Lei n. 11.106/2005: novas modificações ao Código Penal brasileiro (IV)

Lei 11.106/2005: Novas modificações ao Código Penal brasileiro.(IV) – Dispositivos revogados

Sumário: 3. Dispositivos revogados; 3.1. Sobre os incisos VII e VIII do art. 107; 3.2. Sobre o art. 217; 3.3. Sobre o art. 219; 3.4. Sobre o art. 220; 3.5. Sobre os arts. 221 e 222; 3.6. Sobre o inciso III do caput do art. 226; 3.7. Sobre o § 3o do art. 231; 3.8. Sobre o art. 240; 4. Considerações finais.

3. Dispositivos revogados

Além das modificações anteriormente apontadas e analisadas, e em razão do disposto em seu art. 5º, a Lei 11.106/2005 revogou os incisos VII e VIII do art. 107, os arts. 217, 219, 220, 221, 222, o inciso III do caput do art. 226, o § 3o do art. 231 e o art. 240, todos do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal.

Passaremos, a seguir, à análise dos dispositivos revogados, seguindo a mesma ordem de disposição acima indicada.

3.1. Sobre os incisos VII e VIII do art. 107

O art. 107 do Código Penal estabelece de forma exemplificativa algumas causas de extinção da punibilidade, não sendo demais lembrar que punibilidade “é a possibilidade jurídica de o Estado impor a sanção”, conforme a objetiva lição de Damásio de Jesus.[1]

Os incisos VII e VIII do art. 107 do Código Penal estabeleciam como causas de extinção da punibilidade o casamento da vítima com o agente e o casamento da vítima com terceiro, respectivamente.

Conforme o texto revogado do inc. VII do art. 107 do Código Penal, a punibilidade seria extinta: “pelo casamento do agente com a vítima, nos crimes contra os costumes, definidos nos Capítulos I, II, e III do Título VI da Parte Especial deste Código”.

Nos termos do revogado inc. VIII do art. 107 do Código Penal, também seria extinta a punibilidade: “pelo casamento da vítima com terceiro, nos crimes referidos no inciso anterior, se cometidos sem violência real ou grave ameaça e desde que a ofendida não requeira o prosseguimento do inquérito policial ou da ação pena no prazo de 60 (sessenta) dias a contar da celebração”.

As disposições acima transcritas abrangiam os crimes de estupro, atentado violento ao pudor; posse sexual mediante fraude, atentado ao pudor mediante fraude, sedução, corrupção de menores e rapto (arts. 213 a 221 do CP), sendo imprescindível observar as ressalvas legais que determinavam limitações ao alcance das regras.

Impunha-se a extinção da punibilidade em razão da reparação pelo casamento. Entendia-se que o matrimônio limpava a honra da vítima manchada pelo crime, constituindo, em tese, razão suficiente para a terminação dos questionamentos judiciais acerca dos fatos.

Segundo parece ser o entendimento do legislador, o novo tratamento penal apresentado com a Lei 11.106/2005 não permitia a continuidade dos dispositivos antigos.

Agora, o casamento não mais constitui causa de extinção da punibilidade, e bem por isso algumas vezes a vítima poderá unir-se em matrimônio com o réu, livre e espontaneamente; formar família, e depois ver o cônjuge condenado pela prática da conduta precedente, ensejadora de procedimento na esfera criminal.

Haverá discrepância de conseqüências, pois em se tratando de crimes de ação penal privada a vítima poderá optar pelo não ajuizamento da ação; pela renúncia ao direito de queixa; pelo perdão; e ainda após o ajuizamento da queixa-crime provocar a extinção da punibilidade pela perempção (art. 60 do CPP), caso seja seu desejo, por exemplo, após casar-se com o réu.

De outro vértice, em se tratando de crime de ação penal pública tais institutos são inaplicáveis, e sem a possibilidade de extinção da punibilidade em razão do casamento poderá ocorrer a situação acima aventada, danosa à estabilidade da união familiar.

O tempo dirá se a mudança foi acertada, entretanto, desde já é possível antever situações onde haverá sério problema sócio-familiar que poderia ser evitado com a permanência das regras extirpadas do art. 107 do Código Penal.

3.2. Sobre o art. 217

O polêmico crime de sedução estava previsto no art. 217 do Código Penal, e segundo a redação típica assim se aperfeiçoava o ilícito: “seduzir mulher virgem, menor de dezoito anos e maior de catorze, e ter com ela conjunção carnal, aproveitando-se de sua inexperiência ou justificável confiança”.

Nos dias atuais o crime em questão era de difícil configuração em razão da necessária conjugação das elementares que o integravam. Era preciso que a vítima fosse virgem; menor de dezoito e maior de catorze (se for menor de catorze o crime cogitável será o de estupro); inexperiente e ingênua, ou que depositasse justificável confiança em seu sedutor.

De longa data a melhor doutrina reclamava a revogação do tipo penal em comento. A jurisprudência também demonstrava a mesma tendência.

Não era difícil perceber que a previsão legal não estava ajustada aos dias atuais.

A perda da virgindade pela mulher, nas condições do art. 217, já não precisava da proteção penal.

Há mais. Qualquer proteção que se pretendesse estabelecer sobre o objeto jurídico da tutela penal em questão (a integridade ou virgindade da menor) prescindia de tipificação conforme o art. 217, haja vista o teor das disposições contidas nos arts. 213 e 214, protetoras da liberdade sexual contra violência ou grave ameaça, e as regras dos arts. 215 e 216 que cuidam das hipóteses em que são empregados meios fraudulentos. Acrescente-se, por derradeiro, que o art. 218 se presta à proteção da moral sexual dos adolescentes de ambos os sexos, já que o tipo penal se refere a “… pessoa maior de catorze e menor de dezoito anos…”.

Como se vê, não havia justificação lógica ou jurídica para a permanência do crime de sedução no ordenamento jurídico, e bem por isso a revogação do tipo penal é bem vinda.

Em relação ao antigo crime de sedução ocorreu abolitio criminis, sendo aplicável a regra do art. 2º do Código Penal.

3.3. Sobre o art. 219

O art. 219 do Código Penal cuidava do crime de “rapto violento ou mediante fraude”.

Conforme a narração típica, configurava referido crime: “Raptar mulher honesta, mediante violência, grave ameaça ou fraude, para fim libidinoso”. A pena era de reclusão, de dois a quatro anos.

A nova lei aboliu a expressão “mulher honesta” do Código Penal e também cuidou de acrescentar, entre outras regras já analisadas, o inciso V ao §1º do art. 148, com a seguinte redação: “Se o crime é praticado com fins libidinosos”.

O art. 148 tipifica o crime de seqüestro ou cárcere privado, contendo formas qualificadas no § 1º, sendo estas punidas com reclusão, de dois a cinco anos.

Em razão do disposto no inc. V acrescentado ao § 1º do art. 148 deixou de ser necessária a previsão contida no art. 219 do Código Penal, visto que a conduta deste último artigo passou a ser tratada naqueles dispositivos (art. 148, § 1º, inc. V).

A partir da Lei 11.106/2005, privar alguém (homem ou mulher) de sua liberdade, para fins libidinosos, constitui crime de seqüestro ou cárcere privado qualificado, e não rapto.

3.4. Sobre o art. 220

Com o nome de “rapto consensual” o art. 220 do Código Penal estabelecia pena de detenção, de um a três anos, se a raptada fosse maior de catorze e menor de vinte e um anos, e o rapto fosse praticado com seu consentimento” (coloquei o itálico).

Em relação a tal ilícito ocorreu abolitio criminis (art. 2º do CP).

Muito embora alguns possam sustentar que referida tipificação agora se encontra no inc. IV do §1º do art. 148, acrescido com a Lei 11.106/2005, tal conclusão não é acertada, pois nas hipóteses de seqüestro ou cárcere privado o consentimento válido da vítima impede a tipificação.

3.5. Sobre os arts. 221 e 222

O art. 221 do Código Penal trazia “causas de diminuição de pena” aplicáveis aos crimes dos arts. 219 e 220.

O art. 222, também se referindo aos arts. 219 e 220; tratava do concurso de crimes envolvendo rapto.

Em razão da revogação dos arts. 219 e 220, não havia qualquer razão justificadora para a permanência dos dois artigos subseqüentes no ordenamento jurídico.

Todo o conteúdo do Capítulo III (Do rapto) do Título VI (Dos crimes contra os costumes), arts. 219, 220, 221 e 222; foi revogado expressamente.

3.6. Sobre o inciso III do caput do art. 226

Em sua antiga redação o artigo 226, III, do Código Penal, determinava o aumento de quarta parte da pena, em relação aos delitos a que está vinculado, se o agente era casado ao tempo do ilícito.

A nova redação do art. 226 está nos seguintes termos: “A pena é aumentada: I – de quarta parte, se o crime é cometido com o concurso de 2 (duas) ou mais pessoas; II – de metade, se o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela”.

Foi revogado o inciso III, conforme está expresso no art. 5º da “nova lei”.

A regra mais benéfica alcança não só os fatos praticados após a vigência da nova lei, mas também aqueles consumados antes, e isso por força do disposto no parágrafo único do art. 2º do Código Penal, verbis: “A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado”.

3.7. Sobre o § 3o do art. 231

Referindo-se ao que antes era denominado crime de “tráfico de mulheres”, e que agora passou a ser “tráfico internacional de pessoas”, o § 3º do art. 231 do Código Penal tinha a seguinte redação: “Se o crime é cometido com o fim de lucro, aplica-se também multa”.

A revogação do § 3º do art. 231 do Código Penal, expressamente anotada no art. 5º da Lei 11.106/2005, deve-se à seguinte mudança: a pena de multa que antes era condicionada ao “fim de lucro” agora é obrigatoriamente cumulativa e está expressa nos §§ 1º e 2º do mesmo artigo.

Haveria, pois, flagrante impertinência e descompasso em imaginar possível a permanência do § 3º no ordenamento.

É revogação era mesmo de rigor, diante da modificação imposta.

3.8. Sobre o art. 240

O crime de adultério estava previsto no art. 240 do Código Penal, e tinha por objeto jurídico da tutela penal “a organização jurídica da família e do casamento”.[2]

Mesmo reconhecendo a importância da proteção jurídica da família e do casamento, é de se concluir que hoje não mais se justifica a proteção penal outorgada pelo legislador de 1940.

Não se trata de render homenagens ao adultério. O que é forçoso reconhecer é que o casamento e a família encontram outras formas de proteção no ordenamento jurídico, a exemplo do que ocorre no art. 1.566, inc. I, do Código Civil, que determina o dever de fidelidade recíproca entre os cônjuges.

Conforme assevera Claus Roxin[3], o direito penal é de natureza subsidiária. “Ou seja: somente se podem punir as lesões de bens jurídicos e as contravenções contra fins de assistência social, se tal for indispensável para a vida em comum ordenada. Onde bastem os meios do direito civil ou do direito público, o direito penal deve retirar-se”.

O direito penal deve ser considerado a ultima ratio da política social, o que demonstra a natureza fragmentária ou subsidiária da tutela penal. Só deve interessar ao direito penal e, portanto, ingressar no âmbito de sua regulamentação, aquilo que não for pertinente a outros ramos do direito.

As regras previstas na legislação civil são apropriadas e suficientes, e sendo assim, a revogação do tipo penal em que se encontra o crime de adultério é medida juridicamente saudável e condizente com a realidade jurídico-social em que vivemos.

4. Considerações finais

Conforme visto, as modificações introduzidas no Código Penal foram significativas e tendentes à atualização do sistema penal repressivo no que pertine aos delitos alcançados.

Embora sujeita a críticas pontuais, é força convir que, em sentido amplo a nova lei contém mais acertos do que erros, contrariando a sofrível realidade da produção legislativa no campo penal nos últimos tempos, o que se espera seja o primeiro passo na escolha de um novo caminho.

[1] Código Penal anotado, São Paulo, Saraiva, 8ª ed., p. 280.

[2] DELMANTO, Celso, e outros. Código Penal comentado, 6ª ed., Rio de Janeiro, Renovar, 2002, p. 505.

[3] Problemas fundamentais de direito penal. Lisboa: Vega, 1986. p. 28.

* Renato Marcão

Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo; Mestre em Direito Penal, Político e Econômico; Professor de Direito Penal, Processo e Execução Penal (Graduação e Pós); Sócio-fundador e Presidente da AREJ – Academia; Rio-pretense de Estudos Jurídicos, e ex-Coordenador do Núcleo de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia; Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP); Membro Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim); Membro do Instituto de Ciências Penais (ICP); Membro do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP); Membro do Instituto de Estudos de Direito Penal e Processual Penal (IEDPP); Autor dos livros: Lei de Execução Penal Anotada (Saraiva); Tóxicos – Leis 6.368/1976 e 10.409/2002 anotadas e interpretadas (Saraiva)e Curso de Execução Penal (Saraiva).

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