Maioridade Penal – Redução?

Mais uma atrocidade cometida por “adolescente” neste país acendeu de novo a polêmica em torno da redução da maioridade penal, consagrada hoje, no art. 228 da Constituição, por um critério meramente biológico, em 18 anos.

Voltou-se a discutir sua redução, através de uma emenda à Constituição (acompanhada de alterações no Código Penal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, respectivamente em seus arts. 27 e 104), para 16 anos.

Duas questões se impõem levantar: 1ª) Pode haver tal redução, do ponto de vista constitucional?; 2ª) É conveniente se partir para esta redução?

Parece-me que não há qualquer inconstitucionalidade em uma emenda que vise a reduzir a maioridade penal, porque o art. 228 não se insere dentre as chamadas “cláusulas pétreas”, que são limitações, impostas pelo art. 60, § 4o, da Constituição, à sua reforma.

Nada obstante pelo teor do art. 5º, § 2o, da Constituição, o rol dos direitos e garantias individuais não seja exaustivo, admitindo a coexistência de outros que decorram dos princípios estabelecidos na Constituição e de Tratados Internacionais que o Brasil seja parte, não me parece que a maioridade penal se insira em tais princípios, a ponto de deslocá-la para o rol dos direitos e garantias individuais, o que a tornaria cláusula pétrea. Além do mais o extenso rol dos direitos e garantias individuais se dedicou à saciedade ao direito penal, não se podendo imaginar que o constituinte tenha se esquecido de nele incluir a questão da maioridade, se assim o quisesse fazer. Quanto aos tratados internacionais, uma consulta ao art. 5o, número 5, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, nos revela que o tratado silencia quando à maioridade penal, deixando a cargo das legislações internas de cada país signatário a sua disciplina, dispondo, apenas, que, “que os menores, quando puderem ser processados, deve ser separados dos adultos e conduzidos a tribunal especializado…” . Se não é cláusula pétrea, pode perfeitamente ser objeto de emenda constitucional.

Reconheço que esta questão é polêmica. Mas advirto que, se formos enxergar como cláusulas pétreas todos os dispositivos da Constituição pelo qual nutramos alguma simpatia, acabaremos por ver no texto constitucional coisas que nós gostaríamos que lá estivessem, mas que o constituinte não colocou. Assim, teremos “vertigens constitucionais”, o que o intérprete sério deve evitar.

Respondida a primeira indagação, passemos à segunda: se deveria ou não ser reduzida a maioridade penal para 16 anos.

Penso que esta reflexão estava mesmo passando da hora de ser aprofundada.

Em primeiro lugar, é bom frisar que não se trata de um fato isolado este assassinato que reacendeu a discussão. Qualquer pessoa medianamente informada e que tem acesso aos mais elementares meios de comunicação sabe que não é novidade jovens de 16 anos se dedicarem aos mais hediondos crimes. O tráfico recruta, em progressão geométrica, verdadeiros exércitos de jovens de 16 anos, dispostos a tudo – inclusive matar – pelo dinheiro fácil e abundante, pelo poder dentro das comunidades carentes, pelo destaque que esta situação deturpada lhe confere em seu meio.

E mesmo que fosse um fato isolado a acender a polêmica questão, não há nenhuma perplexidade nisto. Fatos gerarem juízos da valor, a demandarem a norma para regulamentá-los, nada mais é do que a festejada Teoria Tridimensional do Direito, do professor Miguel Reale: o Direito em suas dimensões fática, axiológica e normativa. Em síntese: os fatos acontecem; os intérpretes valoram esses fatos; e, conforme tal valoração, vem a norma a acolhê-los ou repudiá-los. Assim, perfeitamente legítima a discussão em comento, por ocasião de um evento com tamanha repercussão.

Do ponto de vista sociológico, é inquestionável que os menores de 18 anos de hoje não são mais os mesmos menores de 18 anos da década de 40, quando o Direito Penal se rendeu à maioridade aos 16 anos.

Aliás, é bom também esclarecer que é falsa a idéia de que seja tradição no Direito Brasileiro a maioridade aos 18 anos. Uma pesquisa, ainda que superficial, ao Código Criminal do Império do Brasil, ao Código Penal Republicano e à Consolidação das Leis Penais mostra que a questão da maioridade era tratada aos 16 anos, já tendo chegado até a 7 anos, num mescla de sistemas biológico e biopsicológico.

Ninguém menos do que o grande Nélson Hungria já defendeu, em seu anteprojeto de Código Penal, encomendado durante o Governo Jânio Quadros, a maioridade aos 16 anos.

E isto naquela época, dos românticos anos 60, década da juventude transviada, em que os deslizes desses jovens de 16 anos eram a “subversão”, fumar “maconha”, pequenos furtos para custear o vício, brigas depois da boemia, etc.

Esses deslizes aceitáveis desta época é que, recebendo uma valoração positiva do intérprete, acabaram por deixar os jovens de 16 anos de fora do Direito Penal, porque não fazia sentido puni-los por fenômenos típicos de uma adolescência imatura.

Hoje as coisas não funcionam mais assim. Quem ousa dizer que nossos jovens de 16 anos – que já podem eleger o Presidente da República – são imaturos, com toda a tecnologia que os meios de comunicação, inclusive a internet, colocam à disposição deles?! Se nossos jovens estão cada vez mais precoces no trabalho, no sexo, enfim, em todas as áreas de relacionamento, por que ainda há quem teime em lhes atribuir a responsabilidade penal? Data venia, parecem não querer enxergar o óbvio: que quem tem maturidade para votar, para trabalhar, para matar, para roubar, para traficar, para estuprar, deveria ter, também, para responder por seus atos, como qualquer adulto.

A redução da maioridade penal para 16 anos é decorrência lógica da evolução das relações sociais neste início de século XXI e da maturidade precoce que esses jovens adquiriram, até mesmo diante da constante ausência de seus pais que, nos dias atuais, saem de casa para trabalhar de manhã e retornam à noite para dormir.

Se isto vai ou não resolver o problema da criminalidade pouco importa. Não é mesmo tarefa do Direito Penal resolver o problema da criminalidade, cujas causas são indiscutivelmente sociais. Todavia, pelo menos haverá de tratar seus efeitos de forma mais adequada, posto que o atual sistema de maioridade aos 18 anos não satisfaz mais.

O que não se pode mais é conviver com jovens assassinos, traficantes e estupradores, misturados com outros adolescentes em estabelecimentos para inimputáveis, podendo receber, como punição máxima por suas atrocidades, apenas uma “internação” de 3 (três) anos. E isto quando o Juiz não adota o absurdo entendimento de que, com o advento do novo Código Civil, a desinternação teria passado a ser compulsória não mais aos 21, mas aos 18 anos, o que criaria uma estapafúrdia e teratológica regalia ao jovem de 17 anos, 11 meses e 29 dias: a de poder matar tranqüilamente qualquer pessoa, que sequer se terminaria de lavrar o auto infracional, posto que, na meia-noite do dia de seu aniversário, já com 18 anos, nenhuma sanção lhe poderia ser aplicada. Isto faria com que ele levasse um bolo de aniversário para a Delegacia e, durante a madrugada, cantasse “parabéns prá você”, sob os olhares perplexos da autoridade policial e da família da vítima. Lamentavelmente, há Juízes decidindo assim, com respaldo de Desembargadores.

Por derradeiro, um último alerta. A se caminhar para a redução da maioridade penal, via emenda constitucional, é preciso que se tenha em mente outros dispositivos do Código Penal e do Estatuto da Criança e do Adolescente (além dos já mencionados neste artigo) que se entrelaçam com a maioridade e, sistematicamente, perderiam seu sentido se também não fossem modificados. Assim, por exemplo, o próprio conceito de criança e adolescente, a questão da atenuante genérica e da redução dos prazos prescricionais em decorrência da menoridade, determinados crimes como a sedução etc. Toda a norma penal que leva em conta os 18 anos para outorgar benefício, deveria vir até os 16 anos, por uma questão de lógica (v.g, arts. 65, I e 115, do Código Penal). Assim como, de igual sorte, crimes como o de sedução, que atualmente presume inocente a vítima até os 18 anos, deveria vir para 16 anos (v.g., art. 217 do Código Penal).

A visão sistemática deve nortear o legislador nessa empreitada de atualização do Direito Penal face às demandas sociais que inauguram este século.

Esta a minha modesta opinião sobre o polêmico tema, com todas as vênias, para alimentar o debate, despedindo-me com Voltaire: “Não concordo com o que dizes, mas respeito até a morte o teu direito de dizer”.

MARCELO LESSA BASTOS

O autor é Promotor de Justiça no Estado do Rio de Janeiro
Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva
e professor de Direito Penal e de Processo Penal da
Faculdade de Direito de Campos, Mestre e Especialista em Direito Público.
mlbastos@fdc.br

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