Por Carlos Eduardo Rios do Amaral
Para facilitar a compreensão do leitor, faço o necessário esclarecimento. Nas Varas Especializadas em Violência Doméstica as vítimas podem ser divididas em sinceros dois grandes grupos: de um lado, as que se encontram em risco iminente e fundado de morte e, de outro, as que acreditam estar numa Vara de Família ou Cível Comum, ou num playground.
Aqui, abro um parêntese, não faço remissão ao trabalho extrajudicial salvífico, eclético e de vanguarda, desenvolvido pelas Defensorias Públicas Estaduais nos Núcleos Especializados de Atendimento Integral à Mulher.
Entretanto, um crescente terceiro grupinho insiste em querer tomar conta da disputada pauta dos Juizados de Violência. Trata-se daqueles jovens casais – ou não tão jovens assim – que se utilizam dos Juizados com outras aspirações, distantes anos-luz da estrita solução judicial de uma pretensão resistida.
Mimos, saudades, joguinhos de amor, revanches, mágoas, imaturidade recíprocas, entre outros conflitos mal resolvidos do amor ou da libido são revolvidos por este último insistente e chato grupinho, que, sob a roupagem do medieval Direito Penal brasileiro, acreditam ser aflitos jurisdicionados em busca de Justiça.
Não, esse grupinho não quer Justiça, quer vingança. Há também os deste grupinho que querem fazer charme, embalar saudade etc. Já vi mulher abrigada pelo Poder Público querendo apenas “dar um tempo”, para perplexidade daquela gente dedicada e sentinela da Casa-Abrigo.
As Audiências de Instrução desse grupinho parece uma noite de autógrafos de livro de auto-ajuda em sofisticada livraria. Se não fosse pela falta do coquetel e da música ambiente, acreditaria estar noutra arena. As testemunhas de acusação e de defesa – pelo menos é o que consta do mandado de intimação –, sorridentes e à vontade, se confraternizam umas com as outras – o ambiente é mesmo necessariamente familiar –, algumas sem saber o que fazem ali, dando altas gargalhadas e estrondosas risadas.
Enquanto isso, na sala de audiências, antes do início dos trabalhos, os pombinhos, cada um de um lado da távola trocam confidências baixinho, alternando ligeiros sorrisos e biquinhos, piscadelas e trejeitos de contrariedade. Claro, tudo antes da chegada do julgador. A partir daí, vale o ensaio. Ao final, um volta de carona com o outro, perguntando se quer que compre o pão.
Em suma, a Lei Maria da Penha não consegue mudar o imutável: infração de menor potencial ofensivo será infração de menor potencial ofensivo em qualquer lugar e em qualquer tempo. Pronto e acabou. Não se pode teimar com a lógica da vida humana ou com o bom-senso universal.
Não se pode extrair um pequeno cisco do olho com uma marreta ou um dente com uma britadeira!
Querer estabelecer um denominador comum repressivo, uma profilaxia penal única, para todos os casos de violência doméstica e familiar, igualando todas as vítimas a uma pobre judia num campo de concentração nazista e o suposto agressor a um general alemão do terceiro reich é, em última análise, uma crudelíssima piada mal contada para aquelas mulheres verdadeiramente em risco de morte, que necessitam de uma audiência cautelar urgente para que o feroz agressor seja duramente advertido, fazendo cessar sua investida criminosa.
Não se pode reverenciar a disputa pelo tanquinho ou DVD apenas porque ornamentada pelo Direito Penal quando da lavratura do boletim policial, em detrimento da incendiária e problemática questão do marido, companheiro ou filho cheio de cachaça e crack na cabeça e na alma – geralmente trabalhador e bom pai quando sóbrio –, que não pode esperar e ter sua resolução postergada. Neste último caso, a Audiência Cautelar, ou de Advertência, de Justificação, de Admoestação, seja lá qual for o nome que se queira dar a essa solenidade em que o agressor deverá ser advertido de que deve deixar a ofendida em paz e se tratar, deve ser imediatamente designada, para se evitar uma tragédia anunciada.
É claro e indubitável que a disputa pelo tanquinho ou DVD pode terminar, sim, num homicídio de torpeza ou futilidade inaceitáveis. Mas, uma pequena ferida só infecciona se não for prontamente tratada. Cicatrizou, acabou. Bola para frente, a vida continua. Não se pode instalar numa UTI de um pronto-socorro um ligeiro arranhão no joelho, com ares de eternidade e complexidade.
Se alguns operadores do Direito querem entender que o artigo 41 da Lei Maria da Penha desautoriza a aplicação dos institutos despenalizadores da Lei 9.099/95, por certo não se pode olvidar o óbvio e ululante: a maioria das infrações penais que gravitam em torno dos Juizados de Violência são, sim, de menor potencial ofensivo, de repercussão penal diminuta ou nenhuma.
Assim, se a opção for por prestigiar a literalidade fria desse artigo 41, que se transforme a Audiência do artigo 16, do mesmo Diploma da Mulher, em oportunidade extraordinária para se ouvir dos anseios do casal, para se imiscuir no imbróglio familiar, para se verificar da real e concreta necessidade da deflagração da fúria persecutória penal estatal. Muitos casos podem e devem ser resolvidos com uma boa conversa, instalando-se uma mediação, entabulando-se um acordo.
A grande maioria das mulheres, após a lavratura do boletim de ocorrência policial, retoma suas vidas normalmente, longe ou ao lado de seus companheiros, ignorando conscientemente a existência das medidas protetivas de urgência, até um dia longevo serem convocadas para uma indesejada instrução criminal. Alguma jurisprudência desacostumada ao dia-a-dia dos Juizados de Violência optando por uma versão hollywoodiana quer acreditar que a mulher quando não solicita a Audiência do artigo 16, a retratação da representação, é porque está refém de um predador ou abduzida por ser alienígena feroz. O que sabidamente não acontece na praxe forense, bastando dar uma ida ao botequim ou sorveteria do bairro da suposta vítima para avistá-la junto do requerido.
Nosso sistema processual penal e civil de tutela da mulher vítima de violência, notadamente a doméstica e familiar, deve aderir à melhor solução preconizada pelo Direito, e não o contrário. As respostas do Direito para as aflições da vida familiar não devem ser insculpidas a partir de uma ficção ou fábula apartadas da realidade.
O juiz brasileiro é refém do velho tabuleiro penal ainda vigente, que o desautoriza a acalentar o conflito familiar, a afagar o conflito familiar com suas próprias mãos. Nosso Direito processual penal não permite que o juiz promova a concórdia familiar, devolvendo a harmonia ao casal que digladia. Pelo nosso vetusto Código de Processo Penal de 1941 o juiz não poderá desertar de sua única missão, qual seja, anos depois condenar ou absolver no veredicto final.
Enquanto isso, o trem da vida passa, passa, passa …