Autores: Hamilton Dias de Souza e Thúlio José Michilini Muniz de Carvalho (*)
Após anos de demorada tramitação perante o Congresso Nacional (CN), deu-se a publicação, quase que a toque de caixa, da Lei 13.188/15, que regula o direito de resposta ou à devida retificação da pessoa ofendida, previsto no artigo 5º, V, da Constituição Federal (CF), no que tange a “matéria divulgada, publicada ou transmitida por veículo de comunicação social”.
A questão é importantíssima, estando tensionados valores constitucionalmente consagrados, como, de um lado, a liberdade de pensamento (CF/88, artigo 5º, IV) e a liberdade de imprensa (CF/88, artigo 220), e, de outro, os direitos fundamentais de personalidade (vida privada, imagem, honra etc.) resguardados pelo citado artigo 5º, V, da CF/88, devendo, portanto, ser encarada com todos os cuidados que o tema requer, diante das consequências possivelmente nefastas que uma regulaçãotemerária a respeito poderá acarretar.
Ao debruçar-se sobre o papel institucional da Imprensa, o Supremo Tribunal Federal, em julgado histórico, afirmou de modo enfático que “não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura” (ADPF 130). Por isso, as garantias inerentes “à liberdade de imprensa… se qualificam como sobredireitos”, de modo que, “antes de tudo prevalecem as relações de imprensa como superiores bens jurídicos e natural forma de controle social sobre o Estado”, remanescendo as demais “como eventual responsabilização ou consequência do pleno gozo das primeiras”, aí incluído expressamente o direito de resposta (CF/88, artigo 5º, V).
Diante dessa difícil relação entre a liberdade de imprensa como corolário da Democracia e do ideal republicano e os direitos de personalidade como corolário da dignidade individual, eventual lei que se dispusesse a enfrentá-la e discipliná-la de modo minimamente satisfatório deveria fazê-lo de modo compatível com a cláusula do devido processo legal, a ocupar posição de central importância em qualquer Estado de Direito que se pretenda democrático[i].
Em vista do conteúdo da referida cláusula, tanto em sua dimensão processual/adjetiva quanto na material/objetiva, deveria a aguardada lei proceder ao balanceamento dos valores envolvidos e, com isso, promover a“compatibilidade justa” entre os meios escolhidos e os fins almejados, segundo “padrões de proporcionalidade (lógica interna da estrutura meio-fim) e razoabilidade (bom senso, sentido criterioso…) da lei”, evitando abusos ou excessos [ii], que, quando verificados, devem ser reprimidos pelo Judiciário, como amplamente reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal [iii].
Analisada à luz dessas importantes premissas, a recém-chegada Lei 13.188/15 acarreta diversas e seriíssimas perplexidades, do ponto de vista material/substantivo e do ponto de vista processual/adjetivo, como se verá.
Do ponto de vista substantivo, de início, frise-se que o artigo 5º, V do texto constitucional garante ao ofendido, além da indenização por dano material, moral ou à imagem, o “direito a resposta proporcional ao agravo”, com evidente objetivo de possibilitar que se defenda de modo suficiente “contra qualquer imputação que lhe é feita, ofensiva ou prejudicial” [iv], contraditando-a, dentro de uma certa margem de equidade (“proporcional”, na letra do dispositivo) que, obviamente, só pode “ser aferida in concreto”, diante das circunstâncias de cada caso [v], não podendo o “destaque” da “réplica” [vi] da pessoa implicada ser definido a priori.
A primeira perplexidade gerada pela Lei 13.188/15 decorre justamente de ela ter ignorado essa limitação, pois determina que a resposta ou retificação terá “o destaque, a publicidade, a periodicidade e a dimensão da matéria que a ensejou” (artigo 4º, I a III), independentemente do “tamanho” e/ou da “gravidade” da ofensa propriamente dita e, ainda, do “fato” passível de esclarecimento. Assim, a prerrogativa conferida ao que se diz ofendido é claramente desmedida, com as perniciosas consequências daí decorrentes.
Por exemplo: se a matéria ocupa um grande espaço na publicação e osuposto agravo consiste em mera referência, o direito à respectiva resposta ou retificação implicaria a utilização integral do espaço ocupado pela peça original? Pelo que se contém na lei, a resposta é sim. O que não faz nenhum sentido. O problema atinge indistintamente a mídia escrita, televisiva, radiofônica e na internet, tornando a previsão altamente questionável.
O desequilíbrio entre o que se diz ofendido e o veículo de comunicação social não se limita a isso, pois, segundo a lei, eventual retratação / retificação espontânea, ainda que suficiente, “não impedem o exercício do direito de resposta pelo ofendido nem prejudicam a ação de reparação por dano moral”(artigo 2º, § 2º). Qual a razoabilidade de se obrigar quem já se retratou devidamente a veicular resposta do suposto prejudicado, sob pena de uma possível ação judicial no caso de não fazê-lo? Como a disposição assegura muito mais que a estrita neutralização de uma ofensa, evidentemente que nenhuma racionalidade orienta o comando.
Ademais, assegura-se a réplica, de forma individualizada, em todos os veículos de comunicação que tenham divulgado, publicado, republicado, transmitido ou retransmitido o agravo original (artigo 3º, §1º). A norma conduz ao absurdo de, por conta de meras citações ou remissões à matéria supostamente prejudicial, uma série de veículos serem obrigados a circular respostas, mesmo que não tenham qualquer culpa no que tange à inexatidão a ser esclarecida (!), dando a um suposto “agravado” visibilidade sem precedentes em matéria de direito de resposta.
Do ponto de vista adjetivo, certo é que a igualdade constitucionalmente consagrada (CF, artigo 5º, caput) projeta-se sobre o campo processual na forma de direito à chamada “paridade de armas”, para coibir “distinções arbitrárias” no âmbito das disputas travadas perante o Estado-juiz, no sentido de que elas devem ser feitas “de forma racional pelo legislador” [vii], com vistas apenas e tão somente a remediar eventuais desequilíbrios entre as partes, sempre de modo estrito, conforme entendimento do Plenário da Corte Suprema [viii].
Ultrapassando todos os limites impostos pela CF/88 ao legislador para dispor sobre o tema, a Lei 13.188/15 causa espécie também em matéria processual, elegendo, como competente para conhecer de ação visando assegurar direito de resposta, o Juízo do domicílio do ofendido, ou, a seu critério, aquele do lugar onde o agravo tenha apresentado maior repercussão (artigo 5º, §1º). Claramente, dá margem para que pessoas domiciliadas em certas localidades, sobretudo interioranas, onde exercem grande influência, obtenham liminares de Juiz singular que sujeitem os veículos de comunicação envolvidos a medidas eventualmente excessivas.
Além disso, cria diversos obstáculos ao acesso à devida prestação jurisdicional por parte dos meios de comunicação, não só pela distância até o foro onde processada a ação, mas, sobretudo, em função da visível exiguidade dos prazos previstos no artigo 6º para apresentação de razões prévias (24 horas) e contestação (3 dias), principalmente se comparados ao prazo de 60 dias de que dispõe o que se diz ofendido para que prepare e distribua a ação respectiva, previsto no artigo 3º.
Se tanto não bastasse, a concessão de efeito suspensivo a recurso interposto de liminar proferida monocraticamente pelo Juiz de primeira instância (que, diga-se, pode modificá-la sempre e em qualquer circunstância, conforme artigo 7º, §2º) é condicionada a prévio juízo colegiado por parte do Tribunal competente. Sem dúvidas, além de contrariar a tradição processual pátria, que atribui ao Relator a competência primordial de conhecer e julgar a causa, sujeita apenas a revisão colegiada (vide por exemplo o artigo 557 do CPC em vigor), a previsão viola o princípio do Juiz Natural e a vedação a tribunais de exceção (CF, artigo 5º, LIII e XXXVII).
Bem se vê, portanto, que, seja qual for o ângulo de análise escolhido (material ou processual), a Lei 13.188/15 confere a quem não passa de umsuposto prejudicado direitos que em tudo e por tudo extrapolam, e muito, o que seria razoável para que ele, em tendo razão, obtivesse a resposta suficiente de que trata o artigo 5º, V, da Constituição Federal, à luz dos relevantes valores — alçados a nível constitucional — envolvidos.
Na realidade, o que se veiculou foi injustificável restrição à liberdade de imprensa sob as vestes de regulamentação do direito de resposta constitucionalmente previsto, em manifesto benefício daqueles que, em tempos como os atuais, de crise e desconforto generalizado, não têm qualquer interesse em que os meios de comunicação exerçam sua função primordial, que é a de fiscalizar o Estado e zelar pela manutenção de uma Democracia minimamente sadia.
Logo, do ponto de vista do devido processo legal (proporcionalidade e razoabilidade), o desvio de finalidade da Lei 13.188/15 é mais que evidente, acarretando a inconstitucionalidade total e incontornável do conjunto normativo nela contido.
É que, nos termos da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, “a teoria do desvio de poder, quando aplicada ao plano das atividades legislativas”,impõe que “se contenham eventuais excessos decorrentes do exercício imoderado e arbitrário da competência institucional outorgada ao Poder Público, pois o Estado não pode, no desempenho de suas atribuições, dar causa à instauração de situações normativas que comprometam e afetem os fins que regem a prática da função de legislar”, como se verifica no caso da lei em comento.
Por isso, ao contrário do que sustentam alguns, como a Ordem dos Advogados do Brasil (ADI 5.415), não apenas o artigo 10 da Lei 13.188/15 é inconstitucional, mas toda ela, por manifesta violação à liberdade de imprensa, razão pela qual há urgência em que o diploma seja extirpado do ordenamento jurídico, devendo a sociedade brasileira como um todo mobilizar-se nesse sentido.
i Ver FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Direito constitucional: liberdade de fumar, privacidade, estado, direitos humanos e outros temas. Do amálgama entre razoabilidade e proporcionalidade na doutrina e na jurisprudência brasileiras e seu fundamento no devido processo legal substantivo. Barueri, SP: Manole, 2007.
ii Idem, ibidem.
iii Ver ADI-MC 1910, ADI-MC 2551, ADI-MC 2667, dentre inúmeros outros precedentes do STF.
iv Ver BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo: Saraiva, 1988-1989. PP. 45-46.
v Ver, nesse sentido, AI-AgR 853662 (DJ 31/05/2013), em que o STF absteve-se de julgar recurso em que se discutia o exercício desmedido do direito de resposta, ao fundamento de que o exame da questão dependeria das provas e dos fatos envolvidos no caso.
vi Com propriedade, observam Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Jr.: “é fácil constatar que o direito de resposta, ante o tratamento constitucional que recebeu, implica, a um só tempo, o direito de retificação de notícias incorretas e simultaneamente uma espécie de direito de réplica, em cujo seio se concretiza o contraditório na informação social”
vii Ver MARINONI, Luiz Guilherme et al. Curso de processo civil: Teoria do processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. PP. 498-499.
viii“1. A isonomia é um elemento ínsito ao princípio constitucional do contraditório (art. 5º, LV, da CRFB), do qual se extrai a necessidade de assegurar que as partes gozem das mesmas oportunidades e faculdades processuais, atuando sempre com paridade de armas, a fim de garantir que o resultado final jurisdicional espelhe a justiça do processo em que prolatado (…) 2. As exceções ao princípio da paridade de armas apenas têm lugar quando houver fundamento razoável baseado na necessidade de remediar um desequilíbrio entre as partes, e devem ser interpretadas de modo restritivo, conforme a parêmia exceptiones sunt strictissimae interpretationis” (ARE 648629, Rel. Min. Luiz Fux, DJ 07-04-2014)
Autores: Hamilton Dias de Souza é sócio fundador dos escritórios Dias de Souza Advogados Associados e Advocacia Dias de Souza, mestre e especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
Thúlio José Michilini Muniz de Carvalho é advogado no escritório Dias de Souza Advogados Associados, mestrando em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP.