Autor: André Luiz Maluf e Bernardo Maia Kolk (*)
Recentemente, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) aprovou a Lei 7.917, de 16 de março de 2018, a qual dispõe sobre a permanência dos presos provisórios nas unidades do sistema penitenciário estadual, dentre outras providências.
A norma, de autoria do deputado estadual Paulo Ramos, foi publicada no dia 19 de março e é composta de apenas quatro dispositivos. Em síntese: i) determina o tempo máximo de permanência dos presos provisórios em quaisquer unidades integrantes do sistema penitenciário estadual — 180 dias; ii) esgotado esse prazo, o encarcerado deve ser conduzido ao Juízo de Execução Penal competente, para que esse adote as medidas que repute necessárias, podendo, inclusive, determinar seu encarceramento nas dependências do Tribunal de Justiça; iii) por fim, a lei estabelece que o aprisionado não retorne ao sistema penitenciário estadual com base nos mesmos motivos que fundamentaram a prisão anterior.
Inicialmente, há de se destacar uma incongruência existente na lei, que se traduz a partir da determinação da transferência da responsabilidade pelos presos provisórios à Vara de Execução Penal, que possui competência para julgar os apenados, ou seja, os condenados definitivamente que já estejam cumprindo pena.
A Lei 7.210, de 11 de julho de 1984, que regula a execução penal em todo o território nacional, prescreve em seu artigo 1º que “tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”. Além do mais, o artigo 66 enumera as competências do Juízo da Execução Penal, dentre as quais não se encontra qualquer menção aos presos provisórios, mas apenas aos presos já sentenciados.
De toda sorte, a norma editada pelo Legislativo estadual possibilita uma hipótese de relaxamento da prisão, que possui como pressuposto a mera permanência por tempo superior ao mencionado nos estabelecimentos prisionais estaduais e será avaliada pelo magistrado competente.
Sem analisar o mérito da finalidade da aprovação do aludido diploma legal, diante das recentes prisões dos membros do Legislativo estadual, considerando tão somente a disciplina constitucional sobre a matéria, entendemos que a norma é flagrantemente inconstitucional.
Convém ressaltar o artigo 22, inciso I da CF, o qual preconiza que, dentre outras matérias, é de competência privativa da União legislar sobre Direito Penal e Processual.
Já o artigo 24 da CF define as matérias cuja competência legislativa é concorrente entre a União, os estados e o Distrito Federal, sendo que o inciso I relaciona o Direito Penitenciário como uma dessas matérias e o inciso XI trata dos procedimentos em matéria processual.
Ainda que o legislador estadual tenha buscado enquadrar o teor da norma dentro dos temas relativos ao Direito Penitenciário, justificando, assim, a competência da Alerj, não se pode afirmar que a disciplina estabelecida na lei seja atinente a tal matéria, tendo em vista que o Direito Penitenciário consiste no conjunto de normas jurídicas que regula a execução das penas e das medidas de segurança, isto é, regulamenta o tratamento dos sentenciados. A lei, por sua vez, disciplina tratamento a ser conferido aos presos provisórios.
É válido destacar que o estudo Direito Processual Penal compreende o exercício do jus puniendi do Estado, o qual engloba tanto a fase processual quanto a pré-processual (investigação preliminar). Entretanto, em temos de competência legislativa, o inquérito policial está incluso na fase procedimental, e não processual. Assim é a jurisprudência do STF:
“A legislação que disciplina o inquérito policial não se inclui no âmbito estrito do processo penal, cuja competência é privativa da União (art. 22, I, CF), pois o inquérito é procedimento subsumido nos limites da competência legislativa concorrente, a teor do art. 24, XI, da CF de 1988, tal como já decidido reiteradamente pelo STF” (ADI 2.886, rel. p/ o ac. min. Joaquim Barbosa, j. 3/4/2014, P, DJE de 5/8/2014 e ADI 1.285 MC, rel. min. Moreira Alves, j. 25/10/1995, P, DJ de 23/3/2001).
Apesar desse entendimento jurisprudencial, o conteúdo da lei em comento cinge-se em torno do Direito Processual Penal, pois, conforme já asseverado, cria uma possibilidade de relaxamento da prisão provisória, matéria totalmente estranha ao Direito Penitenciário e a procedimentos em matéria processual.
Logo, os institutos sobre os quais versam a lei, quais sejam, prisão e liberdade, integram o conteúdo de Direito Processual Penal, matéria cuja iniciativa compete privativamente ao Congresso Nacional, de modo que a norma editada pela Alerj padece de vício de inconstitucionalidade formal orgânica, eis que não foi observada a devida competência legislativa para a sua elaboração.
Ademais, a permanência da norma do mundo jurídico prejudica a uniformidade do tratamento aos presos provisórios de todo o país, uma vez que aqueles que estão enclausurados nas penitenciárias do Estado do Rio de Janeiro possuirão tratamento privilegiado em detrimento daqueles que se encontram em outros estados da federação.
Por essa razão, manifesta também a inconstitucionalidade material da lei estadual por afronta à isonomia, afinal, os presos provisórios devem receber tratamento igualitário em todo o território nacional, bem como os estados não devem legislar sobre a temática, ressalvada a especificidade do parágrafo único do artigo 22 da Constituição Federal. Exatamente por isso esse dispositivo constitucional aduz que, quando ocorrer a delegação de competência da União, ela deverá ser dirigida a todos os estados, e não apenas a alguns deles. A finalidade da norma é exatamente garantir a igualdade entre os entes federativos estaduais.
Nessa linha, há precedente no qual a União, valendo-se do disposto no artigo 22, inciso I e parágrafo único, da Carta Maior, delegou aos estados e ao Distrito Federal a competência para instituir piso salarial para os empregados que não tenham esse mínimo definido em lei federal, convenção ou acordo coletivo de trabalho. Foi decidido pela suprema corte que “atuar fora dos limites da delegação é legislar sem competência, e a usurpação da competência legislativa qualifica-se como ato de transgressão constitucional” (Cf: ADI 4.391, rel. min. Dias Toffoli, j. 2/3/2011, P, DJE de 20/6/2011 e ADI 4.364, rel. min. Dias Toffoli, j. 2/3/2011, P, DJE de 16/5/2011).
Entendemos que, nesse caso, é cabível o ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, nos termos do artigo 102, I, ‘a’ da CF, com fundamento na inconstitucionalidade formal e material da lei estadual. Também entendemos ser cabível o ajuizamento de representação de inconstitucionalidade junto ao Tribunal de Justiça local (artigo 125, parágrafo 2º da CF) pelos mesmos fundamentos.
Ratificando o posicionamento que aqui se sustenta, o Ministério Público do Rio de Janeiro ajuizou, no dia 22 de março, representação de inconstitucionalidade em face da referida lei, autuada sob o número 0014391-28.2018.8.19.0000, sob alegação de violação aos princípios do devido processo legal, da razoabilidade, das regras da iniciativa privativa legislativa da União e da separação dos Poderes, buscando a suspensão da sua eficácia com a declaração de inconstitucionalidade ao final.
Em outras oportunidades, o Órgão Especial do TJ-RJ declarou a inconstitucionalidade de normas que violavam a competência privativa da União por vício formal orgânico: TJ-RJ, ADI 00579215320168190000, relator: Luiz Zveiter, data de julgamento: 16/10/2017, OE – Secretaria do Tribunal Pleno e Órgão Especial, data de publicação: 19/10/2017; TJ-RJ, ADI 0029431-55.2015.8.19.0000, relator: desembargador Carlos Eduardo da Rosa da Fonseca Passos, data de julgamento: 30/6/2015; Arguição de Inconstitucionalidade 0044702-12.2012.8.19.0000, Órgão Especial, rel. des. Maria Augusta Vaz, julgamento em 17/6/2013.
Esperamos que as instituições de controle atuem no sentido de extirpar do ordenamento norma tão nociva à supremacia do texto constitucional, assegurando o reequilíbrio do pacto federativo e cumprindo o comando do artigo 23, I, da Carta Federal, que afirma ser competência de todos os entes da federação zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas.
No ano em que a Constituição da República completa 30 anos, é imperioso e republicano garantir a sua autoridade. Mais do que nunca, precisamos que ela se faça presente.
Autor: André Luiz Maluf é advogado e ex-subprocurador-geral do Município de Teresópolis (RJ). Estudou Direito Público Comparado na Universidade de Siena (Itália).
Bernardo Maia Kolk é técnico judiciário no Tribunal Regional Federal da 2ª Região e bacharel em Direito pelo Unifeso. Foi assessor especial na Procuradoria do Município de Teresópolis (RJ).