Licenciamento de software não pode ser considerado mercadoria virtual

Autor: Alberto Macedo (*)

 

Estão para ser julgadas no Supremo Tribunal Federal duas ADIs (5.576 SP e 5.659 MG), em que se questiona a incidência do ICMS sobre o download de software [1],[2].

Traremos aqui argumentos que abordam os dois julgados paradigmáticos sobre a matéria — RE 176.626 SP e ADI-MC 1945 MT — e demonstraremos que, se dado razão aos Estados pela possibilidade de um conceito constitucional de mercadoria virtual — em prejuízo do conceito constitucional de serviço como bem imaterial, decidido pelo STF no RE-RG 651.703 PR, em 2016 — chegar-se-ia ao absurdo de poder incidir ICMS no Software as a Service (SaaS).

O SaaS, um dos modos de computação em nuvem, é composto por uma gama de serviços que podem ser resumidos em processamento ou armazenamento de dados, licenciamento de uso de software e suporte técnico em informática. Considerando que o SaaS é um modelo de negócio baseado em regra no pagamento por assinatura, ou seja, de uso por tempo determinado, considerar o licenciamento de software uma mercadoria virtual, sujeito ao ICMS, inauguraria um dantesco regime de circulação de mercadoria por tempo determinado. Uma verdadeira desvirtuação do conceito constitucional de mercadoria, que pressupõe tangibilidade e transferência de propriedade.

O atual contexto desse mercado merece um olhar cauteloso e célere pelo STF, inclusive para não acompanhar o entendimento proferido pela AGU e pela PGR nas referidas ADIs, sobre a tributação do software. Cauteloso porque os pressupostos atuais não são os mesmos da época da ADI-MC 1945 MT, que inclusive não foi julgada em definitivo, tendo sua cautelar levado incríveis doze anos para ser julgada; e muito menos os pressupostos da época do RE 176.626 SP, onde o licenciamento de software demandava um suporte físico. Célere porque a demora no seu julgamento pode ter efeitos devastadores para um mercado cuja velocidade de evolução demanda, e muito, neutralidade fiscal e segurança jurídica.

O problema
Os estados, equivocadamente, por intermédio do Convênio ICMS 106/2017, previram a possibilidade de cobrança do ICMS nas “operações com bens e mercadorias digitais, tais como softwares, programas, jogos eletrônicos, aplicativos, arquivos eletrônicos e congêneres, que sejam padronizados, ainda que tenham sido ou possam ser adaptados, comercializadas por meio de transferência eletrônica de dados”[3].

O equívoco não para por aí. Previram também exigência de ICMS quando o site ou plataforma eletrônica efetuar “a venda ou a disponibilização, ainda que por intermédio de pagamento periódico, de bens e mercadorias digitais mediante transferência eletrônica de dados”[4].

Além do fato de o licenciamento de software estar previsto na lista de serviços anexa à LC 116/2003, demonstraremos a seguir que esse licenciamento se subsome à incidência do ISS, e não do ICMS, seja o software padronizado ou por encomenda.

Não há transferência de titularidade do software na operação com software
No conceito constitucional de “operação de circulação de mercadoria”, a “operação de circulação” demanda a necessidade de haver a transferência de titularidade do bem, não só juridicamente, por contratos de compra e venda, por exemplo; mas faticamente, com a efetiva circulação, representativa da tradição.

No mercado de software, este nunca foi objeto de compra e venda, e sim de licença de uso, conforme o artigo 9º da Lei 9.609/1998, que prevê que “o uso de programa de computador no País será objeto de contrato de licença”. E se não há transferência de titularidade, já falta um dos requisitos para que o software possa ser considerado mercadoria. E nem há que se afirmar que, na prática, o software que se “compra” fica com o usuário para sempre. Esse modelo, denominado licença perpétua, da época do disquete e do CD, e ainda do download, onde o usuário paga uma só vez para poder usar “para sempre” o software, não faz desse usuário dono do software.

O cada vez mais dominante modelo de negócio dos softwares, por assinatura, em que a empresa proprietária licencia o software por tempo determinado, escancara o fato de que o software não pode ser considerado uma mercadoria, pois senão teríamos de admitir o absurdo de o usuário — e não adquirente — da mercadoria tê-la por tempo determinado. É possível haver um serviço por tempo determinado, mas nunca uma mercadoria por tempo determinado.

Não é possível mercadoria digital
Aqui, fundamental transcrevermos o trecho da ementa do Acórdão da ADI-MC 1945, que tem sido utilizado por todos que entendem ser possível a existência de um conceito constitucional de mercadoria virtual, inclusive a PGR e a AGU:

“8. ICMS. Incidência sobre softwares adquiridos por meio de transferência eletrônica de dados (…). Possibilidade. Inexistência de bem corpóreo ou mercadoria em sentido estrito. Irrelevância. O Tribunal não pode se furtar a abarcar situações novas, consequências concretas do mundo real, com base em premissas jurídicas que não são mais totalmente corretas. O apego a tais diretrizes jurídicas acaba por enfraquecer o texto constitucional, pois não permite que a abertura dos dispositivos da Constituição possa se adaptar aos novos tempos, antes imprevisíveis.”

Concordamos que os dispositivos, não só da Constituição, mas das leis em geral possuem abertura semântica, a qual permite a sua adaptação aos novos tempos, como expôs o julgado. Exemplo disso é o “conceito de livro e o papel destinado à sua impressão”, para fins da imunidade cultural, prevista no artigo 150, VI, ‘d’, da Constituição, que sofreu evolução conotativa que hoje abarca o e-book, apesar da expressa referência ao papel, dado que tal conceito não faz fronteira com outro conceito constitucional qualquer. Mas isso não é possível no caso do conceito constitucional de mercadoria, que é de bem material, pois sua evolução numa ideia de mercadoria virtual causaria uma inconstitucional involução do conceito constitucional de serviço de qualquer natureza, que é o de bem imaterial. E o critério que delimita a fronteira entre ambos é justamente a tangibilidade do bem objeto da atividade econômica de produção ou circulação, na qual só há duas espécies: bens materiais (mercadorias), e bens imateriais (serviços)[5], sendo a licença de uso do software justamente um bem imaterial.[6]

O Conceito de Serviço de Qualquer Natureza como Bem Imaterial Foi Incorporado pelo Constituinte
O exposto no tópico acima, de serviço como bem imaterial, prevaleceu no STF até o RE 116.121 SP, de 2000, onde, por seis a cinco, venceu a equivocada teoria da obrigação de fazer, passando pela Súmula Vinculante 31, de 2010, a qual foi perdendo força com a Rcl 8.623 AgRg RJ, de 2011, e com os RREE 547.245 e 592.905 SC, de 2009, voltando a prevalecer o conceito de serviço como bem imaterial no STF, com o RE 651.703 PR, de 2016, onde se afirmou:

20. A classificação (obrigação de dar e obrigação de fazer) escapa à ratio que o legislador constitucional pretendeu alcançar, ao elencar os serviços no texto constitucional tributáveis pelos impostos (v.g., serviços de comunicação – tributáveis pelo ICMS, art. 155, II, CRFB/88; serviços financeiros e securitários – tributáveis pelo IOF, art. 153, V, CRFB/88; e, residualmente, os demais serviços de qualquer natureza – tributáveis pelo ISSQN, art. 156. III, CRFB/88), qual seja, a de captar todas as atividades empresariais cujos produtos fossem serviços sujeitos a remuneração no mercado.

21. Sob este ângulo, o conceito de prestação de serviços não tem por premissa a configuração dada pelo Direito Civil, mas relacionado ao oferecimento de uma utilidade para outrem, a partir de um conjunto de atividades materiais ou imateriais, prestadas com habitualidade e intuito de lucro, podendo estar conjugada ou não com a entrega de bens ao tomador.

De fato, enquanto o Direito Civil, que sequer apresenta positivada a definição de serviço como obrigação de fazer, nunca se prestou a regular as atividades econômicas de circulação de bens e serviços, o Direito Comercial, depois Direito Empresarial, surgiu justamente para desempenhar esse papel. Assim, natural que a definição de empresário (núcleo do Direito Empresarial), consubstanciada no artigo 966 do Código Civil, tenha incorporado três conceitos econômicos, quais sejam, “empresário”, “atividade econômica” e “bens e serviços”. E esta última expressão dicotômica revela que como resultado da produção econômica, ou se circulam bens materiais (mercadorias) ou bens imateriais (serviços), neste último enquadrando-se o licenciamento de software, não havendo um tertiu genus, exatamente como é na Economia, e que a Constituição incorporou[7].

Não Cabe a Segregação, Para Fins de Delimitação entre ICMS e ISS, Entre Licenciamento de Software de Prateleira e o Licenciamento de Software por Encomenda
Hoje é possível comprar um carro pela internet de forma totalmente personalizada e por encomenda[8]. Ninguém questiona que um carro seja uma mercadoria (bem material); mas se for adquirido personalizado e por encomenda, estará sujeito à incidência do ISS? Obviamente não.

Isso demonstra que a personalização e encomenda não são critérios exclusivos ao conceito constitucional de serviço, mas sim aplicáveis tanto a bens materiais quanto imateriais, diferentemente da tangibilidade, essa sim, um critério constitucional que traça a fronteira entre os conceitos de mercadoria (bem material) e de serviços de qualquer natureza (bem imaterial).

Quando muito, personalização e encomenda apresentam-se como critérios de lei complementar, mas para tal deve estar expressamente prevista, e, na atual lista de serviços, isso só acontece para os serviços de prótese sob encomenda (4.14) e obras de arte sob encomenda (40.01), não havendo essa previsão para o serviço de licenciamento de software (1.05).

Não Cabe a Analogia Entre o Software e o Livro como Mercadorias, Apesar de Ambos Ensejarem Direito Autoral
Há uma grande diferença entre o software e o livro impresso no papel. No livro, o seu suporte físico, ao longo dos séculos, sempre foi fundamental para a sua consubstanciação, pois é no próprio suporte físico que o livro é lido. No software não. Nós não lemos ou utilizamos o software no disquete ou CD onde está gravado. O disquete ou CD só servem para transporte do software, da loja para a máquina do usuário.[9] Assim, o software não tem vida própria nessa “manifestação física” e sim fora dela, dado que não se manifesta, no sentido de se tornar útil, utilizável, no suporte físico, mas sim depois de instalado no computador. Tanto isso é verdade que o disquete ou CD hoje são desnecessários para esse transporte, sendo ele feito pela internet, quando há o download. Por isso, os dois bens não podem merecer o mesmo tratamento negocial.[10]

O Bem Imaterial no Licenciamento de Software Não É o Software, e Sim o Uso desse Software
Na verdade, é irrelevante se o software apresenta-se em suporte físico, por download ou mesmo se é usado na nuvem, porque o serviço como bem imaterial pelo qual se paga não é o software em si, mas sim o uso que dele se faz, ainda que ele não esteja instalado na máquina do usuário.

Essa afirmação é importante para se demonstrar o quão infeliz foi a decisão no RE 176.626 SP ao conferir relevância ao suporte físico, dado que não se paga por ele, e muito menos pelo software em si, mas sim pelo uso desse software. Tanto isso é verdade que hoje o modelo negocial de assinatura do licenciamento de software — presente no SaaS — deixa claro que se usa o software por tempo determinado (enquanto você pagar pela assinatura), e não se adquire o software.

Não confundamos o bem imaterial, que é uso, com o bem usado, este último podendo ser material ou imaterial. O quadro abaixo traz alguns exemplos da lista de serviços:

Aqui está o serviço
Bem imaterial (uso remunerado) Bem material (subitem da lista)
Cessão de andaimes (3.05)
Exploração de salões de festa, stands, quadras esportivas, casas de espetáculos, parques de diversões (3.03)
Bem imaterial (uso remunerado) Bem imaterial
Cessão de direito de uso de marcas e sinais de propaganda (3.02)
Licenciamento ou cessão de direito de uso de software (1.05)

 

 

 

Autor: Alberto Macedo  é mestre e doutor em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela USP; MBA em Gestão Pública Tributária pela Fundação Dom Cabral – FDC. Professor de Direito Tributário no Insper, FGV, IBDT e IBET; Auditor Fiscal, Representante de São Paulo na Câmara Técnica Permanente da ABRASF; Assessor Especial da Secretaria Municipal da Fazenda de São Paulo; Ex-Subsecretário da Receita Municipal; Ex-Presidente do Conselho Municipal de Tributos.


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