Litisconsórcio previsto na reforma trabalhista é incompatível com a CLT

Autor: Júlio César Bebber (*)

 

1. Considerações iniciais
O ordenamento jurídico admite o uso de demanda judicial de natureza constitutiva-negativa com o escopo de eliminar do mundo jurídico:

a) uma cláusula do contrato de trabalho;

b) um acordo individual de trabalho ou uma de suas cláusulas;

c) uma convenção ou acordo coletivo de trabalho ou uma de suas cláusulas.

A demanda que tem por objeto a eliminação do mundo jurídico de uma cláusula do contrato de trabalho ou de um acordo individual de trabalho ou de uma de suas cláusulas não suscita dúvidas ou polêmicas. É uma demanda trabalhista como qualquer outra, cuja competência funcional originária para processamento e julgamento é de Vara do Trabalho.

Por outro lado, a demanda que tem por objeto a eliminação do mundo jurídico de convenção ou acordo coletivo de trabalho ou de uma de suas cláusulas suscita dúvidas e polêmicas, que serão agravadas com a inserção à CLT do artigo 611-A, parágrafo 5º, cuja redação é a seguinte:

CLT, 611-A, § 5º. Os sindicatos subscritores de convenção coletiva ou de acordo coletivo de trabalho deverão participar, como litisconsortes necessários, em ação individual ou coletiva, que tenha como objeto a anulação de cláusulas desses instrumentos.

Referida regra padece de boa técnica e é absolutamente inadequada (ao invés de solucionar, criará sérios problemas), como tentarei demonstrar nas linhas seguintes.

2. Considerações específicas
Os pedidos de declaração de nulidade e de ineficácia de convenção ou acordo coletivo de trabalho ou de uma de suas cláusulas podem ser veiculados em demandas de natureza individual ou coletiva.

2.1. Demandas de natureza individual
Em demanda ajuizada pelo empregado em face do empregador, pode ser deduzido pedido de declaração de nulidade e de ineficácia de convenção ou acordo coletivo de trabalho ou de uma de suas cláusulas.

Tal pedido, porém, terá (sempre) natureza prejudicial (incidental). Ou seja, a aferição da validade e da eficácia da CCT, do ACT ou de suas cláusulas convencionais constitui pressuposto ao acolhimento ou rejeição de outro pedido — que é o pedido principal (por exemplo, declaração de nulidade de cláusula que estabelece desconto de certo valor do salário para custeio de taxa de reversão, com repasse ao sindicato profissional, como requisito ao acolhimento do pedido de devolução dos valores descontados)[1]. Em outras palavras: para decidir o pedido principal, terá o juiz, na motivação (incidenter tantum), “de apreciar e resolver pontos controvertidos (questões), havidos como antecedentes lógicos”[2].

Diante desse quadro, podemos afirmar que não há possibilidade alguma de demanda individual ter por objeto (mérito)[3] a nulidade e a ineficácia de CCT, de ACT ou de algumas de suas cláusulas. Esses pedidos serão sempre antecedentes lógicos de outro pedido, e a decisão sobre eles proferida jamais ficará acobertada pela coisa julgada material (CPC, 503, parágrafo 1º, III)[4]. Idêntica situação ocorre com o pedido, em demanda cível ou trabalhista, de declaração de inconstitucionalidade de norma legal (mediante controle difuso). Tal pedido jamais será o objeto da demanda, mas sua resolução incidental (incidenter tantum) constituirá pressuposto lógico ao deferimento ou indeferimento de outro pedido (esse, sim, seu objeto)[5].

Da assertiva acima decorre, então, a impossibilidade jurídica de aplicação da parte do artigo 611-A, parágrafo 5º, da CLT que dispõe que os sindicatos deverão participar, como litisconsortes necessários, em ação individual que tenha como objeto a anulação de cláusulas convencionais, uma vez que esta (anulação de cláusulas convencionais) jamais será objeto daquela (ação individual).

Supondo-se, entretanto, que haja possibilidade jurídica de aplicação do artigo 611-A, parágrafo 5º, da CLT, tem-se que admitir que ao ingressarem no processo como litisconsortes necessários as entidades sindicais (e não especificamente os sindicatos, uma vez que normas convencionais também podem ser firmadas por federação e confederação) possuirão a condição de parte. Sendo vencidas, ao recorrer deverão pagar custas processuais e efetuar o depósito da condenação? Se sucumbentes (mediante declaração de nulidade e de ineficácia de norma convencional) ou vencedoras, serão respectivamente condenados ou receberão honorários advocatícios (CLT, 791-A)? Havendo trânsito em julgado da decisão, deverão adotar algum comportamento relativamente à CCT, ao ACT ou às cláusulas anuladas ou declaradas ineficazes ou a participação na demanda é meramente casual — para o caso concreto?

Tomando-se como premissa, de outro lado, que o texto do artigo 611-A, parágrafo 5º, da CLT é produto de leigos, com boa vontade e torturando todos os métodos interpretativos conhecidos, pode-se presumir que o se quis foi:

a) apenas determinar a oitiva das entidades sindicais em demanda individual. Se essa foi a intenção, melhor seria, a fim não comprometer a razoável duração do processo (CF, 5º, XXXV e LXXVIII), exigir a mera comunicação (que poderia até mesmo ser realizada extrajudicialmente pelo interessado, com comprovação nos autos) da demanda aos sindicados subscritores da norma convencional, garantindo-se-lhes a faculdade de intervir no processo como amicus curiae (CPC, 138) ou como assistente simples (CPC, 119 e 121);

b) ou antecipar uma eventual demanda de regresso. Se essa foi a intenção, para evitar dúvidas acerca da aplicação subsidiária dos arts. 125 a 129 do CPC, melhor seria ter expressamente autorizado a denunciação da lide.

2.2. Demandas de natureza coletiva
Em demanda ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho em face das entidades sindicais (hipótese mais comum), pode ser deduzido pedido de declaração de nulidade e de ineficácia de convenção ou acordo coletivo de trabalho ou de uma de suas cláusulas (CF, 127; LC 75/1993, 83, IV)[6]. Excepcionalmente, também podem ajuizar demanda com esse mesmo objeto, “entes coletivos representativos de categorias econômicas ou profissionais, que não tenham subscrito a norma coletiva, caso se considerem prejudicados em sua esfera jurídica em decorrência da convenção ou do acordo coletivo”[7], bem como a entidade sindical ou a empresa (sic) signatária que alegar que a norma convencional está contaminada por um dos vícios dos negócios jurídicos (CC, 166)[8].

A jurisprudência trabalhista firmou entendimento de que tal demanda:

a) pode ser ajuizadas mesmo após o termino do prazo de vigência do instrumento convencional[9];

b) tem natureza coletiva, porque a norma convencional nela debatida tem natureza normativa e vincula a categoria ou determinado grupo de empregados[10];

c) será processada e julgada originariamente[11]:

por TRT (CLT, 678, I, aplicado analogicamente) — sempre que o conflito abranger categorias situadas exclusivamente na sua competência territorial.[12] Da decisão do TRT caberá impugnação por meio de recurso ordinário (CLT, 895, II) para a SDC do TST (RI, 70, II, b; 225, I);

pelo TST (RI, 70, I, c) — sempre que o conflito abranger categorias situadas na competência territorial de mais de um TRT,[13] ressalvadas a hipótese de abrangência de toda (e somente) a área territorial do Estado de São Paulo, que alberga os TRTs da 2ª e da 15ª Regiões (Lei n. 7.520/1986, 12).

Sendo a demanda ajuizada:

a) pelo Ministério Público do Trabalho ou por entidade coletiva representativa da categoria que não subscreveu a norma coletiva, mas é por ela prejudicada em sua esfera jurídica — as entidades sindicais subscritoras da norma convencional serão rés em litisconsórcio passivo necessário (diante da natureza da relação jurídica controvertida – CPC, 114) e unitário (uma vez que a natureza da relação jurídica impõe decisão de mérito uniforme para todos os litisconsortes – CPC, 116);

Se as entidades sindicais subscritoras da norma convencional serão rés, também participarão (sic) do processo como litisconsortes (CLT, 611-A, parágrafo 5º) de quem? E com que finalidade?

Tomando-se como premissa, novamente, que o texto do artigo 611-A, parágrafo 5º, da CLT é produto de leigos, com boa vontade e torturando todos os métodos interpretativos conhecidos, pode-se presumir que o se quis dizer com “parte” do dispositivo legal foi que nas demandas ajuizadas pelo Ministério Público do Trabalho ou por entidade coletiva representativa da categoria que não subscreveu a norma coletiva, as entidades sindicais subscritoras serão rés em litisconsórcio passivo necessário.

b) entidade sindical ou empresa (sic) signatária que alegar que a norma convencional está contaminada por um dos vícios dos negócios jurídicos — a outra entidade sindical ou empresa (sic) subscritora da norma convencional será ré.

Se a relação jurídica material controvertida é bilateral e há uma entidade sindical e uma empresa (sic) em cada um dos polos da relação jurídica processual, a entidade sindical subscritora também participará (sic) do processo como litisconsorte de quem?

Nesse caso, nem a premissa de que o texto legal é produto de leigos, e tampouco a boa vontade e a tortura aos métodos interpretativos conhecidos salva a absoluta impossibilidade jurídica de aplicação do artigo 611-A, parágrafo 5º, da CLT.

3. Conclusões
Porque o artigo 611-A, parágrafo 5º, padece de boa técnica, uma vez que utiliza uma linguagem leiga, é incongruente com o ordenamento legal vigente e não encontra espaço jurídico para sua aplicação sem (ridículos) remendos, melhor seria se não fosse incluído na CLT.

 

 

 

 

Autor: Júlio César Bebber  é juiz do Trabalho e doutor em Direito do Trabalho.

 


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