por Lourival J. Santos
No sistema legal brasileiro há princípio segundo o qual ninguém pode se eximir de cumprir a lei alegando o seu desconhecimento ( art. 5°, LICC). O preceito foi herdado do direito romano “ignorantia legis neminem excusat” e fundamenta-se na necessária exclusão da possibilidade de que alguém, ao cometer certa infração, possa invocar em sua defesa o desconhecimento da existência de lei que incrimine a prática do ato cometido.
Se essa não fosse a regra legal estabelecida, gerar-se-ia clima de incerteza e insegurança, prejudiciais à estabilidade das normas de convivência do grupo social, porquanto a todos que cometessem atos ilícitos seria dado escudar-se na ignorância da existência de disposição legal coibitiva, para irresponsabilizar-se pela prática de tais atos e pelas conseqüências advindas dos mesmos.
Sobre o assunto escreveu o culto jurista Goffredo Telles Junior(1): “… a ordem jurídica pereceria se as violações das leis pudessem ser justificadas com a simples alegação da ignorância delas.”
Em sentido concreto é inadmissível que todos conheçam todas as leis em vigor, principalmente num país como este, que apresenta altíssimo índice de inflação legislativa. É exatamente essa a base fulcral do princípio referido.
Contudo, em relação à Constituição, por ser a lei fundamental do Estado, independentemente do princípio da “exceptio ignorantiae juris” não poderão ser ignorados os conceitos básicos dos direitos individuais e coletivos, principalmente por pessoas que têm, por ofício e mister, o dever de manejá-los e aplicá-los, atenta e rigorosamente, no cotidiano de suas funções.
Referimo-nos aos representantes dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário os quais, com preocupante freqüência, mostram-se apedeutas crônicos de princípios constitucionais medulares do modelo político adotado pelo País.
Rui Barbosa(2) escreveu que: “O ato legislativo é o querer expresso da legislatura, ao passo que a Constituição é o querer expresso do povo”.
Os representantes dos três poderes sobre os quais se assentam as vigas mestras do regime democrático escolhido pelo povo, deveriam ser os hábeis guardiões dos preceitos nascidos dessa fundamental “liberdade civil, que é a obediência à vontade geral”, como ensinava o Excelso Norberto Bobbio(3), jamais os responsáveis por ações conflitantes com o sistema político do Estado.
O notável professor Miguel Reale(4), na monografia “O Estado Democrático de Direito e o Conflito das Ideologias”, celebrou a definição contida no artigo l da Constituição, assinalando que o Estado Brasileiro: “… teve origem e finalidade de acordo com o Direito manifestado livre e originariamente pelo próprio povo, excluída (…) a hipótese de adesão a uma Constituição outorgada por uma autoridade qualquer, civil ou militar, por mais que ela consagre os princípios democráticos”.
Consentâneo com o molde democrático, conquistado pelo vigor do idealismo libertário da sociedade, o comando imperativo dos artigos 5°, IX, 220 caput e § 2°, está a consagrar, em termos claros e incontestes, esse significante triunfo social contra a censura ou qualquer outro ranço do regime autoritário, varrido do País pela Carta de 88.
Contudo, as manifestações do Executivo e de algumas alas do Legislativo, em favor de normas como a da Mordaça ou o projeto de lei sobre a criação do Conselho Federal de Jornalismo, cujos textos visam o cerceamento da liberdade de expressão, são evidências da cômoda ignorância ou desrespeito aos básicos preceitos mandamentais.
Pérolas dessa incongruente dislexia constitucional também podem ser observadas em leis como a eleitoral, Lei nº 9.504/97, cuja citação é própria neste ano letivo. No seu artigo 53 estabelece, expressamente, não ser admitida qualquer tipo de censura-prévia em programas eleitorais gratuitos. É como se o legislador desconhecesse a Constituição a ponto de crer ainda na possibilidade da censura e por mera liberalidade optasse por condescender em proibi-la na lei ordinária, o que é, no mínimo, insólito.
No artigo 45 da mesma Lei proíbe a divulgação de título de programa de televisão ou rádio coincidente com o nome ou pseudônimo de qualquer candidato escolhido em Convenção, ainda que o programa seja preexistente. A coincidência, segundo a lei, poderá determinar a proibição da transmissão (art. 45, VI).
Mais uma vez foi esquecido o princípio Mandamental que consagra a liberdade da expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, sem qualquer censura ou obstáculo.
Na conta do Judiciário poderão ser debitadas algumas lamentáveis posturas censórias na área da comunicação, tanto em decisões sobre assuntos ligados à propaganda eleitoral quanto ao jornalismo comum.
Tornaram-se emblemáticos alguns casos recentes, como o da censura prévia determinada por ordem judicial contra a revista “Você S.A.”, cuja sentença foi revertida no Tribunal; ou a invasão do “Jornal Correio Braziliense” ocorrida em razão de críticas jornalísticas ao então candidato ao Governo de Brasília ou, ainda, a ordem judicial restritiva da qual foi vítima a Rede Globo, impedida de divulgar notícias sobre o então Governador Fluminense, entre outros.
Karl Marx(5), nos seus célebres artigos contra a censura de imprensa na Alemanha e alguns países europeus, em meados do século 19, de forma espirituosa e inteligente, como costumam as mentes privilegiadas, destacou: “Na medida em que as pessoas são obrigadas a considerar ilegais os artigos livres, acostumam-se a considerar o ilegal como livre, a liberdade como ilegal, e o legal como não-livre. Por isso, a censura mata o espírito político”.
Enquanto isso seguem os políticos, em suas indefectíveis campanhas, a pregar, com veemência, a liberdade de expressão sem censura, o respeito à dignidade humana, a valorização da cidadania, etc., etc., etc.
Notas de rodapé
1. “Iniciação na Ciência do Direito”, Saraiva, 2002, p. 197.
2. “Obras Completas”, Vol. XXIV, tomo III, p. 53 – in “Dicionário do Pensamento de Rui”, p. 245, Edart, 1967.
3. “Direito e Estado no Pensamento de Kant” – Norberto Bobbio, Ed. Mandarim, 2000, p. 75.
4. “O Estado Democrático de Direito e o Conflito das Ideologias”, Saraiva, 1998, p. 2.
5. Liberdade de Imprensa”, L&PM Editores, 2001, p. 71.
Lourival J. Santos é sócio titular de Lourival J. Santos – Advogados, diretor Jurídico da Aner – Associação Nacional dos Editores de Revistas e Filiado Efetivo do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo.