apenas de recursos que tenham comprovada origem lícita, conforme se extrai do artigo 1º, caput e do § 2º, da Lei 13.254/2016. Daí dizer que a comprovação da licitude dos recursos e do patrimônio que se pretende regularmente internalizados é condição indispensável à fruição do regime estabelecido pelo RERCT.
Como se vê, a única condição imposta pela Lei 13.254/2016 ao patrimônio mantido no exterior para usufruir do RERCT é a origem lícita dos recursos, bens ou direitos, que deverá ser suficientemente comprovada pelo contribuinte. Não se faz necessária, pois, de acordo com a lei, qualquer comprovação de que tais recursos sejam ou não decorrentes de período em que o sujeito tenha ocupado cargo público. Afasta-se, assim, a legitimidade da distinção relacionada à ocupação profissional das pessoas politicamente expostas ou à condição de ser familiar.
A circunstância de o sujeito ocupar cargos públicos, ou de possuir grau de parentesco com ele, não pressupõe e tampouco acarreta, por si só, a ilicitude dos recursos, bens ou direitos mantidos no exterior a ponto de não permitir a fruição dos benefícios previstos no RERCT. A finalidade da norma, repita-se, é permitir a regularização de recursos, bens ou direitos de origem lícita, e qualquer ativo que não se enquadre neste perfil estará sujeito às sanções penais e administrativas, quer o contribuinte ocupe cargo público ou não. Admitir o contrário implicará na presunção absoluta de ilicitude de todo e qualquer patrimônio adquirido pela pessoa politicamente exposta, o que nos parece demasiado equivocado.
Por isso, a exclusão das pessoas politicamente expostas que possuem recursos, bens ou direitos lícitos no exterior da fruição dos benefícios do RERCT — incluindo aí os seus familiares — viola diretrizes basilares da ordem constitucional e tributária nacional, como é o caso dos princípios da isonomia e da vedação à discriminação em razão da ocupação profissional inseridos nos artigos 5º, caput, e 150, II, da Constituição brasileira de 1988. Ousamos afirmar, pois, que o artigo 11 da Lei 13.254/2016 está eivado de inconstitucionalidade.
Não se pode perder de vista que a restrição imposta pelo mencionado artigo 11 não está a discriminar indevidamente apenas os contribuintes que ocupam cargos públicos, mas também os servidores públicos em cargos de direção. Veja-se: “Os efeitos desta Lei não serão aplicados aos detentores de cargos, empregos e funções públicas de direção ou eletivas (…)“. Cite-se, por exemplo, a contraditória situação em que o diretor de uma universidade pública não pode usufruir do RERCT, ao passo que um professor da mesma instituição poderá aderir ao regime especial, não obstante ambos possuam patrimônio de origem lícita mantidos no exterior. Trata-se, portanto, de discriminação inadequada, inapropriada e ilegítima.
O objetivo político invocado nesses casos está, invariavelmente, ligado a uma necessária contenção de reações e clamores mais imediatamente aflorados na sociedade. As manifestações populares mais recentes reafirmam esse anseio da sociedade por clareza e responsabilidade na prática dos atos públicos, o que supostamente legitimaria a restrição contida no artigo 11 da Lei 13.254/2016. Todavia, as tendências “moralizantes” da atuação e do discurso políticos não podem prescindir da observância a preceitos que estão encartados na Constituição brasileira de 1988, sob pena de subverter as regras postas e de limitar a fruição de direitos subjetivos.
As justificativas fincadas na “moralização” do discurso político, não raro, buscam uma imediata “prestação de contas” à sociedade. Contudo — e isso não pode ser desconsiderado —, excluem deliberadamente outros direitos que deveriam ser garantidos pelo Estado. No caso específico do RERCT, as pessoas que possuem algum grau de exposição pública ou política — detentores de cargos, empregos e funções públicas de direção ou eletivas — são igualmente cidadãos, ainda que a sua atuação deva ser qualificadamente mais transparente e proba que a dos demais.
O RERCT insere-se em um contexto de política pública econômico-tributária que veda o tratamento anti-isonômico entre os contribuintes. A este propósito, são dignas de nota as observações apontadas pelo Senador Marcelo Crivela na Emenda 17[1] ao PLC 186/2015: “Os benefícios desta proposição – tributários e penais – não devem ter destinatário específico, tampouco indivíduos excluídos aprioristicamente. A quebra da isonomia (art. 5º, caput, da CF) somente deverá ocorrer se houver uma razão lógica para a distinção. É dizer, deverá existir um nexo lógico entre o fator de discrímen e a própria discriminação de regime jurídico em função deles estabelecido, caso contrário, a desigualação é inconstitucional. E não há esse nexo entre a condição de ocupante de função pública e a impossibilidade de submeter eventuais bens (que podem ter sido amealhados antes do início da vida pública) ao regime de regularização proposto. No plano tributário, ademais, o art. 150, II, da CF, veda a instituição de tratamento desigual entre contribuintes, sendo ‘proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida’.”
A iniciativa supostamente “moralizante” do artigo 11 da Lei 13.254/2016 acaba por criar uma segregação social a partir da atuação profissional, a situar de um lado estão os cidadãos que exercem cargos públicos e seus familiares e de outro lado estão os cidadãos ditos “comuns” que não suportariam limitações aos seus direitos e garantias constitucionais. Ora, tal segregação deveria estar amparada em uma justificativa razoável para se legitimar o tratamento excepcional, o que não nos parece haver no contexto ora analisado. Fora a ausência de justificação ao tratamento anti-isonômico, em especial na seara tributária, discriminações como tais são inaceitáveis, máxime em razão da finalidade da norma (arrecadação por meio da regularização de patrimônio de origem lícita mantido no exterior).
É importante observar, ainda, a impropriedade do artigo 11 da Lei 13.254/2016[2] no que se refere ao critério temporal eleito para exclusão das pessoas politicamente expostas e seus familiares do RERCT. Veja-se, a propósito, que o artigo 3º, caput, da Lei 13.254/2016 prevê que o RERCT aplica-se a todos os recursos, bens e direitos de origem lícita de residentes ou domiciliados no Brasil até 31 de dezembro de 2014; por sua vez, o artigo 4º do mesmo diploma preceitua que, para adesão ao RERCT, o contribuinte deverá apresentar à Receita Federal do Brasil declaração única contendo a descrição pormenorizada dos recursos de natureza do titular em 31 de dezembro de 2014. Vejamos:
Art. 3º O RERCT aplica-se a todos os recursos, bens ou direitos de origem lícita de residentes ou domiciliados no País até 31 de dezembro de 2014, incluindo movimentações anteriormente existentes, remetidos ou mantidos no exterior, bem como aos que tenham sido transferidos para o País, em qualquer caso, e que não tenham sido declarados ou tenham sido declarados com omissão ou incorreção em relação a dados essenciais, como:
(…)
Art. 4º Para adesão ao RERCT, a pessoa física ou jurídica deverá apresentar à Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB) e, em cópia para fins de registro, ao Banco Central do Brasil declaração única de regularização específica contendo a descrição pormenorizada dos recursos, bens e direitos de qualquer natureza de que seja titular em 31 de dezembro de 2014 a serem regularizados, com o respectivo valor em real, ou, no caso de inexistência de saldo ou título de propriedade em 31 de dezembro de 2014, a descrição das condutas praticadas pelo declarante que se enquadrem nos crimes previstos no § 1o do art. 5o desta Lei e dos respectivos bens e recursos que possuiu”. (grifo nosso)
Tais normas demonstram um quadro de inconsistência normativa, pois o artigo 11 afirmou que o RERCT não será aplicado às pessoas politicamente expostas em 14 de janeiro de 2016, data da publicação da Lei 13.254/2016. Ou seja, mesmo na hipótese do contribuinte possuir recursos, bens ou direitos de origem lícita anteriormente à 31 de dezembro de 2014, aqueles contribuintes não usufruirão dos benefícios do RERCT caso tenham sido nomeados para cargos, empregos e funções públicas a partir de 14 de janeiro de 2016.
É dizer, não obstante a uma presunção absoluta e generalizada de ilicitude dos recursos adquiridos pelas pessoas politicamente expostas, o referido artigo 11 busca retroagir o comando normativo editado, o que viola os já mencionados princípios da irretroatividade da lei tributária e da presunção de inocência. A justificativa meramente “moralizante”, portanto, é insuficiente e desarrazoada no que se refere a exclusão sumária das pessoas politicamente expostas do RERCT.
Logo, a preocupação que se deve ter não é com o tom do discurso político, geralmente populista e casuísta, mas com a percepção da fruição concreta de direitos subjetivos constitucionalmente assegurados. O custo dessa não observância é a gradual ruína das estruturas do Estado Democrático de Direito.
Em casos que tais, em que são verificadas distinções adequadamente injustificadas e essencialmente desarrazoadas, é imprescindível a atuação do Poder Judiciário, de modo a superar inconsistências decorrentes do processo legislativo e a corrigir os rigores e injustiças da lei.
Autores: Guilherme Cardoso Leite é advogado, sócio do escritório Machado, Leite e Bueno Advogados, mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB) e especialista em Direito Tributário pelo IBET.
é sócio do escritório Machado, Leite e Bueno Advogados, mestre (LL.M.) em Direito Tributário Internacional pela Universidade de Leiden, Holanda.
Revista Consultor Jurídico, 15 de abril de 2016, 8h39