Autores: Henrique Hoffmann Monteiro de Castro e Adriano Sousa Costa (*)
Foi publicada no dia 07/10/2016 a Lei 13.344/16, conhecida como Lei de Tráfico de Pessoas. Com vacatio legis de 45 dias, entra em vigor dia 21/11/2016.
Incrementou[1] a luta contra o tráfico de pessoas, estabelecendo mecanismos de prevenção e repressão, e criando novo crime no artigo 149-A do CP. Além disso, a referida Lei promoveu alterações no Código de Processo Penal, fortalecendo a investigação criminal por meio da ampliação do poder requisitório do delegado de polícia. Foram acrescidos dois dispositivos no CPP: artigos 13-A e 13-B.
O artigo 13-A do CPP, menos complexo, trata da requisição de dados cadastrais (informações atinentes à própria identidade, como nome, data de nascimento, RG, CPF, filiação e endereço). Permite que, em determinados crimes que envolvem restrição da liberdade da vítima [2], o membro do Ministério Público ou o delegado de polícia requisite, de quaisquer órgãos do poder público ou de empresas da iniciativa privada, informações cadastrais da vítima ou de suspeitos. A ordem deve ser atendida em 24 horas, e pode se referir a dados não apenas do investigado, mas também da vítima.
Vale lembrar que a obtenção direta de dados cadastrais já possuía previsão na legislação, seja vinculada a delitos de lavagem de capitais ou crime organizado (delegado de polícia e membro do MP), ou sem restrição a delitos específicos (delegado de polícia):
A requisição de dados cadastrais pela Polícia Judiciária ou Ministério Público no âmbito da persecução penal possui previsão também na Lei do Crime Organizado (artigo 15 da Lei 12.850/13) e na Lei de Lavagem de Capitais (artigo 17-A da Lei 9.613/98), que se referem expressamente ao investigado, e não estipulam prazo para cumprimento.
Especificamente quanto ao delegado de polícia, cabe mencionar também o chamado poder geral de requisição constante na Lei de Investigação Criminal (artigo 2º, §2º da Lei 12.830/13), válido para quaisquer delitos, que apesar de não definir prazo, não limita a requisição ao suspeito.[3]
De outro lado, o artigo 13-B do CPP é mais intrincado e dispõe sobre o acesso direto pelo delegado de polícia ou Ministério Público, ou indireto após autorização judicial, de dados telefônicos ou telemáticos de localização. Estabelece que, na investigação de crime de tráfico de pessoas, o membro do Ministério Público ou o delegado de polícia pode “requisitar, mediante autorização judicial”,[4] às empresas prestadoras de serviço de telecomunicações e/ou telemática que disponibilizem imediatamente os meios técnicos adequados — como sinais, informações e outros — que permitam a localização da vítima ou dos suspeitos do delito em curso. Como a própria norma explica (§1º do artigo 13-B), sinal significa posicionamento da estação de cobertura, setorização e intensidade de radiofrequência (as chamadas ERBs — estações radio base).
Importante sublinhar que a comunicação dos dados (artigo 5º, XII da CF) possui tratamento diferente dos dados em si (artigo 5º, X da CF).[5] No caso da comunicação, a Constituição estabelece cláusula absoluta de jurisdição, exigindo ordem judicial para sua captação. Já quanto aos dados, em princípio, submetem-se a cláusula apenas relativa de jurisdição, ficando o Judiciário não com a primeira palavra, mas com a última, podendo o Estado-Investigação ou Estado-Acusação acessar diretamente certas informações. O que não impede que a legislação infraconstitucional demande chancela judicial prévia para determinados dados.[6]
Nesse sentido, o legislador fez questão de diferenciar, na norma explicativa do §2º, I do artigo 13-B, dados, de um lado, e comunicação de dados, de outro, ao dizer que o sinal “não permitirá acesso ao conteúdo da comunicação de qualquer natureza, que dependerá de autorização judicial”.
Destarte, quanto aos dados telefônicos e telemáticos de localização, em regra podem ser acessados pela autoridade investigativa ou pela parte acusadora sem prévia ordem judicial. Por isso, é lícita a requisição junto à operadora de telefonia, pelo delegado de polícia, de informações pretéritas das ERBs utilizadas pelo investigado.[7]
Todavia, para a obtenção de tais dados de localização em tempo real, o legislador, que poderia ter deixado o acesso na esfera exclusiva do poder requisitório da autoridade de Polícia Judiciária, passou a exigir autorização judicial. Procurou adotar um meio termo, relativizando a demanda por chancela do Judiciário se houver inércia de algumas horas, tendo em vista a urgência de investigação envolvendo vítima traficada. É o que nominamos de cautela subsidiária por inércia.
Nesse passo, segundo o §4º do artigo 13-B, não havendo manifestação judicial no prazo de 12 horas, a autoridade competente requisitará às empresas prestadoras de serviço de telecomunicações e/ou telemática que disponibilizem imediatamente os dados que permitam a localização da vítima ou dos suspeitos do delito em curso. Trata-se de cláusula de reserva de jurisdição temporária, [8] pois, num primeiro momento, a medida é postulada em juízo, e, somente em caso de não apreciação judicial com celeridade, a obtenção da informação passa para a esfera de requisição, com determinação direta à operadora de telefonia.
Interessante notar que a requisição do delegado, após omissão do juiz, independe de parecer do Ministério Público. A lei não exigiu essa formalidade, considerando que a presidência do inquérito policial é do delegado de polícia, [9] bem como é inconteste a necessidade de celeridade na investigação de crime dessa natureza.[10] Além do mais, a lei postou o delegado de polícia e o membro do Parquet em idêntico patamar requisitório, o que faz desarrazoada qualquer perda de tempo em busca de parecer opinativo de um em relação ao outro.
Destaca-se que, caso a requisição ocorra após omissão judicial, deve haver imediata comunicação ao juiz. Deve ser feita pela própria operadora de telefonia, responsável pela concretização da medida, garantindo maior controle sobre a diligência.
Outrossim, o fato de a lei autorizar a autoridade de Polícia Judiciária a adotar medidas acautelatórias, em atuação complementar ao Judiciário, decorre da própria reminiscência histórica da carreira. Num passado não tão remoto, a figura do delegado de polícia exercia muitas funções judiciais por delegação. Tudo começou com a criação da Intendência Geral de Polícia em 1808. O Intendente-Geral era um desembargador de justiça com status de ministro de Estado, o qual podia designar pessoas para exercer a jurisdição, por delegação (daí a nomenclatura delegado). A partir da independência em 1822 e o advento do Código Criminal de 1832, sobreveio a figura do Chefe de Polícia da Corte, nomeado entre desembargadores e juízes de direito, cabendo chefiar os juízes de paz e delegados de polícia. Os delegados de polícia realizavam, além da investigação, a instrução criminal e juízo preliminar. Posteriormente, com a Lei 2.033/1871 e o respectivo Decreto 4.824/1871, houve a definitiva separação entre as funções policiais e judiciais, muito embora as funções tenham continuado umbilicalmente conectadas. Essa íntima conexão entre as carreiras é evidenciada inclusive por normas internacionais (artigo 7.5. da Convenção Americana de Direitos Humanos, princípios 4, 11 e 37 da Resolução 43/173 da ONU e artigo 10.2 da Resolução 40/33 da ONU e sua interpretação pela Resolução 45/112 da ONU).
O caminho estabelecido pela lei (postulação em juízo num primeiro momento, e requisição direta em caso de inércia judicial) não é estranho aos pilares da nossa ordem jurídica. Afinal, se a lei poderia ter simplesmente dispensado a autorização judicial, dada a ausência de cláusula constitucional de jurisdição, pode adotar solução intermediária. Demais disso, não é a primeira vez que o legislador cria mecanismos para suprir a omissão estatal, bastando lembrar da ação penal privada subsidiária da pública (artigo 29 do CPP e artigo 5°, LIX da CF); trata-se de mais uma ferramenta de controle de efetividade dos órgãos e Poderes (checks and balances).
Ademais, numa equilibrada ponderação de direitos fundamentais, a intimidade do suspeito não pode preponderar a qualquer custo sobre a vida do ser humano traficado, bem jurídico de especial envergadura.[11] É preciso proteger suficientemente o ofendido contra ações criminosas de grande lesividade, em respeito ao princípio da proporcionalidade, em sua vertente de vedação da proteção insuficiente.[12] Cuida-se de mecanismo não apenas de combate ao perecimento de prova (perda de uma chance probatória), mas precipuamente de salvaguarda da existência humana.
De mais a mais, é perfeitamente possível autorizar o delegado de polícia a exercer funções judiciais em situações pontuais. O ordenamento jurídico já concede essa permissão na liberdade provisória com fiança (artigo 322 do CPP), prisão em flagrante (artigo 304 do CPP), condução coercitiva (artigos 201, §1º, 218, 260, 278 e 319 do CPP),[13] ação controlada (artigo 8º, §1º da Lei 12.850/13, artigo 16 da Lei 13.260/16 e artigo 9º da Lei 13.344/16), dentre outras hipóteses.
Outra inovação, na investigação de tráfico de pessoas com postulação ou requisição de dados de localização, é a definição de prazo (72 horas contadas do registro da ocorrência policial) para a instauração de inquérito policial, segundo consta no §3º do artigo 13-B.
No que concerne aos prazos de fornecimento dos dados de localização, as informações devem ser entregues pela prestadora de telefonia móvel por período não superior a 30 dias, renovável por uma única vez por igual período, exigindo-se necessariamente ordem judicial para períodos superiores a esse lapso temporal (§2º do artigo 13-B). Não parece adequada a interpretação isolada desse dispositivo no sentido de que para prazos de até 60 dias não seria necessária ordem judicial. A leitura deve ser feita de forma sistemática com o caput e o §4º do mesmo artigo, o que significa que nem sempre a obtenção de dados de localização em prazos inferiores a 60 dias dispensa ordem judicial, mas apenas que “se o juiz não decidir em 12 horas, a autoridade pode requisitar diretamente a informação”, dentro desse limite de 30 dias.[14] A essa conclusão se chega não apenas pelas regras de hermenêutica, mas também pela consulta às discussões travadas pelo Congresso Nacional na edição da Lei.
Com relação à possibilidade de sucessivas renovações da medida, a resposta é positiva, desde que observados o princípio da razoabilidade e a necessidade da medida para a investigação, valendo o mesmo raciocínio quanto à prorrogação da interceptação telefônica (artigo 5º da lei 9.296/96).[15]
Por fim, chama atenção a tendência do legislador em utilizar o termo “delegado de polícia” ao se referir à autoridade investigativa (assim como fizeram as Leis 12.683/12, 12.830/13, 12.850/13, Lei 12.961/14, 13.260/16 e 13.344/16). Com isso são frustradas as tentativas de dribles hermenêuticos que procuram alargar a fórceps o conceito de autoridade policial para abranger agentes da autoridade pertencentes a carreiras não jurídicas, tais como oficiais da PM.[16]
Conclui-se que a redação da norma certamente poderia ter sido melhor, mas nem por isso se deve chegar ao extremo de defender a sua inconstitucionalidade. Portanto, a Lei 13.344/16, além de reprimir o tráfico de pessoas, reforçou o poder requisitório do delegado de polícia, preocupando-se em municia-lo dos meios necessários para coletar provas de forma célere e eficaz em benefício da coletividade.[17]
Autores: Henrique Hoffmann Monteiro de Castro é delegado de Polícia Civil do Paraná, mestrando em Direito pela Uenp e especialista em Direito Penal e Processual Penal pela UGF. Professor da Escola da Magistratura do Paraná, da Escola do Ministério Público do Paraná, da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná. Professor Coordenador do Curso CEI e da Pós-Graduação em Ciências Criminais da Faipe
Adriano Sousa Costa é delegado de polícia de Goiás, mestrando em Ciências Políticas pela UFG, professor titular da Escola Superior da Polícia Civil do Estado de Goiás, professor convidado do Ministério da Justiça (SENASP) e da rede LFG, professor da Especialização na PUC/GO, da FASAM e da FACNOPAR, professor universitário na UNIP/GO e UniAnhanguera/GO, e membro da Academia Goiana de Direito.