Lei paulista com regras de cadastro de proteção ao crédito é inconstitucional

Autor:  Rizzatto Nunes (*)

 

Esta em trâmite no Supremo Tribunal Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.224/SP, com relatoria da ministra Rosa Weber. Nessa ADI foi proposta para buscar obter a declaração de inconstitucionalidade da Lei 15.659, de 9.1.2015, do Estado de São Paulo, que regulamentou “o sistema de inclusão e exclusão dos nomes dos consumidores nos cadastros de proteção ao crédito”

Referida lei é oriunda de um projeto que foi totalmente vetado pelo governador Geraldo Alckmin por vício de inconstitucionalidade. Mas, o veto foi parcialmente derrubado (mantido apenas o do artigo 5º). O teor dos demais quatro artigos que interessam é o seguinte:

“Artigo 1º – A inclusão do nome dos consumidores em cadastros ou bancos de dados de consumidores, de serviços de proteção ao crédito ou congêneres, referente a qualquer informação de inadimplemento dispensa a autorização do devedor, mas, se a dívida não foi protestada ou não estiver sendo cobrada diretamente em juízo, deve ser-lhe previamente comunicada por escrito, e comprovada, mediante o protocolo de aviso de recebimento (AR) assinado, a sua entrega no endereço fornecido por ele.”

“Artigo 2º – A comunicação deve indicar o nome ou razão social do credor, natureza da dívida e meio, condições e prazo para pagamento, antes de efetivar a inscrição.
Parágrafo único – Deverá ser concedido o prazo mínimo de 15 (quinze) dias para quitação do débito ou apresentação de comprovante de pagamento, antes de ser efetivada a inscrição do nome do consumidor nos cadastros de proteção ao crédito”.

“Artigo 3º – Para efetivar a inscrição, as empresas que mantêm os cadastros de consumidores residentes no Estado de São Paulo deverão exigir dos credores documento que ateste a natureza da dívida, sua exigibilidade e a inadimplência por parte do consumidor”.

“Artigo 4º – As empresas deverão manter canal direto de comunicação, indicado expressamente no aviso de inscrição, que possibilite a defesa e a apresentação de contraprova por parte do consumidor, evitando a inscrição indevida.
Parágrafo único – Havendo comprovação por parte do consumidor sobre a existência de erro ou inexatidão sobre o fato informado, fica a empresa obrigada a retirar, independentemente de manifestação dos credores ou informantes, os dados cadastrais indevidos, no prazo máximo de 2 (dois) dias úteis.”

Escrevo mais vez para, com todo respeito aos que pensam diferente, opinar no sentido de que, de fato, a lei estadual padece de vício de inconstitucionalidade. Tinha razão, portanto, o governador Geraldo Alckmin ao vetá-la.

Com efeito, como se sabe, o artigo 24 da Constituição Federal (CF) estabelece a competência concorrente para a União, os Estados-Membros e o Distrito Federal legislarem sobre alguns assuntos, dentre os quais fixa expressamente “produção e consumo” (inciso V do artigo 24). Cabe à União, na hipótese, criar normas gerais (§ 1º do artigo 24). Inexistindo Lei Federal sobre normas gerais, os Estados-Membros detêm competência legislativa plena (§ 3º do mesmo artigo 24).

O Código de Defesa do Consumidor (CDC – Lei 8078/90), no artigo 43, regulou o mesmo tema, nesses termos:

“Art. 43. O consumidor, sem prejuízo do disposto no art. 86, terá acesso às informações existentes em cadastros, fichas, registros e dados pessoais e de consumo arquivados sobre ele, bem como sobre as suas respectivas fontes.

§ 1° Os cadastros e dados de consumidores devem ser objetivos, claros, verdadeiros e em linguagem de fácil compreensão, não podendo conter informações negativas referentes a período superior a cinco anos.

§ 2° A abertura de cadastro, ficha, registro e dados pessoais e de consumo deverá ser comunicada por escrito ao consumidor, quando não solicitada por ele.

§ 3° O consumidor, sempre que encontrar inexatidão nos seus dados e cadastros, poderá exigir sua imediata correção, devendo o arquivista, no prazo de cinco dias úteis, comunicar a alteração aos eventuais destinatários das informações incorretas.

§ 4° Os bancos de dados e cadastros relativos a consumidores, os serviços de proteção ao crédito e congêneres são considerados entidades de caráter público.

§ 5° Consumada a prescrição relativa à cobrança de débitos do consumidor, não serão fornecidas, pelos respectivos Sistemas de Proteção ao Crédito, quaisquer informações que possam impedir ou dificultar novo acesso ao crédito junto aos fornecedores.”

E o CDC é não só uma lei geral, como também é de ordem pública e interesse social. Lendo-se os dois diplomas, vê-se que a matéria regulada é a mesma, com o que facilmente se verificaria o conflito e a invasão de competência feita pela nova norma, concluindo-se pela inconstitucionalidade da lei estadual.

Mas, acontece que o §2º do artigo 24 da CF estabelece que a “competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados”. Daí que, pode-se perguntar se a Lei Estadual não estaria complementando a Lei Federal.

Para responder a essa questão, anotemos primeiramente que uma lei estadual suplementar é aquela que agrega algum detalhe à lei geral ou que normatiza algum aspecto ou peculiaridade regional, mas sempre sem entrar em conflito com a lei geral. O argumento de que a lei paulista foi aprovada conforme as peculiaridades locais, não tem sustentação. Ora, a determinação do envio de AR não é peculiar do Estado de São Paulo. O procedimento é idêntico em todos os Estados da Federação. Não há nenhuma diferença no envio de um AR no estado de Pernambuco, do Paraná, de São Paulo ou no Distrito Federal.

Desse modo, o fato irretorquível é: se o legislador federal quisesse que para incluir consumidores inadimplentes em cadastros fosse enviada correspondência por AR, assim teria instituído no CDC.

Dito isso, volto ao exame da natureza jurídica da Lei 8.078/90. Como disse, a CDC é uma lei geral e também de ordem pública e interesse social. E mais: ele é um subsistema jurídico próprio, uma lei principiológica com caracteres especiais voltada para a regulação de todas as relações de consumo, tão caras à sociedade de massas contemporânea e representando esse importante e largo aspecto da economia. Sua leitura impõe ao intérprete, portanto, que leve em consideração que seus princípios e normas são abrangentes na regulação dos setores de interesse.

Quanto à lei paulista, percebe-se que a intenção do legislador estadual foi, de um lado, permitir anotações sem aviso ao consumidor e, de outro, protege-lo na determinação de envio de correspondência com AR (artigo 1º). Parece-me que, em ambos os casos, há conflito com o estabelecido no CDC. Não se trata de suplementação ou preenchimento de lacuna, mas de direta alteração da imputação normativa da Lei Geral. É que o § 2º do artigo 43 do CDC dispõe que “a abertura de cadastro, ficha, registro e dados pessoais e de consumo deverá ser comunicada por escrito ao consumidor, quando não solicitada por ele”, o que, inclusive, após anos de discussão judicial gerou a Súmula 359 do Superior Tribunal de Justiça, que diz: “Cabe ao órgão mantenedor do cadastro de proteção ao crédito a notificação do devedor antes de proceder à inscrição”.

Quanto ao aviso de comunicação mediante protocolo assinado pelo devedor com aviso de recebimento (AR) dá-se exatamente o mesmo. Não só o CDC não o exige, como depois de muita discussão solidificou-se o entendimento de sua dispensabilidade, também em matéria sumulada no STJ: “É dispensável o Aviso de Recebimento (AR) na carta de comunicação ao consumidor sobre a negativação de seu nome em bancos de dados e cadastros” (Súmula 404) .

Veja-se bem. O CDC é uma lei equilibrada, que visa a harmonização das relações de consumo. A regulação feita pelo CDC dos cadastros de inadimplentes é ampla e suficiente para que o serviço funcione e para que o consumidor possa ser respeitado. Aliás, tal norma está em vigor há mais de 26 anos sem qualquer dúvida a respeito de sua capacidade de garantir os direitos das partes envolvidas.

Quanto aos demais artigos da Lei Estadual, penso que também não vingam. O artigo 2º modifica consideravelmente o modo de negativação e ainda por cima altera a data de vencimento de dívida concedendo 15 dias para pagamento, o que viola o contrato estabelecido entre credor e devedor. Ou seja, não suplementa, modifica o estabelecido e, ainda por cima, invade a competência contratual privada, fixada na Lei civil e comercial.

Do mesmo modo o artigo 3º traz embaraço para os cadastros, ao criar obstáculo inexistente no CDC, além de exigir prova da inadimplência do devedor, matéria alheia ao tema regulado, imputando ao anotador conduta que não diz respeito à sua área de atuação. A responsabilidade por eventual incorreção da anotação é, evidentemente, do credor que forneceu os dados.

E o artigo 4º repetiu o vício insanável, modificando as exigências para a anotação e para o cancelamento, o que está francamente disciplinado no § 3º do artigo 43 do CDC.

Concluo, portanto, com o entendimento de que a Lei Estadual paulista 15.659/15 é inconstitucional.

 

 

 

 

Autor:  Rizzatto Nunes é advogado e professor livre-docente pela PUC-SP. Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo.


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