Limitações ao direito do autor, cópia privada e engenharia reversa

José Octavio Araújo Motta Junior*

No Brasil, ao contrário dos EUA, existe uma série de previsões legais para situações não atingidas pelo Direito do Autor. Estão previstas pelo art. 46 da Lei 9.610/98 (Lei dos Direitos Autorais) e pelo art. 6º da Lei do Software. Anteriormente, eram previstos pelo art. 49 da antiga Lei 5.988/73. Na verdade, sob um ponto de vista científico, esses artigos confundem os limites ao direito do autor propriamente ditos com certas atividades que deveriam ficar à margem da proteção ao direito do autor. O direito a uma cópia privada sem o intuito de lucro, na verdade, é uma expressão do princípio da liberada do uso privado [1]. O direito à reprodução está implícito, assim como a restrição quanto ao lucro. Afinal, como o Direito do Autor é um meio de incentivo econômico, o exclusivo é exatamente o direito de exploração econômica da obra, não podendo esta ser utilizada para fins de lucro sem autorização.

A Lei do Software também prevê certas hipóteses próprias a este tipo de obra protegida. O art. 6º, em seu inciso I, consagra no direito brasileiro o direito de cópia de segurança (backup) com a redação: “a reprodução, em um só exemplar, de cópia legitimamente adquirida, desde que se destine à cópia de salvaguarda ou armazenamento eletrônico, hipótese em que o exemplar original servirá de salvaguarda”. Já o inciso II do mesmo artigo expressamente determina ser lícito “a ocorrência de semelhança de programa a outro, preexistente, quando se der por força das características funcionais de sua aplicação, da observância de preceitos normativos e técnicos, ou de limitação de forma alternativa para a sua expressão”. Este artigo é muito relevante ao direito brasileiro, pois enfatiza o Princípio Constitucional de Livre Concorrência e as limitações do Direito do Autor quanto a impossibilidade de proteger idéias e elementos funcionais. Em sintonia com a melhor prática do Direito encontra-se a Lei Brasileira, e no mesmo sentido tem caminhado o Direito nos EUA, através de decisões judiciais, como no caso SEGA vs. Accollade ou Lotus Development Corp. vs. Borland International em 1995, e da Comunidade Européia [2]. Infelizmente, a lei Brasileira é omissa no que tange à engenharia reversa de software.

O caso Lotus Development Corp. vs. Borland International [3] foi uma disputa judicial entre duas empresas produtoras de Software. A Lotus produzia o Lotus 1-2-3, e a Borland, o Quattro Pro. A Borland produziu seu programa de computador com a interface idêntica ao da Lotus, de maneira que os usuários da Lotus 1-2-3 pudessem usar o Quattro Pro sem dificuldades. A Lotus entrou com ação em face da Borland por infração de Copyright. Grande parte da controvérsia foi a respeito da possibilidade de se proteger pelo direto do autor a mera interface do programa. Por fim a decisão final achou “absurdo” sugerir que “se alguém faz uso de vários programas diferentes, seja forçado a aprender como efetuar cada a mesma operação de maneiras diferentes em cada programa utilizado”. A corte decidiu que, se uma empresa atinge um monopólio, por conseqüência a maioria do mercado fica bem adaptada à interface de seu programa. Desse modo, é justo que um competidor utilize a mesma interface como meio de concorrência. Podemos entender que no mesmo sentido caminha a Lei do Software brasileira, em consonância com os princípios constitucionais.

Como vimos, a expansão do Direito do Autor e o Controle Tecnológico de proteção tem colocado em xeque os tradicionais limites do Direito do Autor. Nos EUA, existe um grande debate sobre a hierarquia das normas que tratam desta questão: pode uma lei estabelecer uma nova proteção ao direito do autor que efetivamente neutralize a doutrina do Fair Use, ou esta doutrina constituiria um direito que não poderia ser afetado? De fato, naquele país, a expansão da proteção ao direito do autor vem erodindo progressivamente o Fair Use, visto que os titulares do direito do autor agora detêm a capacidade de expandir seu controle sobre a obra. Esta expansão tem sido alcançada por dois meios. O primeiro é a utilização de mecanismos tecnológicos de controle de acesso à obra que são mesclados em suas fixações, e o segundo ocorre por uso de licenças de utilização, tais como as “Shrink-Wrap” e “Click-Wrap” [4], sobre quais o usuário final não detém nenhum controle. São contratos de adesão que podem impor ao usuário condições e restrições mais fortes do que as previstas na legislação e virtualmente neutralizam a doutrina do Fair Use. Nos EUA, como as possibilidades utilização vêm progressivamente sendo codificadas na própria fixação da obra, e esse código é protegido pela Lei e pelas licenças de uso, quem está determinando as limitações são os próprios produtores, e não a sociedade através de leis.

E quanto ao Brasil? É possível que mecanismos de Controle Tecnológico de Acesso ou Licenças de Utilização tenham o escopo de efetivamente impedir a utilização das obras nos termos do art. 46 da LDA/98 ou do art. 6º da Lei do Software? Podem os produtores, fazendo uso de diversos meios tecnológicos, como o Digital Rights Management ou proteções anticópia, deter o controle absoluto sobre a utilização da obra? Entendo que não. As hipóteses previstas são normas de ordem pública. Torna-se, destarte, inafastável sua aplicação por qualquer contrato ou mecanismo tecnológico de controle. Como é notório, ao contrário das normas dispositivas, as normas cogentes são aquelas que amparam altos interesses sociais e não podem ser afastadas pela vontade das partes – seja essa vontade expressa por uma licença ou por um mecanismo de controle. É esta a fundamental diferença entre o jus cogens e o jus dispositivum, que torna as hipóteses previstas nos artigos inatingíveis. Outro não pode ser o entendimento, especialmente porque essas normas têm o fito de descaracterizar a violação ao direito do autor, inclusive na esfera do direito criminal, tanto por tratar-se de norma penal em branco e conforme expressamente previsto pelo art. § 4º do art. 184 do Código Penal.

Mas e quanto ao art. 107 da LDA/98? Bom, entendo que este artigo visa defender somente os mecanismos tecnológicos cujo objeto seja protegido pelo direito do autor. Não tem o escopo de permitir aos titulares outorgar-se de novos direitos fora das hipóteses previstas na lei. Portanto, não havendo violação ao Direito do Autor nos termos da lei, não é aplicável à proteção do art. 107. Em outras palavras, somente será aplicável o disposto neste artigo nas hipóteses em que efetivamente existir uma violação ao direito do autor, excluindo-se expressamente aquelas previstas pelo arts. 46 da LDA/98 e 6o da Lei do Software, que não podem ser afastados nem pelo uso de licenças de uso, nem por dispositivos tecnológicos. O mesmo pode ser dito em relação a objetos que não podem ser protegidos pelo direito do autor. Ora, não há razão para aplicar o art. 107 nas situações sob as quais não recai a proteção autoral.

E quanto às hipóteses previstas nesses artigos, são exemplificativas ou exaustivas? Em geral, entende-se que as hipóteses são exaustivas devido ao comando do art. 4º da LDA/98 que determina a interpretação estrita dos negócios jurídicos relacionados ao Direito do Autor. Na verdade, algumas das hipóteses previstas são razoavelmente vagas e sujeitas a interpretação. Mas seja como for, é mister perceber que as hipóteses enumeradas pelos arts. 46 da LDA/98 e 6º da Lei do Software não constituem a totalidade das limitações ao direito do autor. Em outros artigos da própria Lei do Direito do Autor, por exemplo, encontramos limites quanto ao que se pode ser objeto de proteção. Além disso, como vimos, existem princípios constitucionais aos quais o Direito do Autor está sujeito. Uma provisão de anti-circunvenção não deve ter o fito de impedir a divulgação de pesquisas científicas, ainda que formalmente os resultados possam formalmente violar os preceitos dessa lei.

Cópia privada

A LDA/98 limitou a reprodução privada sem fins lucrativos através do art. 46, inciso II, à “reprodução, em um só exemplar de pequenos trechos, para uso privado do copista, desde que feita por este, sem intuito de lucro”. Estaria desse modo expressamente abolido o direito à cópia privada nos termos do art. 49 da antiga Lei 5.988/73? Seria no Brasil ilegal fazer uma cópia privada sem fins lucrativos? Certamente que não. Trata-se de um direito que escapa ao alcance do Direito do Autor, protegido pelo princípio da livre utilização privada. Neste sentido entende a doutrina majoritária, como o jurista JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, que ensina que permissão da cópia privada é “(…) uma manifestação do princípio da liberdade do uso privado.” e que “(…) é livre a reprodução para o uso privado. Isto é mera decorrência de direito patrimonial se reduzir a um exclusivo de exploração econômica da obra” (grifei) [5]. No mesmo sentido, afirma ANGELA BITTENCOURT BRASIL, membro do Ministério Público do Rio de Janeiro, que: “Temos nos posicionado sempre de forma a entender que realmente as cópias de obras feitas para o uso particular não fere o direito do autor” [6].

A legalidade da cópia privada, que existia através de construção doutrinária, foi consagrado no direito brasileiro pela Lei 10.695, de 1o de Julho de 2003, que alterou dispositivos do Código Penal e do Código de Processo Penal relacionados ao Direito do Autor. Entre os artigos alterados encontra-se o novo § 4º do art. 184 do Código Penal, com a seguinte redação, in verbis:

“Art. 184. Violar direitos de autor e os que lhe são conexos:
(…)
§ 4º O disposto nos §§ 1º, 2º e 3º não se aplica quando se tratar de exceção ou limitação ao direito de autor ou os que lhe são conexos, em conformidade com o previsto na Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, nem a cópia de obra intelectual ou fonograma, em um só exemplar, para uso privado do copista, sem intuito de lucro direto ou indireto.” (grifei)

Assim como na redação anterior, a conduta descrita no caput exige o elemento subjetivo do dolo, e as condutas dos parágrafos exigem também o intuito de lucro. A grande mudança está na previsão expressa da cópia privada como limitação ao direito do autor. A menção expressa às exceções expressamente previstas na LDA/98 é desnecessária, uma vez que, como vimos, existem limitações não expressamente previstas naquela lei. Para não falar na própria Lei do Software, que estabelece limitações específicas.

Engenharia reversa de software

Conforme percebemos, no Direito Brasileiro existem outras utilizações livres não expressamente previstas na LDA e na Lei n° 9.609/98, conhecida como “Lei do Software”. Seria este o caso, então, da engenharia reversa de software? Este mecanismo é protegido tanto nos EUA quanto na Europa, mas a lei brasileira é completamente omissa nesse ponto: nada diz a favor, nem contra. Seria esta atividade permitida no ordenamento jurídico brasileiro, não constituindo ofensa aos direitos dos titulares dos programas de computador? Entendo que sim, desde que a engenharia reversa de software opere justamente sobre objetos que são insuscetíveis de proteção pelo direito do autor. Não existe proteção a estes, conforme determina o art. 8º da LDA/98.

No que diz respeito à utilização idéias e elementos funcionais presentes em outro programa de computador, não existe nenhuma violação ao direito do autor, conforme podemos aduzir da interpretação do art. 6º, inciso III, da Lei do Software, com a seguinte redação: “a ocorrência de semelhança de programa a outro, preexistente, quando se der por força das características funcionais de sua aplicação, da observância de preceitos normativos e técnicos, ou de limitação de forma alternativa para a sua expressão”. Ora, se essas características não são protegidas, qual seria a base para proibir-se a descompilação de um determinado software com o fim de obtê-las?

Para além disso, temos em questão o princípio Constitucional da Livre Concorrência. O Direito do Autor não pode ser utilizado para a proteção de monopólios ou eliminação de concorrência. A engenharia reversa de software é um importante elemento de pesquisa que visa o aumento de concorrência e o desenvolvimento da tecnologia, em nada afetando o que é protegido. Entendê-la como lícita é, ao mesmo tempo, a boa interpretação dos princípios do Direito do Autor e a aplicação prática dos princípios constitucionais. Especialmente em um mundo cada vez mais globalizado, um país importador de tecnologias de informação como o Brasil não deveria excluir de seu ordenamento jurídico este importante meio de promoção de pesquisa tecnológica e incentivo à livre concorrência. Sobretudo em um contexto internacional onde este meio tem sido amplamente permitido, em que pese os constantes debates doutrinários e jurisprudenciais, não permitir a engenharia reversa de software no Brasil não seria o melhor para estimular nossa incipiente indústria de software, nem a prática do melhor direito.

Notas de rodapé:

[1] ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Autoral. 2ª ed, Rio de Janeiro, Renovar, 1997, p. 257

[2] SANTOS, Manoel J. Pereira dos. A Nova Lei do Software: Aspectos Controvertidos da Proteção Autoral. Disponível em . Acessado em 30 de junho de 2003.

[3] http://www.findlaw.com

[4] “Shrink-Wrap” é a licença cujo ato de aceitação ocorre com a abertura da embalagem do produto. Na licença “Click-Wrap” o ato de aceitação é um comando de computador que ocorre durante a instalação do programa. A licença é exposta na tela e o usuário deve inserir um comando concordando com os termos da licença para que a instalação continue.

[5] ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Autoral. 2ª ed, Rio de Janeiro, Renovar, 1997, p. 257

[6] ROCHA FILHO, Valdir de Oliveira, Violação de Direitos de Propriedade Intelectual Através da Internet, in Direito e a Internet, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2002, p. 175

[7] BRASIL, Angela Bittencourt. O Napster nos caminhos da legalidade. Direito na Web, 2000. Disponível em . Acessado em 30 de junho de 2003.

José Octavio Araújo Motta Junior é advogado formado pela Puc-Rio e responsável pelo site www.netdireito.com.br”.

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