Livre fluxo de dados é caminho sustentável para a economia digital

Autores: Patricia Peck e Coriolano Almeida Camargo (*)

 

A Organização Mundial do Comércio (OMC) tem como uma de suas prioridades, dentro das 11 submissions em andamento, promover a agenda digital entre os países. Isso significa que deve estimular o comércio eletrônico. Para que isso ocorra, faz parte das discussões um dos temas mais atuais e delicados do ponto de vista das relações internacionais entre os países: free data flow,  ou seja, livre fluxo de dados entre as fronteiras.

Conforme entendimentos da OMC, as exigências de localização geográfica de servidores de dados entre países podem vir a serem consideradas como barreiras tarifárias. Tem havido muitas solicitações de empresas da nova economia digital para que haja uma política internacional no tocante à gestão global das bases de dados. No entanto, a preocupação quanto a privacidade e proteção de dados veio aumentando nos últimos anos, assim como as regulamentações sobre essa matéria, seja em nível nacional ou regional do ponto de vista dos países participantes da OMC.

Em 2016 assistimos a uma série de iniciativas demonstrando uma exigência maior de vários países quanto a localização das bases de dados. Será que com tantos avanços tecnológicos em prol de uma maior liberdade e livre circulação de pessoas e bens nos deparamos agora com um movimento contrário? Que busca de forma nostálgica voltar a um passado onde se buscava um isolamento para se proteger das “mudanças”?

Afinal, as transformações econômicas e sociais pelas quais a sociedade vem passando e os efeitos da globalização por certo incomodam alguns, geram desestabilização daqueles que estão no controle da situação do status quo. O que é oportunidade e chance de ascensão para uns, para outros é enxergado como risco, como um grande ameaça.

As notícias sobre os métodos de espionagem da CIA nos meios digitais, conforme relatado pelo WikiLeaks, por certo abalaram os planos de gerar uma agenda positiva para estimular o fluxo de dados entre os países. O que fez aumentar a desconfiança quanto a posição dos Estados Unidos no tocante a uma ação mais transparente e o cumprimento das novas regulamentações, como a General Practice Research Database (GDPR), diretiva que deve entrar em vigor em maio de 2018 e estabelece limites e transparência com a privacidade de dados dos consumidores europeus.

Estamos assistindo a um movimento contrário à tendência de globalização das fronteiras digitais, que era esperado desde os anos 90 com o advento do www por Tim Bernes Lee. A tão falada polarização ganhou contornos cada vez mais nítidos e os discursos a favor ou contra das figuras políticas foram insuflados pela repercussão nas mídias sociais. Um dos bordões recorrentes no período foi por “retomar o controle das fronteiras”, enfatizado em campanhas políticas no discurso contra a imigração pelo Brexit e na retórica de Donald Trump.

São muitas questões delicadas envolvidas nesse movimento que privilegia o fortalecimento e a proteção das divisões geográficas, mas tal ocorrência também tem sido vista com frequência no ambiente digital. Muitos países estão promovendo diferentes medidas para armazenar os dados dos cidadãos no próprio território. Em novembro, por exemplo, a Rússia anunciou o bloqueio da rede social LinkedIn, o primeiro site a ser proibido no país após a entrada em vigor da lei que estipula às empresas de internet armazenarem as informações dos usuários russos na Rússia.

Como atualmente os dados são a nova moeda da economia, empresas de tecnologia são compradas e vendidas levando em consideração o seu patrimônio de bases de dados. Vide a aquisição do WhatsApp pelo Facebook. Dois anos após a transação, o WhatsApp informou que passaria a compartilhar mais dados com o Facebook para “melhorar suas experiências com anúncios e produtos” da rede social. A reação foi imediata. O Comissariado de Proteção de Dados da Alemanha proibiu a transferência e o armazenamento de dados dos usuários alemães. O órgão regulador ordenou ainda que a empresa americana apagasse as informações.

Isso aconteceu porque a entidade Comissária de Proteção de Dados e Liberdade de Informação de Hamburgo entendeu que quando ocorreu a compra, a empresa declarou que não teria compartilhamento de dados entre elas, visto que não houve coleta de consentimento prévio dos usuários para tanto, atendendo a legislação alemã e também da Diretiva Europeia (Regulamento 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho + artigo 16 (1) Tratado de Lisboa + artigo 8 Carta dos Direitos Fundamentais da EU).

Autoridades britânicas também pressionaram contra a mudança na política de privacidade, tanto que o aplicativo de mensagens WhatsApp decidiu suspender temporariamente o compartilhamento de dados com o Facebook em toda a Europa.

Por aqui, presenciamos a discussão acerca da guarda de desde a elaboração do Marco Civil da Internet. À época, havia a intenção de incluir um dispositivo na lei obrigando a guarda de dados dos usuários brasileiros no país, mas que não chegou a ser aprovado. Pela lei aprovada, ficou estipulada no artigo 11 que “Em qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de internet em que pelo menos um desses atos ocorra em território nacional, deverão ser obrigatoriamente respeitados a legislação brasileira e os direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros”.

Na Alemanha, essa discussão também teve início em 2013, quando a chanceler alemã Angela Merkel foi à França discutir os detalhes de um projeto para obrigar que o Google, o Facebook e outros serviços de internet protejam a privacidade dos usuários. Ela também propõe que a guarda dos dados seja feita na Europa. Em entrevista ao canal oficial do governo no YouTube, Angela Merkel foi incisiva: “Nós precisamos fazer mais pela proteção de dados na Europa. Isso não é, nem de longe, uma pergunta”. A ideia por trás do projeto é absolutamente simples: manter os dados no próprio território para evitar a espionagem praticada por outros países.

Tamanha preocupação com a base de dados envolve não somente questões de privacidade, mas também de propriedade intelectual. A proteção das bases de dados é prevista como objeto de proteção autoral da mesma forma que as compilações de diversas obras. Assim, uma base de dados é considerada uma obra original quando ela constitui uma criação intelectual própria do seu autor, havendo a proteção dessa seleção de conteúdo, e não da informação em si, nem mesmo a forma como está expressa.

Em outras palavras, a propriedade intelectual é a plataforma econômica atual. Segundo Manuel Castells “as novas tecnologias da informação não são simplesmente ferramentas a serem aplicadas, mas processos a serem desenvolvidos. Pela primeira vez na história, a mente humana é uma força direta de produção, não apenas um elemento decisivo no sistema produtivo” (Castells, 2003). Por isso, no que tange ao tema de bens intelectuais, de estímulo à inovação, houve a necessidade de construção de marcos legais para que fosse possível a construção de uma arquitetura mais robusta com garantias e com limitações em uma equação chamada de “checks and balances”.

Na Câmara dos Deputados, por exemplo, está em tramitação o PL 5276/2016 que discute o tratamento de dados pessoais para a garantia do livre desenvolvimento da personalidade e da dignidade. A proposta tem como objetivo proteger os direitos fundamentais de liberdade e privacidade, respeitando a autodeterminação informativa; a liberdade de expressão, de comunicação e de opinião; a inviolabilidade de intimidade, da vida privada, da honra e da imagem; o desenvolvimento econômico e tecnológico e a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor.

Entre os princípios, destacam-se tanto a garantia da liberdade de expressão como a proteção à privacidade e aos dados pessoais. Gradativamente, com oscilações, cortes nacionais e internacionais têm sido provocadas a delimitar o alcance de direitos e liberdades na era da internet. Ao mesmo tempo, marcos jurídicos têm sido aprovados com a ambição de estabelecer parâmetros, princípios, garantias, direitos e deveres no mundo digital. Se os avanços da tecnologia da informação e das comunicações podem ameaçar e violar direitos, também têm a potencialidade de promover e fortalecer esses mesmos direitos.

É inquestionável que na efetivação da proteção da propriedade intelectual no meio digital a tecnologia acaba por ditar o que é possível de ser feito, tanto por peculiaridades técnicas como por questões de impraticabilidades devido à relação custo e benefício. Não há como regular a matéria sem levar em consideração as questões de ordem técnica. O que significa que haverá uma tendência de se gerar mecanismos de controle tecnológico para garantir eficácia jurídica para a proteção dos bens imateriais e isso provavelmente será relatado em futuros tratados ou convenções internacionais sobre a matéria, especialmente no tocante aos direitos autorais.

Direitos humanos off-line devem ser também protegidos on-line. Daí a relevância de identificar ações, programas e políticas inovadoras e estratégicas para utilizar o potencial digital para a promoção de direitos. Vale destacar que na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas consta a expansão das tecnologias da informação e a necessidade de enfrentar as profundas desigualdades digitais, desenvolvendo as sociedades do conhecimento. Ou seja, presenciamos cada vez mais a urgência de uma educação e cidadania digitais inspiradas em valores éticos, e leis que regulem e garantam um ambiente online seguro e sustentável.

Sendo assim, a evolução da discussão deverá trazer uma maior tratativa sobre um sistema de controles mais eficiente, que passa pela aplicação de tecnologia, e pela concordância sobre um rol de limitações que possa ficar melhor definido em um contexto global-digital.

Territorializar a internet não é um caminho viável. Na verdade, estaria na contramão evolutiva do que foi conquistado até hoje com todos os tratados e convenções internacionais e com os próprios avanços tecnológicos. Seria muito melhor trazer um tribunal internacional para as questões digitais que pudesse melhor resolver os conflitos gerados neste ambiente, de forma célere, multicultural e multiterritorial.

Por outro lado, não há como construir um caminho sustentável se não houver confiança. O comércio internacional depende disso. A história é cíclica e ensina que devemos cooperar no sentido de vislumbrar um tratado internacional que possa trazer pelo menos alguns parâmetros mínimos a serem seguidos no tocante à livre circulação de dados pelas fronteiras digitais e globais da internet.

É neste momento que vemos que apesar da capacidade humana de evolução tecnológica, dependemos totalmente de nossas habilidades políticas para coexistirmos em uma grande aldeia global. A Internet está provocando justamente este salto evolutivo. Seremos capazes de desenhar um modelo padrão para fomentar uma economia mundial digital que funcione neste nível? Multiterritorial e multiculutral, sem ser em caráter excepcional ou em situações de guerra?

Independente de qual novo modelo seja implementado, ele precisa buscar melhor equacionar direitos privados e interesse público, bem como deixar muito mais claro transparente quais são os direitos e obrigações de cada um dos envolvidos, sejam os criadores, os titulares, os consumidores e os usuários (que hoje também participam da criação e acabam pagando por serviços com seus próprios dados).

Na Era Digital, a solução para alcançar a neutralidade, a proteção e a transparência dos dados será por meio da tecnologia. Ferramentas como o blockchain garantem que não haja desconfiança entre as nações e facilitam que o mesmo modelo de segurança seja adotado em diferentes territórios.

A nacionalização dos dados não é caminho para promover a governança global, e sim convenções e tratados internacionais que fortaleçam a confiança e a transparência no ambiente neutro mundial que deveria ser a Internet. O que viabiliza isso hoje é a nuvem (cloud) que pode garantir um espaço digital neutro que não está em um ou outro Estado mas sim no espaço coletivo digital, com regras comuns que todos devam seguir e não país a país, o que é inviável.

Por meio desses acordos que delimitem a proteção por meio dos dispositivos tecnológicos, a estratégia de neutralidade da nuvem pode continuar como um dos grandes trunfos da sociedade da informação. Regras claras multilaterais e tecnologia única e forte: este sim é um caminho sustentável para a economia digital.

 

 

 

 

Autores: Patricia Peck é estrategista jurídica, consultora especializada em Direito Digital, Tecnologia da Informação e Risk Management, e autora do livro DireitoDigital (Saraiva, 2002).

 Coriolano Almeida Camargo  é advogado especialista em Direito Digital e sócio do escritório Almeida Camargo Advogados.


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