Lei de regularização fundiária precisa de revisão

Autor:  Melhim Chalhub (*)

 

Ao instituir um inovador procedimento extrajudicial de aquisição originária da propriedade mediante legitimação de posse, em substituição à ação de usucapião, a Lei 11.977/2009 consagra-se como marco institucional da realização dos direitos sociais dos moradores de assentamentos urbanos informais.

Não obstante, algumas das suas disposições comprometem a efetividade da função econômica e social para a qual foi concebida, ao distorcer os efeitos do registro da propriedade e atribuir à iniciativa individual de cada possuidor o registro dos títulos de legitimação de posse.

Identificadas essas e outras deficiências, o Ministério das Cidades constituiu Grupo de Trabalho para debater propostas de alteração legislativa, do mesmo modo que o Instituto de Terras do Estado do Rio de Janeiro (Iterj) vem se dedicando ao reexame dessas normas em busca de efetividade das políticas de integração dos moradores dessas comunidades ao ambiente urbano.

Com efeito, a Lei 11.977/2009 tem por escopo a inclusão social e para consecução dessa finalidade elegeu a legitimação de posse das moradias dos assentamentos informais, como forma alternativa à ação de usucapião, na forma de um procedimento extrajudicial capaz de simplificar e dar celeridade à aquisição originária da propriedade nessas comunidades.

Essa forma de aquisição originária da propriedade não constitui inovação, registrando-se no direito positivo brasileiro os precedentes da legitimação de posse regulada pelas leis 601/1850, 4.504/1964 e 9.785/1999, entre outras. Como observa Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “embora se fale em legitimação de posse, o instituto nasceu e se desenvolveu como forma de transferência de domínio. Por esse instituto, transforma-se uma situação de fato — a posse — em situação de direito — o domínio”[1].

Assim, o título extrajudicial de legitimação de posse, a sentença proferida em ação de usucapião e os atos correspondentes à usucapião extrajudicial regulamentada pelo art. 216-A da Lei 6.015/1973, com a redação dada pelo artigo 1.071 do novo Código de Processo Civil[2], todos eles consubstanciam declaração de reconhecimento do domínio já previamente exercido pelo possuidor legitimado e produzem, igualmente, os mesmos efeitos.

Portanto, outorgados quaisquer desses títulos, nada mais é necessário para considerar-se adquirida a propriedade pelo possuidor que tiver preenchido os requisitos da aquisição pelo uso prolongado do imóvel, sem oposição.

É com base nesses fundamentos que o art. 47, VII, alínea “a”, da Lei 11.977/2009 confere ao poder público o poder de outorgar título de legitimação de posse ao possuidor que tenha preenchido os requisitos da usucapião — posse de área urbana até 250 m² por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família (Constituição Federal, art. 183) [3] —, considerando-se esse possuidor, desde logo, investido no direito de propriedade do imóvel.

Sucede que, ao dispor do registro desse título, o artigo 60 da mesma Lei 11.977/2009, paradoxalmente, retira do possuidor o direito que lhe fora outorgado nos termos do artigo 47, VII, “a”, ao dispor que a conversão da posse em propriedade somente haverá de se operar após o decurso de um novo interregno de 5 anos, além dos 5 anos de domínio reconhecido anteriormente pelo título de legitimação de posse[4].

Trata-se de flagrante contradição em termos, pois, enquanto o título de legitimação de que trata o artigo 47, VII, “a”, consubstancia a declaração de reconhecimento do domínio já exercido anteriormente pelo possuidor, o artigo 60 nega o efeito desse título, fazendo retroceder a posição do possuidor àquela em que ele se encontrava antes da outorga do título.

Essa grave distorção contrapõe-se ao próprio escopo da lei e deve ser corrigida, de modo a dar coerência ao art. 60, em face do artigo 183 da Constituição Federal e do artigo 47, VII, “a”[5].

No plano procedimental, é igualmente relevante a necessidade de adequação da diligência de registro dos títulos de legitimação de posse, pois é esse registro que confere ao possuidor legitimado o poder jurídico (i) de exigir erga omnes o cumprimento do dever geral de abstenção e (ii) de dispor do domínio, tal como previsto no artigo 1.228 do Código Civil.

A lei atribui essa diligência à iniciativa individual de cada possuidor, e a dispersão desse procedimento constitui grave obstáculo à efetividade dos possuidores, como comprovam dados estatísticos levantados nos últimos cinco anos pelos Registros de Imóveis do Estado de São Paulo, segundo os quais não chegaram a ser registrados nem 12% dos títulos de legitimação de posse das unidades imobiliárias integrantes dos assentamentos regularizados entre 2012 e 2016[6].

O problema pode ser solucionado mediante concentração de todos os atos de registro, mediante efetivação do registro dos títulos de legitimação em conjunto com os de regularização urbanística, de modo que, efetivado o registro desta, promova-se, na sequência, a abertura as matrículas dos imóveis do assentamento, em nome de cada um dos possuidores legitimados, de forma a que fiquem desde logo investidos no feixe de direitos subjetivos definidos no artigo 1.228 do Código Civil.

Trata-se de tutela especial compatível com a “ordem urbanística popular”, que, como observa Carlos Ari Sundfeld, contempla “a transferência dos grupos marginalizados para dentro do mundo jus-urbanístico (pela criação de novos instrumentos para o acesso à propriedade formal, bem como de medidas para a regularização fundiária urbana e para a regularização das urbanizações clandestinas)”[7].

Dada a densidade dessa “ordem urbanística popular”, o registro do título de legitimação de posse é situação merecedora de tutela especial, de modo que, sendo parte integrante do procedimento de regularização fundiária de interesse social, é de todo recomendável que o registro desses atos seja feito em conjunto, por iniciativa do poder público, assegurando-se, assim, a efetividade da aquisição da propriedade independente de diligência dos possuidores.

Essas e outras observações colhidas nos sete anos de aplicação prática da Lei 11.977/2009 recomendam a revisão desse texto legislativo visando adequá-lo aos princípios e diretrizes de política urbana estabelecidas pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Cidade, de modo a assegurar a efetiva investidura dos possuidores na propriedade de suas moradias em ato imediatamente subsequente ao registro da regularização fundiária.

 

 

Fonte: www.conjur.com.br


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