1. Autonomia e Capacidade de fato
CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO destaca que o Direito Civil tutela os interesses dos homens em relação com outros homens numa perspectiva de autonomia da pessoa no desenvolvimento da sua personalidade. Da lição extrai-se que a idéia de autonomia permeia todo o Direito Civil, por revelar-se a fonte de realização da pessoa humana através do exercício da liberdade de escolha.
Não obstante a essencialidade e proeminência da autonomia em meio ao Direito Privado, força é reconhecer que não raro essa noção resta eclipsada por outra que lhe é afim, qual seja, a de capacidade de fato.
Como é sobejamente afirmado em doutrina, a capacidade de fato representa a aptidão para o exercício autônomo de direitos e para a assunção de obrigações. Trata-se, portanto, de uma espécie que comporta gradações conforme o maior ou menor grau de discernimento exigido em lei para a implementação válida de determinado ato jurídico . Em forma mais rudimentar, a capacidade de fato associa-se à consecução de atos jurídicos em sentido estrito; num plano mais elevado – o negocial – reveste-se de uma feição mais elaborada, reconhecida pela lei apenas àqueles que tenham atingido determinado patamar etário ou que tenham galgado certo nível de desenvolvimento intelectivo.
Do breve excurso acima efetivado, pode-se já divisar que autonomia e capacidade de fato aproximam-se na medida em que traduzem o poder de escolha, a potência decisional. Todavia, não há que se extrair desse eixo comum uma identidade de conteúdos. A autonomia, como princípio fundante do Direito Privado, representa uma categoria muito mais vasta do que a capacidade de fato. Nesse sentido, vale repisar a coerente lição de BRUNELLO STANCIOLI:
“A capacidade de fato pode ser vista, […], como a autonomia da vontade com “vestes” dogmáticas, do amparo legal. Ela, então, retira-se do campo meramente ético, vinculando-se ao Direito” .
Partindo-se dessa ótica, percebe-se que capacidade de fato e autonomia distanciam-se na justa medida em que esta última é conceitualmente dinâmica e concreta. A capacidade de fato, a seu turno, representa a estratificação genérica de habilidades e competências.
Curiosamente, essas características, que à primeira vista poderiam ser reputadas como indesejáveis e restritivas, traduzem o fundamento e a utilidade do instituto. Justamente por se firmar em padrões estáveis e predeterminados, a capacidade de fato viabiliza e assegura o fluxo negocial; por sua abstração, ela permite que se firme a paridade entre os sujeitos intervenientes nas relações jurídicas. Vê-se, portanto, que a capacidade de fato, ao “cristalizar” a autonomia não presta um desfavor ao ordenamento jurídico; antes, dota-o de condições de operacionalidade. Entretanto, se o papel desempenhado pela capacidade de fato é de destacada importância, tal circunstância não inibe as críticas que derivem daquelas características antes declinadas. Assim, a estratificação da capacidade de fato gera situações perplexas, tais como a de se dormir incapaz e se acordar capaz ; sua abstração, no afã de generalizar, despreza as particularidades do caso concreto e acaba, paradoxalmente, gerando a desigualdade.
Nesse jogo tormentoso de prós e de contras, uma só certeza parece firmar-se: a capacidade de fato é um “mal necessário”. Parece-nos, todavia, que a gravidade desse mal pode ser mitigada mesmo em sistemas como o nosso, em que se procede a uma cisão abrupta entre os capazes e os incapazes. Na esteira de JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, soa incontestável que idealmente não deve haver fratura rígida entre incapacidade e capacidade, devendo a lei atender à evolução da capacidade natural, reduzindo sucessivamente o âmbito da incapacidade do menor . Segundo o eminente jurista português, tal redução pode efetivar-se através de duas estratégias: por remissão à capacidade natural e pelo levantamento de certas limitações logo que atingidas idades determinadas.
Tais considerações levam-nos a cogitar se o legislador teria aproveitado o ensejo da edição do novo Código Civil brasileiro para modernizar a disciplina da capacidade de fato dos menores, aparando suas arestas e estreitando suas conexões com o domínio da autonomia. Tal operação, se efetivada, seria sumamente bem vinda, especialmente se ponderarmos que o Estatuto da Criança e do Adolescente remodelou o regime da menoridade, concedendo ao menor maior autonomia e participação, conforme se extrai do art. 16, da Lei no. 8.069, de 13.07.90.
2. A Transição de Códigos e o Estatuto da Menoridade
2.1. A nova maioridade
Em matéria de capacidade de fato, pode-se dizer que a redução etária para o alcance da maioridade constitui a novidade mais exaltada pela doutrina recente e pela literatura não especializada. Embora o projeto primitivo houvesse mantido o patamar etário da maioridade estatuído no Código Civil de 1916, a emenda no. 4 do Senado ao Projeto de Lei no. 634 da Câmara dos Deputados fez cessar a menoridade aos dezoito anos completos.
Embora JOSAPHAT MARINHO, na qualidade de relator-geral dos trabalhos efetivados no Senado, tenha justificado a redução do marco da plena capacidade em função “das transformações da sociedade e do poder dos meios de comunicação de transmitir informações” , o fato é que a medida não é isenta de críticas. Com base nos mesmos argumentos expendidos por JOSAPHAT MARINHO para a mudança do quantum etário de maioridade, JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES, elaborador da Parte Geral do novo Código Civil, sustenta ponto de vista oposto:
“Não desconheço que a imensa maioria das legislações modernas abaixou o limite de idade em matéria de capacidade de fato, mas também penso que, no momento em que o mundo mais se complica e em que as relações jurídicas se tornam complexas, não me parece que um instituto dessa natureza seja capitis deminutio, que não visa denegrir ninguém, e, portanto, considerar que quem tenha 18 anos não tem um certo discernimento; no entanto, esquecem-se aqueles que se baseiam nisso de que esse é um instituto de proteção e visa senão a tutela dos interesses daquele que é lançado na vida das relações jurídicas e pode ter o seu patrimônio e as suas relações jurídicas sem a tutela necessária, em face da complexidade da vida jurídica moderna”.
Embora o próprio JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES tema parecer “renitente e conservador” ao assumir tal posicionamento , o fato é que sua advertência mostra os descaminhos que o projeto assumiu na reavaliação do estatuto da menoridade. Apostou-se no potencial emancipatório do novo patamar da capacidade negocial, mas a redução apenas antecipa o momento em que ocorrerá o abrupto corte entre capazes e incapazes. Logo, o novo mínimo etário além de não contribuir para dissipar os inconvenientes da estrutura da capacidade de fato, ainda se funda em motivos que, como visto, podem receber o rótulo de dúbios. Melhor seria, portanto, que o Código houvesse investido nos expedientes discriminados por ASCENSÃO no tópico anterior, quais sejam, a encampação da capacidade natural e a utilização de parâmetros etários diferenciados para atividades específicas, tornando, assim, menos escarpada a transição da menoridade para a maioridade. Verifiquemos se essas medidas foram adotadas paralelamente.
2.2. Remissão à capacidade natural
Para averiguarmos se o legislador do novo Código Civil se valeu da capacidade natural para integrar o menor de forma mais efetiva na ordem civil, primeiramente cumpre esclarecer o que se deve depreender por este conceito. Conforme ensina JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES, a capacidade natural traduz o simples querer, a mera capacidade de compreensão.
Através dessa singela definição, percebe-se que a capacidade natural constitui importante válvula de escape para o sistema de capacidade de fato. Tomando-se em consideração que nem sempre a eficácia jurídica é recortada pelo teor do ato volitivo, tem-se que numerosos atos jurídicos podem ser subtraídos à égide da capacidade negocial, podendo ter o seu impulso criador num ato conscientemente desejado e praticado. Assim sucede, como é sabido, com vários atos jurídicos em sentido estrito, que prescindem de capacidade de fato plena para a produção de efeitos no campo do Direito. Nesse sentido, anda bem o inovador art. 185 do Código Civil de 2002, que reconhece um estatuto jurídico próprio aos demais atos jurídicos lícitos que não sejam negócios. É fato que o art. 185, Cód. Civ. 2002, não esclarece em que pontos fica salvaguardada a disciplina específica dos atos jurídicos stricto sensu e em que circunstâncias se lhes aplicam as disposições pertinentes ao negócio jurídico. Todavia, essa característica, longe de ser uma imperfeição do dispositivo, representa a sua virtude, na medida em que convoca a doutrina a precisar seu conteúdo.
É certo que a doutrina se controverte quanto a qual seria o nível de capacidade exigido para a realização de atos jurídicos stricto sensu. Uns, esvaziam o estatuto jurídico próprio dessa espécie de atos, exigindo a capacidade negocial como requisito de validade dos mesmos ; outros, mais coerentemente, compreendem que a vontade, nesses atos, circunscreve-se ao impulso que põe em marcha a eficácia jurídica legalmente determinada, e demandam, pois, apenas a capacidade natural para o aperfeiçoamento dos atos jurídicos em sentido estrito . Em se assumindo esse último posicionamento e, aproveitando o ensejo favorecido pelo art. 185, Cód. Civ. 2002, abre-se vasto campo à integração dos menores à vida civil, visto que seu discernimento, ainda que imberbe, preenche o suporte fático exigido para um sem número de atos correntes do universo jurídico.
Não obstante, porém, o bom passo dado no que concerne ao reconhecimento de disciplina específica para os atos jurídicos em sentido estrito, não se pode proclamar que a política do legislador tenha sido a de emancipação gradativa do menor. Contrariamente, outros dispositivos do novo Código Civil evidenciam que o legislador descurou dos espaços da autonomia, cingindo-se a operar no domínio da capacidade de fato, por meio de alteração do teto legal da menoridade. Dois dispositivos são emblemáticos para sustentar a afirmação que se acaba de tecer. Passemos à sua análise.
O primeiro diz respeito à conhecida hipótese de emancipação por estabelecimento civil ou comercial com economia própria. O Código Civil de 1916 em seu art. 9o., § 1o., V previa a hipótese que, de resto, suscitou desde o nascedouro inúmeras controvérsias.
RUI BARBOSA iniciou as críticas, julgando o termo estabelecimento pouco feliz, por sugerir a idéia da casa ou lugar onde se estabelece, quando, em verdade, está a indicar um fenômeno, isto é, o ato ou fato de se estabelecer.
Na seqüência dessa admoestação, a doutrina debateu se a hipótese demandava ou não um mínimo etário para a sua verificação. Dois posicionamentos parecem ter polarizado as discussões: de um lado, aqueles que exigiam o mínimo de 18 anos para a emancipação por estabelecimento civil ou comercial com economia própria, com fundamento no art. 1o., 3, do Cód. Com. de 1850, relativo à autorização para o comércio ou pela superveniência do art. 3o., II, do Decreto-Lei no. 7.661/45 ; de outro, havia quem sustentasse que, para o alcance da plena capacidade por essa via, o menor deveria contar ao menos com 16 anos, pois, abaixo dessa idade, seria absolutamente incapaz, cuja vontade é desprezada pelo ordenamento jurídico .
Parece-nos, todavia, que a razão não assiste nem a uma nem a outra vertente. Partindo-se da advertência feita por RUI BARBOSA acerca do que significa o termo estabelecimento, parece-nos que a hipótese é refratária a qualquer tipo de determinação etária para que possa implementar-se. O fato de o legislador de 1916 não ter fixado idade mínima para a configuração da hipótese chega mesmo a reafirmar o sentido propugnado por RUI BARBOSA. Numa perspectiva teleológica, essa forma de emancipação, se bem considerarmos, é aquela que traduz mais fielmente a finalidade do instituto: visa justamente a premiar o menor que demonstre “suficiente amadurecimento e experiência desenvolvida, podendo, pois, desde logo, assumir a regência da própria pessoa, assim como de seus bens” . Justo é, portanto, que o menor que revele tal espírito de precaução, mesmo que através de uma seqüência de atos potencialmente nulos ou anuláveis, galgue o posto de plenamente capaz que já lhe é de direito. Embora a obtenção da emancipação por essa via, sem a exigência de um mínimo etário, possa parecer trôpega aos olhos da lei, tal interpretação seria de se adotar até mesmo em benefício do interesse dos credores que com o menor negociaram. Se considerarmos que, segundo o art. 83, do Cód. Civ. de 1916 – cujo teor é repetido em termos aproximados pelo art. 105, do Cód. Civ. de 2002 – a alegação da menoridade é privativa do incapaz, salta aos olhos a utilidade da referida hipótese de emancipação. É o que salienta SÍLVIO RODRIGUES:
“as pessoas que com ele [o menor] negociam, crentes de que está habilitado, tanto que publicamente exerce uma atividade que envolve a assunção de obrigações, seriam prejudicadas, em sua boa-fé, se os atos por elas praticados pudessem ser anulados, em virtude da menoridade do outro contratante.
“O legislador, neste caso, tem, principalmente, por escopo proteger tais pessoas, que, de boa-fé, estabelecem relações comerciais com o menor” .
A genialidade desse gênero de emancipação, cuja utilidade é manifesta nos dias de hoje em que ocorre verdadeira profusão de estrelas mirins e jovens aficionados do mundo eletrônico, foi, entretanto, desprezada pelo Código Civil de 2002. O novo Código, provavelmente no afã de apaziguar o ânimo da doutrina, inseriu no corpo do inciso V do parágrafo único do art. 5o. o patamar etário mínimo de 16 anos para a concretização da hipótese legal. Diga-se de passagem que a escolha da idade de 16 anos não representa sequer um convencimento sobre a coerência de uma entre as correntes litigantes quanto ao mínimo etário necessário para a implementação da hipótese, pois antes de sofrer a emenda relativa à maioridade, o projeto original consignava o mínimo de 18 anos.
Ora, o que fez o legislador com a inovação foi justamente desprezar a capacidade de entendimento, o natural entendimento de que possa se valer o menor para estabelecer-se empresarialmente . O Código de 1916, conquanto anterior ao de 2002 em 86 anos, já plantara, ainda que não intencionalmente, as bases sobre as quais a capacidade natural poderia fluir com significativo poder emancipatório. O Código de 2002, por um pragmatismo indisfarçável, represa esse potencial até a idade de 16 anos. O pior é que a medida é um remendo que não soluciona o maior dos problemas relacionados ao tema, exsurgido da legislação falimentar: como compatibilizar a idade mínima de 16 anos para a emancipação por estabelecimento empresarial com economia própria com o teor do art. 3o., II, do Decreto-Lei no. 7.661/45, que firma a idade mínima de 18 anos para a imposição de falência ao menor que mantenha estabelecimento comercial, com economia própria? Sem dúvida, a solução, simplista que foi, acabou por reforçar um intricado problema hermenêutico…
Outra hipótese que parece repetir esse mau passo do legislador em relação à capacidade natural é a das doações puras efetivadas em prol de incapazes. O Código Civil de 1916, em seu art. 1.170, preceituava a respeito: “Às pessoas que não puderem contratar é facultado, não obstante, aceitar doações puras”.
Tal preceito legal sempre embaraçou a doutrina, que se via em dificuldades para esclarecer como até mesmo um absolutamente incapaz poderia exarar uma declaração de vontade apta a provocar o recolhimento da liberalidade. CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA explicava a espécie, proclamando que o consentimento exarado pelo menor nessa hipótese era meramente ficto:
“Não é possível admitir que os absolutamente incapazes embora inábeis para qualquer ato da vida civil possam aceitar doação, mesmo quando pura, porque lhes falta o pressuposto essencial, que é a aptidão para realizarem um ato de vontade. […]
[…] Na doação pura ao incapaz emerge uma aceitação ficta, legal, que dispensa manifestação de vontade mas que produz os efeitos de um consentimento efetivo, tal qual se o donatário fosse capaz e emitisse uma declaração volitiva” .
Ora, tal leitura é obviamente castradora do alcance do dispositivo legal. Se a lei determinava que a doação, ainda que pura, só verteria ao patrimônio do menor se este a aceitasse, não há que se fazer tábula rasa do comando legal. A nosso ver, não se trata de uma aceitação ficta ou fantasiosa, mas de uma aceitação autêntica, que pode ser externada por um absolutamente incapaz pelo fato de a doação pura não lhe acarretar qualquer ônus. Sendo um negócio simples, que só vem a acrescer o acervo de bens do incapaz, razões não há para que ele, desde que dotado de compreensão, de entendimento, vale dizer, de capacidade natural, seja inibido de manifestar seu assentimento.
O Código Civil de 2002, mais uma vez tentando obviar as dificuldades da doutrina no tratamento do tema, expurgou a idéia de aceitação presente no caso para determinar em seu art. 543: “Se o donatário for absolutamente incapaz, dispensa-se a aceitação, desde que se trate de doação pura”. Conforme se vê, a aceitação antes existente e procurada pelo ordenamento legal, no Código de 2002 foi completamente desprezada. Tal preceito levou a doutrina nascente sobre o novo Código a advogar que o assentimento do incapaz na nova sistemática seria presumido.
A mudança de orientação é dramática para a valorização da capacidade natural do menor: antes, a ele era facultado aceitar doações puras, o que vale dizer que poderia fazer um juízo sobre a conveniência do acolhimento da liberalidade, juízo este que se sobrepõe até mesmo ao exaltado caráter benéfico do ato. No regramento do Código de 2002, tal avaliação foi suprimida e o incapaz, desde que não seja aposto encargo à doação, torna-se donatário compulsoriamente. O espaço que antes era ocupado pela autonomia do incapaz passou a ser titularizado pela lei.
De todo o exposto, resulta evidente que as transformações que o Código Civil de 2002 procura impingir à emancipação por estabelecimento civil ou comercial com economia própria e à aceitação de doações puras projetam o menor a situação de impotência e de inércia antes que alcance certo patamar etário estatuído em lei. Vê-se, portanto, o quão deficitária e retrógrada é a “política” emancipatória apregoada pelos arautos do novo Código.
2.3. Levantamento punctual de restrições à capacidade de fato
A disciplina do Código Civil de 1916 já se valia dos seguintes levantamentos punctuais de restrições à capacidade negocial: capacidade para testemunhar (art. 142, III), para atuar como mandatário (art. 1.298) e para testar (art. 1.627, I) . Todas essas hipóteses são associadas à incapacidade relativa, traduzindo, por sua existência, a própria essência dessa fase de transição entre a incapacidade absoluta e a plena capacidade. O fato de o Código Civil de 1916 não ter trabalhado em nenhum de seus dispositivos com patamares etários inferiores a 16 anos evidencia a parcimônia com que o legislador operou esses levantamentos etários, talvez por julgar impossível reconhecer a capacidade de fato naqueles cuja vontade ordinariamente é desprezada pelo Direito.
O Código Civil de 2002 não incrementou esse estado de coisas, cuidando da redução de idade apenas nas hipóteses antes contempladas no Código de 1916. Sua disciplina mostra-se, portanto, deficitária, na medida em que também não beneficia os menores impúberes. Deve-se também destacar que os artigos 228, I; 666; e 1.860, parágrafo único do novo Código mantiveram a idade mínima de 16 anos para testemunhar, para ser mandatário ou para testar, não obstante a maioridade tenha passado a acontecer aos 18 anos. Ora, se o argumento bramido em prol dessa redução foram, como assinalado por JOSAPHAT MARINHO, as transformações da sociedade e o poder dos meios de comunicação , parece incoerente não se ter ao menos cogitado acerca da necessidade de se minorar a idade exigida para implementar aqueles atos.
Perdeu-se a oportunidade de, por um lado, aquebrantrar os rigores do modelo atual de incapacidade absoluta e, por outro, de prodigalizar os espaços de autonomia reconhecidos aos relativamente incapazes. Infelizmente, os levantamentos a restrições à capacidade de fato também não foram utilizados para finalmente dar resposta legislativa à difícil questão em torno da implementação de pequenos contratos.
3. Conclusão
Há mais de uma década, o Estatuto da Criança e do Adolescente vem apregoando uma nova identidade para os menores. No ideário daquele diploma legal, o menor abandonou o posto de subserviência e silêncio que antes lhe reservava o Código Civil de 1916 para tornar-se agente articulador de seus interesses, quer expressando suas próprias opiniões, quer participando da vida familiar, comunitária e política.
O Código Civil de 2002, talvez devido ao longo processo de maturação legislativa por que passou, nasceu em descompasso com essa nova realidade, na medida em que se filiou ao estatuto da menoridade traçado segundo o modelo do Código de 1916. Sob esse aspecto, não deve haver receio em se afirmar que o novo Código já nasceu ultrapassado. Embora nele se tenha promovido a redução da idade em que se verifica a maioridade, tal medida não se fez acompanhar de expedientes que pudessem incrementar os espaços de autonomia reservados aos menores antes de alcançarem aquele estágio. Repetiu-se a velha fórmula da divisão entre “os que podem tudo” e “aqueles que nada podem”, mediando-se essa cisão com uma categoria que idealmente deveria ser intermediária, mas que de fato propende muito mais para a inaptidão generalizada.
Houvesse o legislador valorizado a capacidade natural ou tivesse ele feito levantamentos punctuais de limites à capacidade de fato, certamente nos depararíamos com um sistema menos excludente e mais propício à valorização da própria autonomia. Da maneira como restou configurado, o novo Código Civil delineou um sistema claudicante, que se contradiz em seus próprios termos. Afinal, como imaginar mais capacidade com menos autonomia?
* Simone Eberle
Mestre em Direito Civil pela UFMG, Doutoranda em Direito Civil pela UFMG, Professora do Instituto de Ensino Superior de João Monlevade, ex-professora assistente da Universidade Federal de Juiz de Fora