Autores: José Carlos Wahle e Caroline Peronio (*)
No último dia 18 de abril de 2016 foi sancionada a Lei 13.271/2016 que trata sobre a proibição de revista íntima de funcionárias e de clientes do sexo feminino.
No âmbito do Direito do Trabalho que é objeto deste artigo, a lei ratifica a proibição constante no artigo 373-A, inciso VI da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), alterado pela Lei 9.799/99, acrescentando a aplicação de penalidade, consistente em multa.
A exposição de motivos do Projeto de Lei Original (583/2007), justificou a criação da lei na “luta [d]as mulheres brasileiras […] no processo de elaboração da nova Constituição Federal, permitindo que grande parte das reivindicações feministas estejam representadas e consagradas no texto constitucional […] No entanto, a igualdade garantida na Lei ainda é desrespeitada muitas vezes […] Constatamos que um grande número de trabalhadoras são constrangidas a se submeterem diariamente à prática da revista íntima ao fim da jornada de trabalho. […] O acesso da mulher ao mercado de trabalho e sua permanência nele é um dos meios mais importantes para exercer a igualdade e respeitos conquistados e consagrados na Constituição brasileira. Portanto, o objetivo […] é garantir e assegurar à mulher o direito ao trabalho sem ter sucessivamente sua intimidade violada”.
A nova disposição legal reascende a discussão, no âmbito trabalhista, quanto à discriminação das condições de trabalho entre homens e mulheres, sob a luz do princípio da igualdade, previsto no inciso 5º, caput e inciso I da Constituição Federal de 1988: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza […] homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”.
Trata o referido dispositivo da igualdade formal, dando margem, porém, para que o próprio texto constitucional e a legislação infraconstitucional façam distinções entre os sexos, mediante a introdução de elementos de isonomia, de modo a equilibrar uma relação até então desproporcional existente.
Nesse sentido, assim esclarece Alexandre de Moraes[1]:
“A Constituição Federal de 1988 adotou o princípio da igualdade de direitos, prevendo a igualdade de aptidão, uma igualdade de possibilidades virtuais, ou seja, todos os cidadãos têm direito de tratamento idêntico pela lei, em consonância com os critérios albergados pelo ordenamento jurídico. Dessa forma, o que se veda são as diferenças arbitrárias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio direito de Justiça, pois o que realmente protege são certas finalidades, somente se tendo por lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito.”
O princípio da igualdade consagrado pela constituição opera em dois planos distintos. De uma parte, frente ao legislador ou ao próprio executivo, na edição, respectivamente, de leis, atos normativos e medidas provisórias, impedindo que possam criar tratamentos abusivamente diferenciados a pessoas que encontram-se em situações idênticas. Em outro plano, na obrigatoriedade ao intérprete, basicamente, a autoridade pública, de aplicar a lei e atos normativos de maneira igualitária, sem estabelecimento de diferenciações sem razão de sexo, religião, convicções filosóficas ou políticas, raça, classe social.
A desigualdade na lei se produz quando a norma distingue de forma não razoável ou arbitrária um tratamento específico a pessoas diversas. Para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não discriminatórias, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com critérios e juízos valorativos genericamente aceitos, cuja exigência deve aplicar-se em relação à finalidade e efeitos da medida considerada, devendo estar presente por isso uma razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionalmente protegidos”.
Anteriormente à promulgação da Constituição, a CLT já reconhecia determinadas garantias destinadas à proteção do trabalho da mulher, concentradas em capítulo específico (Capítulo II do Título II), cuidando de estabelecer distinções justificadas por aspectos naturais, dentre eles a maternidade. Contudo, em face do constante progresso das relações sociais e trabalhistas, necessário se fez (e ainda se faz) uma releitura dos diversos dispositivos protetivos à mulher (nesse sentido o referido Capítulo foi em grande parte alterado pela Lei 9.799/99). Hoje, parece-nos especialmente necessário rever os elementos discriminadores que não mais se coadunam com a desigualdade existente na relação entre os sexos a fim de se alcançar uma igualdade material entre as partes.
Em razão da incompatibilidade com o novo ordenamento constitucional, é que muitos dos dispositivos criados na lei celetista para a proteção da mulher foram revogados. Outros, por outro lado, ainda vigentes, têm sua receptividade questionada diante da garantia constitucional de igualdade entre homens e mulheres, como é o caso da lei em debate, direcionada exclusivamente às empregadas do sexo feminino.
Embora o conceito de revista íntima não possua previsão legal, a doutrina e principalmente a jurisprudência entendem que é aquela promovida no corpo da empregada (ou do empregado, como se verá), justificando sua vedação com base no princípio da dignidade da pessoa humana e na proteção à intimidade, ambos insculpidos, respectivamente, no artigo 1º, inciso III e artigo 5º, inciso X da Constituição Federal.
Neste ponto é que a Lei 13.271/2016 se apresenta claramente inconstitucional.
O principal elemento justificador da diferenciação entre os gêneros perante a legislação trabalhista é a prestação de trabalho em condições adversas decorrentes de diferenças fisiológicas, como, por exemplo, a maternidade, a amamentação e o aborto.
Injustificável, portanto, a proibição à revista íntima tutelada pela nova lei unicamente às empregadas do sexo feminino. Não se pode ignorar que as mulheres sejam especialmente vulneráveis a revistas íntimas e que sejam vítimas mais frequentes. Contudo, diante de violação à intimidade e à dignidade da pessoa humana, homens e mulheres encontram-se em situação idêntica, não havendo justificativa para que a norma infraconstitucional faça discriminação expressamente vedada pela Constituição Federal, à luz do princípio da isonomia.
Em tal esteira de raciocínio, a redação da Lei 13.271/2016 apresenta-se repleta de lacunas. Além de não inovar a ordem jurídica — veda a “revista íntima”, mas não a conceitua- sequer cria direitos, já que se trata de mera repetição da proibição já expressamente prevista pela CLT. A lei limita-se, tão somente, em agregar multa ao empregador que praticar o ato ilícito e mesmo assim, somente se a vítima for do sexo feminino.
Nesse sentido, o legislador, ao direcionar a tutela da lei unicamente às empregadas mulheres, cria uma barreira à garantia constitucional dos homens trabalhadores à intimidade e à dignidade, bem como desperdiça a oportunidade legislativa de colaborar para a promoção da igualdade de gênero, arduamente discutida e defendida nos dias atuais.
Em tal contexto, a inconstitucionalidade da norma produz efeitos sociais indesejáveis. Há que se ter presente que não apenas empregados do sexo masculino podem sofrer revistas íntimas, como também homossexuais, travestis e transgêneros. Sob a ótica do constrangimento e da discriminação, esses últimos sofrem tanto quanto as mulheres, senão mais. Portanto, e considerando que o que faz a lei é a necessidade social (e não o contrário), esta deveria tutelar todas as pessoas de forma ampla e não restringir sua aplicação apenas a um dos gêneros.
Tem-se, portanto, que a aplicação do princípio da igualdade não deve ser concebida como uma repartição de direitos entre os sexos, mas como vedação à não discriminação. Daí a necessidade de reflexão e debate quanto ao alcance da Lei 13.271/2016 e aos seus possíveis encaminhamentos.
Restará aos tribunais, mais uma vez, adequar a lei à realidade social que emana dos processos. Em termos muito simples, duas soluções se apresentam como imperfeitas: (1) aplicar a lei por analogia à revista íntima de homens — que evidentemente seria uma inovação vedada por se tratar de aplicação de penalidade administrativa que depende de expressa previsão legal, até então inexistente, conforme se depreende da exposição de motivos que deu origem à norma, pois voltada exclusivamente à proteção das condições de trabalho da mulher; (2) não aplicar a lei por razão de inconstitucionalidade — um evidente retrocesso na necessidade de imprimir mais rigor (multa) aos casos de revista íntima.
Autores: José Carlos Wahle é sócio da área trabalhista do Veirano Advogados.
Caroline Peronio é associada da área trabalhista do Veirano Advogados.