Lei n. 11.106/2005: novas modificações ao Código Penal brasileiro (II)

Lei 11.106/2005: Novas modificações ao Código Penal brasileiro (II) – Posse sexual mediante fraude (art. 215); Atentado ao pudor mediante fraude (art. 216) e, Causas de aumento de pena (art. 226)

Sumário: 3.2. Art. 215 do Código Penal; 3.3. Art. 216 do Código Penal; 3.3.1. Sujeito passivo; 3.3.2. Parágrafo único do art. 216 do Código Penal; 3.4. Causas de aumento de pena; 3.4.1. Sobre o inciso I; 3.4.2. Sobre o inciso II; 3.4.2.1. Texto suprimido; 3.4.2.2. Texto acrescido; 3.4.2.3. Aumento de pena nas hipóteses do inciso II.

3.2 Art. 215 do Código Penal

Com o nomem criminis de posse sexual mediante fraude, na redação antiga o art. 215 do Código Penal punia a conduta de: “Ter conjunção carnal com mulher honesta, mediante fraude” (coloquei o itálico).

Agora, conforme a Lei 11.106/2005, a redação do art. 215 passou a ser a seguinte: “Ter conjunção carnal com mulher, mediante fraude”.

Conjunção carnal, para os termos da lei, quer dizer cópula vagínica, relação sexual.

O crime em questão consuma-se com a efetiva conjunção carnal e somente é punido a título de dolo, podendo ser praticado mediante concurso de pessoas, com possibilidade de verificação da forma tentada.

O objeto jurídico da tutela penal é a liberdade sexual da mulher.

Sujeito ativo do crime só pode ser o homem, e somente a mulher honesta estava sujeita a ser vítima de tal ilícito penal, o que agora foi corrigido, pois a partir da “nova lei” qualquer mulher poderá ser vítima, sujeito passivo, portanto.

A expressão “mulher honesta” constituía elemento normativo do tipo, e a exigência de honestidade impunha tratamento de natureza nitidamente discriminatória.

A mudança agora introduzida ampliou a esfera de alcance da norma penal incriminadora, pois, se antes da mudança somente a mulher que fosse considerada honesta estava protegida em sua liberdade sexual pela norma em comento, agora a proteção penal tem abrangência indistinta e não discriminatória em relação ao sexo feminino.

Merece aplauso o reparo legislativo, pois se a figura do crime de estupro (art. 213 do CP) também visa à proteção da liberdade sexual da mulher, seja ela sexualmente honesta ou não (prostituta pode ser vítima do crime de estupro, RT 700/355), era sem sentido lógico deixar desprotegida penalmente, para os fins do crime de posse sexual mediante fraude, a liberdade sexual da mulher que optou por adotar conduta sexual de contornos mais frouxos.

A ausência de honestidade sexual da mulher devassa não poderia jamais constituir motivo para a ausência de proteção penal, na exata medida em que aquelas dotadas de menor recato também podem ser submetidas à ação de “ter conjunção carnal, mediante fraude”.

A ausência de honestidade sexual nunca constituiu imunidade à fraude que pode ser empregada para fins sexuais, e não é ético deixar sem proteção, como forma de “punição” ou “patrulhamento” da liberdade, aquela que se colocou a usar de seu erotismo de forma avolumada, com pouco ou nenhum critério.

A proteção agora é plena e, de certa forma, confirma a liberdade de cada um no sentido de poder conduzir sua vida sexual como bem lhe aprouver.

Em termos práticos é preciso anotar que inquéritos policiais arquivados no passado, exclusivamente em razão da comprovada ausência de honestidade da vítima, não poderão ser agora reabertos apenas em razão da mudança legislativa. Não há como se justificar a aplicação do art. 18 do Código de Processo Penal na hipótese em testilha, e eventual tentativa nesse sentido irá configurar flagrante constrangimento ilegal, sanável pela via do habeas corpus.

Absolvições impostas em Primeira Instância em razão da comprovada ausência de honestidade da vítima (antes da nova lei) não poderão ser modificadas em grau de recurso com fundamento exclusivo na mudança legislativa.

Com efeito. A nova regra é mais gravosa na medida em que amplia o alcance da descrição típica para situações que antes não estavam nos limites da tipificação, e os princípios da anterioridade da lei[1] e da irretroatividade da lei penal mais severa[2] impedem a aplicação do texto novo em relação aos crimes já consumados no passado, sob a égide do antigo regramento.

3.3. Art. 216 do Código Penal

Encerrando o rol de proteção à liberdade sexual quanto aos crimes praticados mediante fraude, o art. 216 do Código Penal regula a figura do “atentado ao pudor mediante fraude”.

Enquanto o art. 215 do Código Penal se refere à prática de conjunção carnal, assim compreendida a relação sexual entre homem e mulher, nos termos em que acabamos de expor no tópico acima, o artigo sob análise se refere à prática de qualquer ato libidinoso diverso da conjunção carnal.

Na precisa e oportuna lição de Nelson Hungria, “ato libidinoso é todo aquele que se apresenta como desafogo (completo ou incompleto) à concupiscência”.[3] E o mesmo autor ainda ensinou: “O ato libidinoso a que se refere o texto legal, além de gravitar na órbita da função sexual, deve ser manifestamente obsceno ou lesivo da pudicícia média. Não pode ser confundido com a simples inconveniência, nem ser reconhecido numa atitude ambígua”.[4]

O que distingue o atentado fraudulento ao pudor (art. 216 do CP) do atentado violento ao pudor (art. 214 do CP) é o meio empregado para a prática dos atos libidinosos.

A mudança na redação do art. 216 foi tão severa e radical quanto acertada.

Enquanto a forma fundamental punia como crime a conduta de “induzir mulher honesta, mediante fraude, a praticar ou permitir que com ela se praticasse ato libidinoso diverso da conjunção carnal”, com a Lei 11.106/2005 a tipificação básica passou a ser muito mais ampla.

Com a nova redação, constitui crime de atentado ao pudor mediante fraude: “Induzir alguém, mediante fraude, a praticar ou submeter-se à prática de ato libidinoso diverso da conjunção carnal” (coloquei o itálico).

Houve profunda alteração quanto à possibilidade de sujeição passiva.

3.3.1. Sujeito passivo

Antes, o crime só podia ser praticado contra mulher, e não bastava a condição de mulher pura e simplesmente; não era toda e qualquer mulher que podia ser vítima; era preciso tratar-se de mulher honesta.

Com a retirada do elemento normativo do tipo: mulher honesta, e a inclusão da expressão “alguém”, a sujeição passiva ficou ampliada consideravelmente, conforme já é possível antever.

No que pertine ao tema “mulher honesta” remetemos o leitor àquilo que já foi expendido nas reflexões ligadas ao artigo 215 do Código Penal (item 3.2., supra), no que for pertinente.

Quanto ao mais, cumpre anotar que agora o homem também pode ser vítima de crime de atentado ao pudor mediante fraude. A expressão alguém é indeterminada quanto ao sexo, permitindo que tanto o homem quanto a mulher, seja esta honesta ou não, figurem como vítima.

E era assim que devia ser mesmo. Não havia razão lógica ou jurídica para as restrições quanto à possibilidade de sujeição passiva no tocante ao crime em comento.

Não se justificava a proteção jurídico-penal tão-só à mulher honesta.

Homens e mulheres, indistintamente, podem ser vítima do crime sob análise.

A restrição à mulher honesta tinha ranço discriminatório, razão maior da mudança imposta em boa hora, senão tardiamente.

Inclusive por coerência, era preciso alinhar o art. 216 do Código Penal ao art. 214 do mesmo “Codex”, que não contém restrições quanto a sujeição passiva, de maneira a permitir que homens e mulheres sejam considerados vítimas do crime de atentado violento ao pudor, nos termos de sua regulamentação.

A lacuna está preenchida.

A discriminação condenável foi banida e o sistema de proteção foi aperfeiçoado.

3.3.2. Parágrafo único do art. 216 do Código Penal

Para ser coerente com as disposições contidas no caput do art. 216 foi preciso mudar a redação de seu parágrafo único.

A antiga redação era nos seguintes termos: “se a ofendida é menor de dezoito e maior de catorze anos”.[5]

Ampliada a sujeição passiva, que agora não alcança apenas vítima do sexo feminino, não era correto manter na redação do parágrafo único a expressão “ofendida”.

Se a regra não fosse modificada iria proporcionar odioso tratamento discriminatório, com previsão de pena qualificada apenas quando a vítima fosse do sexo feminino, excluindo a possibilidade de qualificadora quando “o ofendido” fosse menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos de idade.

Substituído o vocábulo “ofendida” por “vítima”, ampliou-se a forma qualificada para alcançar vítimas de ambos os sexos, como deve ser.

A pena prevista para a forma qualificada foi mantida: reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos.

3.4 Causas de aumento de pena

O art. 226 do Código Penal está no Capítulo IV do Título VI, onde estão as “Disposições gerais”, e estabelece causas de aumento de pena para os crimes previstos nos capítulos anteriores, assim entendidos aqueles que se encontram no mesmo Título VI (Dos crimes contra os costumes), a saber: Capítulo I (Dos crimes contra a liberdade sexual); Capítulo II (Da sedução e da corrupção de menores); Capítulo III (Do rapto), este, agora com todos os seus artigos revogados, conforme o art. 5º da “nova lei”.

Suas disposições elencam agravantes especiais das quais decorre cota fixa de aumento de pena.

O texto antigo era expresso nos seguintes termos: “A pena é aumentada de quarta parte: I – se o crime é cometido com o concurso de duas ou mais pessoas; II – se o agente é ascendente, pai adotivo, padrasto, irmão, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela; III – se o agente é casado”.

A nova redação está posta nos seguintes termos: “A pena é aumentada: I – de quarta parte, se o crime é cometido com o concurso de 2 (duas) ou mais pessoas; II – de metade, se o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela”.

Foi revogado o inciso III, conforme está expresso no art. 5º da “nova lei”, e sobre tal matéria trataremos em tópico distinto.

Antes da mudança imposta com a Lei 11.106/2005 a quota fixa de aumento de pena era comum a todas as modalidades previstas (quarta parte), agora, o aumento será de quarta parte apenas na hipótese do inciso I, e de metade nas situações do inciso II.

3.4.1. Sobre o inciso I

No que tange ao inciso I cumpre observar que não houve mudança de redação no sentido de ampliar ou restringir o alcance da norma. A mesma previsão que antes justificava o aumento de pena ainda persiste.

Ainda em relação ao inciso I é importante destacar que “o dispositivo não se refere, indistintamente, a concurso de duas ou mais pessoas para o crime, mas ao fato de ter sido o crime cometido, isto é, executado com pluralidade de agentes”.[6]

3.4.2. Sobre o inciso II

Em relação ao inciso II as mudanças foram consideráveis e buscaram uniformizar o tratamento jurídico-penal dentro de uma acertada visão sistêmica e atualizada do Direito.

No texto legal foram mantidas as seguintes causas de aumento: se o agente é, ascendente, irmão (ou irmã, entenda-se), tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela.

3.4.2.1. Texto suprimido

Foi suprimida do texto a figura do “pai adotivo”.

Obviamente, com tal providência não quis o legislador beneficiar o “pai adotivo” que praticar os crimes a que se refere o art. 226. E efetivamente não beneficiou.

É que desde a edição do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069, de 13 de julho de 1990), e também em razão do “Novo Código Civil” (Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002), não mais se justifica, juridicamente, a utilização da expressão “pai adotivo”, isso em razão do tratamento jurídico desde então dispensado à adoção, e notadamente em razão dos efeitos que dela decorrem.

Em razão do novo tratamento jurídico dispensado à adoção, e dos efeitos que dela resultam, a figura do antigo “pai adotivo” agora se enquadra na figura do ascendente, já expressa na antiga redação do inciso II, que nesse ponto não sofreu alteração.

Está mantida, pois, a proteção jurídico-penal, e agora ajustada com a nova realidade jurídica na sempre necessária visão sistêmica.

3.4.2.2. Texto acrescido

Além do que foi mantido e retirado do inciso II, conforme analisamos acima, a mudança legislativa acrescentou que a pena também será aumentada de metade se o agente for: madrasta, tio, cônjuge ou companheiro.

Como o texto antigo já previa como causa de aumento de pena o fato do delito ter sido praticado por padrasto; visando acabar com as discussões sobre a possibilidade de se estender ou não a causa de aumento para a madrasta autora de delito de igual natureza, isso em razão de princípios como o da taxatividade, da reserva legal etc., a Lei 11.106/2005 ajustou a redação do inciso II de forma à não permitir a continuidade da discussão.

Aliás, o reparo era mesmo necessário também em razão das demais mudanças instituídas com a própria Lei 11.106/2005.

Se o agente for tio da vítima a pena também será aumentada a partir da vigência da “nova lei”.

Entenda-se: tio ou tia.

Tal compreensão não está proibida em razão da ausência de previsão expressa. Diga-se o mesmo em relação ao companheiro ou companheira.

É certo que o inciso refere-se apenas e tão-somente ao tio (no masculino) e ao companheiro (no masculino), e isso poderia levar à conclusão no sentido de que o legislador quis excluir da incidência da causa de aumento de pena regulada no inciso II do art. 226 a tia e a companheira, até porque em relação ao padrasto cuidou de acrescentar a figura feminina correspondente (madrasta), cautela não adotada em relação aos outros dois (tio e companheiro).

Ocorre, entretanto, que buscando o espírito da lei; o espírito das mudanças impostas, a conclusão não pode ser outra. O que se pretendeu, mesmo, foi a ampliação para o tio, de sexo masculino ou feminino, e ao companheiro do sexo masculino ou feminino.

Ainda que assim não se entenda, uma outra possibilidade de enquadramento da tia e da

Se por um lado é até possível dizer que o texto legal se afigura imperfeito quanto ao seu alcance de proteção jurídico-penal, e isso em razão da ausência de expressa menção a tais figuras (tia e companheira), é certo que estamos diante de um típico caso de interpretação analógica, onde as cláusulas específicas estão seguidas de cláusula genérica, e isso em razão da parte final do inciso II onde se lê: “… preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela”.

Sendo assim, se a agente for tia ou companheira, exercendo, a qualquer título, autoridade sobre a vítima, estará justificada a causa de aumento (embora com outro fundamento).

Maior discussão, entretanto, ficará para a hipótese de companheiro ou companheira, isso em razão da questionável autoridade que um possa exercer sobre o outro.

No que tange aos conviventes em relação homoafetiva reiteramos o que já ficou anotado por ocasião das observações ao art. 148 do Código Penal (item 2.1.1.1. Crime praticado contra companheiro), para onde remetemos o leitor.

Quanto à figura do cônjuge não há qualquer questionamento. A previsão refere-se ao cônjuge do sexo masculino e também ao cônjuge do sexo feminino.

3.4.2.3. Aumento de pena nas hipóteses do inciso II

As causas descritas no inciso II agora ensejam aumento de metade da pena (antes o aumento era de quarta parte).

No que pertine a incidência da nova regulamentação sobre fatos já consumados antes de sua vigência é preciso ter em vista as disposições dos arts. 1º e 4º do Código Penal, que estão amparados no art. 5º, incs. XXXIX e XL da Constituição Federal.

[1] Art. 5º, inc. XXXIX, da Constituição Federal; art. 1º do Código Penal.

[2] Art. 5º, inc. LX, da Constituição Federal; art. 2º, parágrafo único, do Código Penal.

[3] HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal, 3ª ed., Rio de Janeiro, Revista Forense, vol. VIII, 1956, p. 131.

[4] HUNGRIA, Nélson, Ob., Cit., p. 133.

[5] Pena – reclusão, de dois a quatro anos.

[6] HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal, 3ª ed., Rio de Janeiro, Revista Forense, vol. VIII, 1956, p. 247.

* Renato Marcão

Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo; Mestre em Direito Penal, Político e Econômico; Professor de Direito Penal, Processo e Execução Penal (Graduação e Pós); Sócio-fundador e Presidente da AREJ – Academia; Rio-pretense de Estudos Jurídicos, e ex-Coordenador do Núcleo de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia; Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP); Membro Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim); Membro do Instituto de Ciências Penais (ICP); Membro do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP); Membro do Instituto de Estudos de Direito Penal e Processual Penal (IEDPP); Autor dos livros: Lei de Execução Penal Anotada (Saraiva); Tóxicos – Leis 6.368/1976 e 10.409/2002 anotadas e interpretadas (Saraiva)e Curso de Execução Penal (Saraiva).

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